Biz era José Luís, o colega de classe dos olhos azuis e cabelos pretos anelados. Mas dizer
que ele tinha olhos azuis é um pouco de adivinhação, pois quem é que tinha a ousadia de
olhar pra ele cara a cara?
Não posso dizer que fosse um menino mau, pois a única maldade que fez e de que posso
testemunhar foi quando durante o recreio sumiu uma folha inteira do caderno em que eu
fazia meu teste. E, depois do choque, da denúncia, das lágrimas debulhadas sobre a carteira
escolar, em frente a toda a turma e uma perplexa dona Zinha, essa folha foi encontrada
amassada na cesta de lixo, dentro da própria sala de aula.
E o que acontecera antes do recreio, que rememorei, e acho que corado o Biz deixei, foi
quando relatei que ele me havia pedido pra passar uma resposta e eu lho negara. Na cara.
Quis ser prolixo, o pro lixo foi meu teste. Mas as coisas se acertaram. E não "apanhei lá
fora".
Mas nessa altura, já era o segundo ano, e até então tínhamos nos dado bem. Bem, cada um
com seu porém.
Levado ele era e diziam que fazia coisas do arco-da-velha. E uma prova contundente estava
no fato de que ia muitas vezes descalço para a escola: faltavam-lhe o dedão direito e uma
pontinha do artelho vizinho. Nunca soube que alguém lhe perguntara o porquê. E tampouco
ele se voluntariava a dar explicações.
Mas uma coisa curiosa é que eu tendo pego aquela classe como novato, na metade do
primeiro ano, ele não me demonstrou nenhuma hostilidade ou indiferença. Ao contrário:
gostava de contar-me histórias a respeito de seu pai, um caminhoneiro, morto numa cilada,
na estrada. O homem, que não cheguei a conhecer, senão de escassa referência era um
Queiroz, de família braba, atroz. Mas era o seu ídolo. E o Biz se prodigalizava (para um
menino calado e retraído como ele) em contar como seu pai se defendera da forma vil e
covarde com que fora atacado, até a última bala. Gesticulava-se, apontava e fazia menção
de ser o "velho" na luta contra os seus algozes.
Amigos não tinha o Biz. Era dos mais altos e fortes daquela turma de petizes e
possivelmente temido por todos. No dia em que topei, ou quiçá, lhe propus, depois da aula,
jogar bolinha de gude contra ele, os colegas mais próximos viram minha caveira. Biz era
mão certeira e não perdia para ninguém.
Como eu já havia aceitado o repto, resignei-me à idéia de perder a única bolinha que tinha.
Se é que o destino já estivesse traçado.
E apesar da ordem imposta, das filas, das meninas primeiro, mal ouvi a sineta, e saí
ofegante pela rua esburacada e encascalhada para aquele
"Gunfight at O K Corral" com a turma toda atrás. Biz deu a largada, mandando a bolinha
de saída a uma distância indecente. Fui atrás e, da primeira tacada, zás. Acertara em cheio,
na mosca. Ele pagou, e bis foi o que quis.
Quis eu preservar a vantagem naquele estirão de rua e lhe fugir à mira que fazia jus à fama.
Não consegui chegar até a esquina salvadora, onde as ruas seguintes eram calçadas de
parelelepípedo e impraticáveis àquela forma de duelo. Ele empatou o jogo no último lance.
Com elegância e precisão. Clínica, feito essas bombas inteligentes de hojendia. Inda bem
que a rua acabava ali.
Fui reencontrar o Biz já em campos opostos, num treino-jogo de futebol. Acho que ele não
se lembrava daquele empate dramático. Nem do teste, ou de qualquer outra peste.
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