Uma amiga me perguntou há dias se eu achava que o poema “Os Parceiros” de Mário Quintana poderia ser interpretado como um texto contendo uma tematização sobre o fazer literário. Pediu-me uma leitura do poema e uma opinião a respeito. Este artigo é uma parte do resultado da psquisa e da leitura desse poema. Para termos uma resposta mais próxima e coerente com a pergunta, achamos de importância metodológica esclarecer o que é o “fazer literário”.
I – O que é o fazer poético
Todo o escritor e poeta tem ou inventa uma história para seu fazer poético e para a operação da escrita. Isto para cada texto. Portanto, cada texto tem uma história própria. Está fora de dúvida.
O fazer poético tem como função essencial, produzir, construir e criar. Cada obra literária e cada poema é uma produção, uma construção, uma criação.
Na história desta construção, produção ou criação, há momentos essenciais a registrar. Tudo pode começar por uma impressão, por uma emoção, surpresa, pensamento, fator presenciado e sentido. Tudo isso pode constituir-se em elemento dinamizador da imaginação criadora, e ditar os caminhos genéticos da inspiração. Nessa fase genética, vem a escolha temática, o primeiro plano da obra, as primeiras disposições para a escrita, assim como o caminho e ação da escrita por inteiro. Tudo isto faz a história de uma determinada escrita. Tudo isto explica alguns dos elementos e as estruturas primordiais do fazer literário.
II – Na produção literária, os textos têm elementos associados à dinâmica do fazer poético ou literário. Mas só poucos textos literários e poéticos tematizam o fazer literário em si.
Os “parceiros” de Mário Quintana
No que diz respeito ao poema “Os parceiros” de Mário Quintana, parece evidente que o poema tal como aparece no verso - base de análise, de interpretação e de entendimento -, não tematiza, ou seja, não fala sobre o fazer poético. O poema tem uma dinâmica própria, como todo e qualquer poema. Essa dinâmica mostra o fieri, o tornar-se, o nascer das palavras e dos sentidos, o desenvolvimento da mensagem. Tudo isso se engloba numa lógica interna de um fazer poético e estrutural da composição em si, mas não fala nem tematiza o fazer poético.
Uma linha de leitura
O que pode abrir caminho para essa interpretação é uma linha de leitura imanente, interna, a partir do próprio texto. Esse é método acadêmico mais acabado e mais imparcial para rondarmos os sentidos da mensagem. Vejamos essas principais linhas de leitura no texto poetizado por Quintana.
Um soneto inglês
A modalidade poética apresentada por Mário Quintana, é a forma de um soneto shakespeareano ou inglês. “Os parceiros” são constituídos por dezesseis versos, que é exatamente o esquema do soneto inglês. Na forma original apresentada pelo poeta, “os parceiros” são constituídos por duas quadras e uma sextilha. Na forma inglesa do soneto trabalhada por Shakespeare, o soneto é apresentado em três quartetos e um dístico, diferente da estrutura petrarquiana que nos transmitiu o soneto clássico formado de duas quadras e dois tercetos.
A mensagem poética de “Os Parceiros
Dividiremos o poema, para melhor acompanhamento da análise textual, hermenêutica e poética, em três instâncias de sentido.
A interioridade como primeira instância de sentido
A primeira quadra do poema de Quintana oferece-nos a interioridade sonhadora como nascente de criação: “Sonhar é acordar para dentro/de súbito me vejo em pleno sonho”.
O jogo como segunda instância de sentido
Ainda na primeira quadra, Quintana mostra tudo o que dinamiza a interioridade do sonho e da vida. Nesta dinâmica, a vida é interpretada como um jogo: “e no jogo em que me concentro/mais uma carta sobre a mesa ponho”. Descendo a fundo na poetização deste jogo, Quintana, mostra, na segunda quadra o peso das cartas que caem sobre a mesa, tornando o jogo atroz, numa corrida de um Tudo ou de um Nada. O peso desse jogo, no risco que oferece, produz uma chama triste, quase escurecida, porque o jogo que não é de brincadeira, oferece em cada parada pancadas de desenganos e tristes chamas de desilusão.
No centro deste jogo, o herói ou o vilão, chama-se coração. No amor, ele é o símbolo da dinâmica especial. Mesmo quando mal sucedido, desiludido e exausto, o coração continua insistindo.
A insistência como terceira instância de sentido no poema
No jogo atroz do tudo ou do nada, em que o ser humano se envolve, a insistência é a parte alta da soberania do coração, mesmo quando exausto. Na sextilha final do poema, Quintana, quer deslindar a essência dessa insistência.Por que insiste o coração? Pretende ganhar o quê? Ganhar de quem? - pergunta o Poeta. E as respostas vêm, derramam-se e chegam ao leitor. O sujeito poético levanta a voz e diz sem rodeios: “o meu parceiro...eu vejo que ele tem/ um riso silencioso a desenhar-se/numa velha caveira carcomida./ Mas eu bem sei que a morte é seu disfarce.../ Como também disfarce é a minha vida!”
Evanescência do amor e da vida
Na sextilha transparece a emoção da evanescência do amor e da vida, representada no silêncio e na simbologia da caveira carcomida do parceiro. No dístico final, o Poeta dilui a morte no riso silencioso, na caveira carcomida do amante...interpretando a morte e os símbolos da morte e da vida como mero disfarce: “Mas eu bem sei que a morte é seu disfarce/Como também disfarce é a minha vida!”. Neste dístico, dispende o Poeta uma profunda visão poética da vida e da morte para nos dizer que, no fundo, no fundo, falando da vida e da morte, ninguém morre inteiramente, como também ninguém vive totalmente!!!
A título de parecer conclusivo
Operacionaliando o texto através de uma leitura crítica, parece evidente que o poema não tematiza o fazer literário em si. Diríamos por outras palavras: o poema “os parceiros” tem a matéria poética própria para o leitor perceber com que materiais o poeta trabalhou em sua mensagem poética. Mas não tematiza técnicas nem estruturas de como chegar à criação poética em si. Não se trata, portanto de um poema que tematiza a técnica do fazer literário e, sim, de um poema onde a mensagem, por ser artística, formada de uma palavra essencialmente literária, é carregada de uma dimensão mais estética e psicológica que diz respeito à dinâmica subjetiva do poeta.