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Contos-->17. JOGO DURO -- 21/04/2002 - 06:08 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Quando Eurípides vestia a camisa de seu time, ostentava às costas o número três. Desejava, em sonhos, fazer rutilar tal numeração, dada a importância que sabia, para o bom desempenho da turma, da sua atuação no centro da área, na defesa dos ataques adversários. Ali, no frêmito da partida, dedicava-se com sofreguidão a dar amparo a todos os companheiros e tudo fazia para afastar o perigo para longe da meta. Atento para os movimentos dos adversários, antecipava-se às jogadas deles, interceptando e fazendo a bola rolar longe de seu setor. No entanto, sempre que se via fora da área, onde não havia perigo de ser punido com a penalidade máxima de rigor, Eurípides acossava os adversários, ministrando-lhes cotoveladas e distribuindo pontapés para intimidação. Se a partida estava favorecendo a sua agremiação, partia para o menoscabo dos pobres infelizes derrotados; quando se via em inferioridade no marcador, buscava incentivar todo o grupo, desdobrando-se na defesa e investindo intempestivamente no ataque. Aí se desarvorava e quase sempre era substituído, pois mais atrapalhava do que ajudava. Esses dias eram de profundo infortúnio para a mente acostumada a conceber apenas a vitória, como ponto de toque da existência. No jogo da bola, jogava duro.

Mas o tempo passa e, como todo o mundo, Eurípides, um dia, ao tentar correr para cima de um adversário, no intuito de derrubá-lo, percebeu que não mais o alcançaria, tendo ficado a observar o jovenzinho realizar estupenda jogada de gol. Reconheceu-se velho para a prática do esporte a nível profissional e foi gerir seus negócios na vida. Ganhara algum dinheiro e, sempre jogando na defesa, soube empregá-lo bem, de modo que era dono de várias sapatarias na capital do estado.

Parando a prática física, adquiriu certa camada espessa de gordura na região abdominal, pois não conhecia os efeitos do sedentarismo para a flacidez muscular e as articulações. Prosseguira comendo como habitualmente e descuidara dos costumes hígidos dos exercícios regulares. Em suma: engordou.

A mente, contudo, não afeita a outra atividade senão o estreito desejo de vencer, permaneceu, rigorosamente, oferecendo o mesmo tipo de procedimento anterior. Jogando na defesa, prevenira-se contra os assaltos dos adversários, de modo que, em breve, todos os que lhe apareciam para oferecer os préstimos nos negócios lhe pareciam estar prontos para a finta fácil, para o drible enganador.

Foi com esse espírito que cresceu em seu amadurecimento. Já cinqüentão, experimentado no relacionamento social, sofreu vigoroso embate da sorte: o falecimento de filha querida, aos vinte e cinco anos de idade, moça prendada, noiva com casamento marcado, vítima de atropelamento na via pública.

Eurípides levou o tranco como derrota contundente em partida decisiva do campeonato. Achou que a vida o vencera e sentiu-se substituído no meio tempo do jogo. Pensou em dependurar as chuteiras, mas as demais responsabilidades familiares impediram-no do gesto tresloucado. Murchou e pendeu na haste já não mais vigorosa. Desleixou e, moralmente, deixou-se criar gordurinhas incômodas na mente desanimada. Viu-se no banco dos reservas.

Os negócios, antes tão atraentes, não mais lhe despertavam o desejo de avançar sobre os adversários. A vida perdeu o colorido e o número às costas empalideceu e, quase imperceptivelmente, foi despregando até restar carcomido e puído pedacinho de pano.

Mas Eurípides foi convocado para integrar a equipe de centro espírita que procurou para saber notícias da filha. Esperava, por ter lido certos casos lindos de Chico Xavier — fornecidos pela esposa —, que a filha pudesse ser invocada para as notícias de praxe: como estava, com quem, quais as perspectivas de retorno, enfim, o consolo regenerador da disposição mental mais salutar de quem volta a confiar na vitória do time.

Ali, junto aos colegas, percebeu que nem tudo transcorre da forma como se pretende. Admitido a certa sessão de doutrinação e conforto, notou que as mensagens pessoais eram raras e pontilhadas de indecisões e hesitações da parte dos médiuns e dos instrutores, dadas as inevitáveis conseqüências morais para o grupo todo, especialmente para o destinatário encarnado, quase sempre familiar ansiado pelo contacto estreito e reconfortador. Da filha, não obteve notícia a não ser por terceiros, que, ao cabo de alguma investigação, puderam informar-lhe que estava em tratamento e impedida de se achegar à mesa para a esperada comunicação. Que o pai se contentasse em crescer em conhecimentos espíritas para favorecer a compreensão dos fatos envolvidos. À vista da manifestação do protetor é que os dirigentes da sessão viram a possibilidade do convite a que acima nos referimos.

Assim, Eurípides, para alegria da mulher, acedeu em prosseguir trabalhando no auxílio da equipe socorrista, fornecendo-lhes o que pudesse, uma vez que passara os negócios para a responsabilidade integral do filho mais velho — alheio às lides futebolísticas, mas fanático torcedor do antigo clube do pai. Aposentado, teria muito tempo para dedicar a tudo que lhe fosse solicitado.

De início, teve muita dificuldade em decifrar os ensinamentos escritos. Inteligente, apanhava no ar as explicações dos expositores e dos companheiros nos debates dos temas mais corriqueiros e fundamentais da doutrina. Esbarrava, porém, em intransponível dificuldade intelectiva, não afeito às sutilezas das argumentações e engenhosas explicações dos livros de Kardec. Diante dessa dificuldade, foram-lhe recomendadas obras mais leves de espíritos protetores, romances e contos através dos quais, por meio do exemplo vivenciado, as teses iam sendo demonstradas, analisadas, comprovadas e concluídas.

Nesse diapasão, deixou o tempo passar por longos dez anos de fértil e proveitosa dedicação ao trabalho, ao cabo dos quais intentou leitura completa de O Livro dos Espíritos, com absoluto sucesso. Daí para as demais obras foi um passo. Entusiasmou-se sobretudo com O Livro dos Médiuns e, admitido à sessão de treinamento mediúnico, em pouco tempo estava manifestando psicofonicamente as orientações de seu espírito guardião.

Suas mensagens eram de cunho doutrinador, nunca dando permissão a qualquer sofredor para apresentar anseios e angústias. Jogava ainda na retranca.

Certa vez, instado pelos parceiros, à vista da cabeleira branca, na falta por doença do dirigente da sessão, aceitou conversar com os sofredores. Diante, porém, das manifestações grosseiras das entidades acostumadas a menoscabarem os irmãos, não percebendo que estava dentro da área, deu violento safanão moral em dois ou três, praticando jogo duro que foi imediatamente punido pelo juiz da partida — o espírito guardião mentor dos trabalhos —, com penalidade máxima a ser cobrada por esclarecido médium psicógrafo. No momento do calor da disputa, não percebeu as falhas técnicas que cometeu, mas, ao final do prélio, ao ler o relatório do julgador das tarefas, ficou estarrecido com a ameaça que sofreu de exclusão do jogo por medida de segurança dos adversários. É bem verdade que a linguagem do orientador não se vazou no jargão futebolístico mas, na mente de nosso craque, a tradução foi fazendo-se concomitantemente, de modo que tudo lhe surtia no coração da mesma forma que lhe ocorria na juventude.

Naquela noite, dormiu bem tarde, após profunda meditação a respeito de todos os feitos na vida. Ao relembrar o ingresso na casa evangélica, algumas lágrimas demonstraram a saudosa lembrança da amada filha. Elevou em prece comovida o pensamento ao Criador e pediu perdão por ter desconsiderado os irmãozinhos sofredores que lhe cabia orientar. Em meio a essa prece de arrependimento, sonolento, entreviu a morte próxima.

Na manhã seguinte, acordou mal humorado, com estranhas visões de intrincado sonho em que a bola lhe rolava na frente, sem que conseguisse alcançá-la, desesperado, correndo pelo campo todo às tontas, com certo juiz de negro apontando-lhe o caminho dos vestiários, cartão vermelho alçado na destra. E ele lá penetrava, onde os chuveiros estavam secos e as roupas todas espalhadas pelo chão.

Depois de algum esforço de contenção, contou à mulher o receio de breve trespasse, intuição que lhe ficara impressa na mente. A esposa sentiu um frêmito mas obtemperou-lhe que a saúde era de ferro e que o coração nunca fraquejara. Não havia motivo algum para temer o fato. Por outro lado, restava a prece segura e o reconforto das palavras dos irmãos do plano da espiritualidade, que poderiam ser consultados para a confirmação.

De volta às lides espiritistas, mais tranqüilo, Eurípides, resignadamente, se dispôs a aceitar a manifestação de certos espíritos sofredores, impondo mentalmente ao orientador que só lhe encaminhasse os que desejassem recuperar-se, verdadeiramente. Aquiesceu o mentor espiritual e, a partir de então, o nosso amigo passou a receber outro tipo de incorporação mediúnica. Da filha, nenhuma notícia. Da premonição, nenhuma palavra.

Após alguns anos de profícuo trabalho no campo da desobsessão, certa noite de reunião, Eurípides notou, esquecido das antigas prevenções, que não mais fazia objeção a nenhum ser desgraçado que o procurava para manifestar-se. Admirado ficou por não ter percebido a transformação íntima. Propôs-se, então, a dirigir a sessão nas faltas dos companheiros e surpreendeu-se com o fato de não reagir mais intempestivamente. Louvado pelo doutrinador espiritual na súmula psicografada, compenetrou-se de que finalmente as reações não mais lhe configuravam na camisa nenhum número três reluzente. Imaginou-se com a camisa dez, símbolo da melhor posição no campo, mas a intuição revelou-lhe que melhor lhe ficaria a condição de roupeiro no campo da mediunidade. Achou boa a comparação e lembrou-se do sonho que tivera anos antes, interpretando corretamente a necessidade de cuidar bem dos apetrechos para poder participar da partida.

Não vamos dizer que Eurípides recebeu novas instruções para jogar em outra posição, em novo encarne. Voltou, sim, à vida, após demorada incursão no plano espiritual, mas na condição de árbitro de futebol. Hoje, moço novo, exerce a profissão de dentista e atua como juiz nos finais de semana. Às vezes, nostalgicamente, imagina que o juiz talvez pudesse ter impresso nas costas algum número, mas logo afasta essa idéia como maluca. Às vezes, supõe que a mãe pudesse ser sua filha, mas esse pensamento o estremece e arrepia. Às vezes, ao comprar sapatos, parece reconhecer o vendedor como alguém muito ligado, com quem simpatiza com afeto de avô. A verdade é que é muito feliz e muito cordato para com todos, jogando sempre suave em todas as áreas de atuação.

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