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Contos-->24. O DESPERTAR DE ELVIRA -- 28/04/2002 - 08:03 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Elvira era pobre costureirinha de fábrica de confecções. Desde pequena, labutava dia e noite para ajudar a prover o sustento da família. Tinha vários irmãos menores a quem cabia amparar, dado que todos se viram órfãos de repente, por duplo suicídio motivado por sensibilidade colocada à flor da pele. Incompreensivelmente, foram os rebentos deixados de lado na hora do clamoroso crime, por imposição da mãe.

Longo foi o debate íntimo que envolveu a mente, o coração e a consciência de todos os que se viram agoniados na rua da amargura. Enfim, aos poucos, os pequenos foram acostumando-se com os desvelos da mais velha, que precisou assumir o duplo papel de pai e de mãe. À época do suicídio dos pais, Elvira contava pouco mais de dezoito anos, de modo que bem compreendia os deveres para com todos, especialmente o menorzinho, com idade de três anos. Agora, aos vinte e cinco anos, começava a cansar-se das atividades com que se sobrecarregara, embora a irmã de treze anos já tomasse conta do miserável casebre que lhes sobrou de herança.

Felizmente, alguns parentes ajudaram muito, conquanto se recusassem a adotar qualquer dos irmãos.

Um dia, ao término do expediente na seção de costura, comprometeu-se com certa amiga a comparecer a centro espírita kardecista para aprender, segundo a palavra solta da companheira, os mistérios da vida. Instigara-lhe a curiosidade a injustiça que lhe parecera o ato violento da morte dos pais. Achava que Deus não permitiria, se existisse e cuidasse de suas criaturas, que as crianças sofressem. Ela, tão pequenina e impotente, tudo fizera para amenizar a dor e a fome dos pequerruchos. Se Deus fosse o pai misericordioso que diziam, não poderia tê-la deixado tão sobrecarregada. Mas, enfim...

À noite, pontualmente, na companhia do irmão mais novo, agora com dez anos, o Marquinho, pôs-se à frente do prédio humilde do Centro do Bem Maior à espera da amiga Joana. Enquanto esperava, cismava a respeito dos dizeres. Detinha-se na expressão centro. Que poder tinha essa palavra diante dos humanos! Ouvira, certo dia, um padre amaldiçoar certa pessoa, de cima do púlpito, por ter ido ao centro. Naquela época, freqüentava os bancos da paróquia local, em companhia da mãe. Aí o pensamento se voltou para essa figura tão presente na memória, especialmente no instante supremo em que a acudia, debatendo-se em contorções violentas provocadas pela soda cáustica que ingerira. Se a fé religiosa era forte nela, por que chegou àquele extremo funesto? O desespero da hora do trespasse foi transformando-se em incompreensão e, agora, ao recordar-se dos pais, sentia só desprezo pelos seres que lhe deram a vida do corpo e a morte do espírito, pois lhe suprimiram toda a ilusão e a esperança, justamente na idade dos sonhos e do prenúncio do matrimônio. Após o infausto acontecimento, não mais pensara em constituir família, pois ganhara uma de presente: seis irmãos em idade escolar. Graças a seu esforço, pudera mantê-los na escola, mas não progrediram, estacionando nas séries em que estavam, desestimulados para os estudos, tornando-se agressivos e verdadeiros tormentos para os professores. De todos, o mais quieto e responsável era o caçula. Nesse ponto das lembranças, abraçou o jovenzinho que estava ao seu lado e enxugou furtiva lágrima.

Eis que chegou a amiga e os três tomaram assento no salão de conferências. Elvira notou, de pronto, a simplicidade das acomodações, as toscas cadeiras e a ausência de quadros e imagens. O silêncio é uma prece, dizia a inscrição solitária na imensa parede branca, caiada há pouco. No fundo, repetia-se a inscrição Centro Espirita do Bem Maior. Reparou na falta do acento agudo e observou que nem tudo era perfeito naquele modestíssimo lugar. Imaginou logo que as pessoas deviam ser muito ignorantes porque ela, que mal possuía o curso ginasial, era capaz de reparar em tão flagrante descompostura gramatical. Enfim, calou a observação e pôs-se a prestar atenção às pessoas que chegavam. Distraída, observou que os homens entravam entre sisudos e meio alegres e que as mulheres mantinham invariavelmente o cenho carregado. Resolveu entrar no jogo das fisionomias e, lembrando-se de quando ia à missa, compenetrou-se de que alguma liturgia ia ter curso naquele local.

Às oito horas, marcadas no relógio ao fundo da sala, assumiu a presidência dos trabalhos jovem senhora bem falante, que convidou os presentes a acompanharem a prece de abertura. Não deixou de imaginar que pudesse estar ali alguma freira da organização, uma vez que não compreendia como não fora algum dos homens presentes quem iniciasse os trabalhos. Assustou-se com a escuridão, mas a suave melodia que se escutava ao longe acalmou-a. Seu medo era de ver algum fantasma aparecer em meio ao público, todo branco e vaporoso, pondo pavor nos corações. Acompanhou a prece com interesse e surpreendeu-se com o fato de se repetir ali o pai-nosso.

Mais tranqüila, acompanhou as explicações a respeito da virtude e do amor. Ouviu falar no Cristo/Jesus com muita intimidade, mas o que mais a deixou admirada foram algumas expressões desconhecidas: espírito de luz, protetor, guia, médium, perispírito, que entendeu prispíritu, e outras do jargão próprio do espiritismo.

Ao sair, desejava dizer à amiga que realmente gostara de ter ido à reunião, mas algo lhe dizia para ser bem sincera. O fato de ter tomado um pouco de água benta, a que davam o nome de fluidificada, e de ter ficado no quartinho do lado, sentada, com as mãos espalmadas para cima sobre os joelhos, e de ter alguém feito alguns movimentos com os braços como que afastando algo que lhe estivesse preso ao corpo — o chamado passe —, tudo isso a assustara um pouco. Parecia que algo havia de misterioso.

Acostumada a ir de casa para o trabalho e deste para casa, apesar de interessar-se por algumas novelas da televisão, que, às vezes, via na casa de alguns amigos, pouco sabia das coisas da vida. Desde algum tempo, os irmãos em idade de trabalhar levavam-lhe algum dinheiro e ela estava começando a desafogar-se da pesada carga.

Estranhamente, Joana não lhe perguntou nada a respeito de tudo o que ocorrera; simplesmente, marcou novo encontro para a semana seguinte e passou a comentar os trabalhos da oficina de costura.

Em casa, conversou com o irmão a respeito da visita ao centro, mas este não teceu qualquer comentário. Somente disse para ela ir com a irmã, na próxima vez.

Elvira ficou, assim, só, diante das interrogações. Chegada a semana seguinte, foi sozinha ao centro, mas lá não encontrou a amiga Joana. Esta, ao chegar do trabalho, torceu o tornozelo e não pôde ir à procura da amiga, tendo somente conseguindo enviar-lhe lacônico recado pelo irmão.

Passemos por cima das cinco semanas seguintes em que Elvira foi encontrar-se com a amiga no centro. Para sermos sinceros, interessara-se mais pelo irmão da amiga do que por tudo que ali se fazia. João era rapaz maduro, de cerca de quarenta anos. Desquitado e pai de três meninos, dos quais cuidava com desvelo, ele mesmo viu na amiga da irmã alguém que talvez pudesse ocupar o lugar da mãe dos seus filhos. Elvira bem chegou a imaginar que a torcida de tornozelo pudesse ter sido falsa, mas lembrou-se da goteira que Joana ostentava no dia seguinte ao acidente e afastou a hipótese de que o encontro pudesse ter sido arranjado. Espiritista de primeiras letras, afastou a possibilidade de o mal ter sido causado por algum amigo da espiritualidade, para a aproximação do casal.

Ora, tudo estava a quo para dar certo. Havia interesse de ambos, os irmãos agradaram-se da idéia, uma vez que iriam morar em casa de alvenaria. Os dois mais velhos pensavam já em constituir família. As crianças do João eram ajuizadas e cordatas. Bastava que se desse o mútuo sim. No entanto, as naturais hesitações de quem muito sofreu na vida e a séria influenciação das palestras no centro fizeram com que ambos adiassem por longo tempo a determinação da assunção da responsabilidade do conjugo vobis. Assim, nesse lengalenga, se passaram cinco arrastados anos.

Nesse meio tempo, diversos acontecimentos reduziram em muito as atribulações de Elvira. Três dos irmãos se casaram, inclusive a irmãzinha, e foram levar a vida longe de suas vistas. Marquinho, na verdade, era o único que lhe dava cuidado, pois os outros dois trabalhavam e cuidavam de si. João estava cada vez mais distante, falhando muito na freqüência ao centro espírita. Joana se casou e se mudou para outra cidade. Elvira deixou o emprego de costureira e passou a receber encomendas de costuras em sua modesta residência, que mantinha bem limpa e asseada.

Nessa contextura de vida, passaram mais cinco anos até que Marquinho se constituiu em verdadeiro problema. O mais assentado dentre os irmãos, de repente, virou a mesa e passou a portar-se como verdadeiro rufião. Preso várias vezes, sua ficha na polícia acusava-o de diversos crimes de furtos e assaltos à mão armada.

Elvira, em dez anos de espiritismo e dezessete de real solidão, não tivera tempo de se compenetrar das verdades da vida. Até aquele momento, vira apenas desabrochar e crescer os irmãos que mantivera sob rígido trato. O menor, a quem com mais afeto tratara, dava-lhe, agora, as maiores preocupações. Mas o tempo no Centro Espírita do Bem Maior não fora perdido: ali estava o acento bem nítido a comprovar que alguma participação tivera em suas atividades.

Certa noite de maior desespero, resolveu criar coragem e consultar os amigos da espiritualidade, com relação às atitudes do irmão. Recebeu toda a atenção que sua dedicação merecia, mas não obteve informações particularizadas, apenas palavras de conforto, de consolação e os meios mais propícios para a resignação. Que orasse muito que os espíritos iriam ver o que era possível fazer.

Entrementes, não deixou de visitar o irmão na penitenciária, levando-lhe os livros que mais de perto lhe falavam ao coração. Curtia no fundo da alma a dor da separação e a vergonha de possuir esse elemento tão funesto à sociedade como membro da família. No imo da consciência, tinha receios de que pudesse ter-lhe sido a causa dos desequilíbrios. A polícia descobrira que estava envolvido com tóxicos, mas a jovem senhora não via razão para tal procedimento. Em suma, resignava-se como fizera sempre na vida. Limitou-se a observar as paredes vetustas e frias do velho prédio, as grades nas janelas altas, as pessoas que ingressavam com sobrecenhos, as lágrimas que se derramavam, os uniformes dos guardas e a severidade da revista.

Em casa, chorava e pedia com fervor aos guias que iluminassem a mente ao irmão, para que deixasse a vida de crimes. Teria mais dez anos de cadeia, mas o advogado garantia-lhe que em cinco estaria fora.

Aí Elvira resolveu não esperar mais. Procurou João e propôs-lhe união fraternal. Assumiria a posição de mãe para seus filhos, agora bem taludos, e cuidaria dele até o fim da vida. Cansara de sofrer. Surpreendido com o pedido, João aceitou e ambos passaram a viver maritalmente, dado o empecilho do casamento, em virtude de simples desquite anterior.



Que palavra, que sentimento, que emoção, que pensamento misteriosos haviam despertado Elvira para a vida? No Centro Espírita do Bem Maior, ouvira todo tipo de dissertações morais. Conhecia O Livro dos Espíritos e O Livro dos Médiuns de cor e salteado. O Evangelho Segundo o Espiritismo era o seu livro de cabeceira. No entanto, durante largos anos, convivera com a dúvida, com a dor, com a ânsia provocada pela morte dos pais. Assumira a responsabilidade e desvencilhara-se das tarefas com contumácia e sabedoria. Recolhera-se ao seu mundo interior e enfrentara todas as crises familiais com abnegação. Fizera pelo irmão faltoso mais do que por nenhum outro. Angustiara-se por ele e levantara sérias dúvidas em relação ao procedimento que adotara, à vista do péssimo resultado da educação que lhe propiciara.

Aguardaria mais cinco anos para que o irmão voltasse diferente e devidamente punido pela sociedade? Não.

Chegara a sua vez de participar dos eventos do mundo como membro efetivo da humanidade. Iria crescer em espírito. Transformaria em missão o que lhe parecera até então mera expiação sem sentido. Se precisava resgatar débitos antigos, ela o faria com o máximo de disposição, mas o seu ânimo seria forte e a sua vontade, soberana. Despertara finalmente e assim se manteria até que a vida viesse cobrar-lhe o seu preço. Aceitava a morte dos pais como fraqueza de caráter. Aceitava o desvario do irmão como produto de conduta em desalinho com a necessidade evangélica. Iria superar as dificuldades com a fibra e o vigor da palavra do Cristo. Aceitava a convocação do Mestre e despojava-se de tudo que possuía para segui-lo. Finalmente compreendera que, para fazê-lo, deveria estender seu amor a toda a humanidade, assumindo a sua individualidade, a sua matéria, o seu perispírito e o seu espírito. Iria até o fim em todas as suas realizações. Amaria o esposo, os enteados, os irmãos e os sobrinhos. Visitaria o infeliz recluso e lhe propiciaria toda a assistência, mas fá-lo-ia o só responsável pelos seus crimes. Que pagasse as dívidas para com a sociedade e para com Deus. Se dela necessitassem, estaria pronta para servir.

Aparvalhou com a deliberação o indeciso João e deixou a amiga distante espantada com as transformações. Revolucionou o Centro Espírita do Bem Maior, implementando os serviços do socorrismo ativo. Introduziu no ambiente o sorriso nos lábios de todos e fez até com que os espíritos morigerassem as invectivas contra os irmãos, como se fossem culpados pelas mazelas da humanidade. Verberava contra os sofredores palavras candentes de destemor e fazia-os compreender que acima de todos reinava soberano o criador do universo, Deus, em sua augusta onipotência. Fazia-se respeitar pela seriedade das observações, pela firmeza da convicção e pela força dos argumentos. Fazia-se amar pela lhanura da determinação em amparar e servir e pelo espírito de sacrifício de nunca desmentida dedicação e desprendimento.

Elvira tornou-se o símbolo da determinação e da vontade de vencer. Cresceu em inteligência, em sutileza e na percepção dos problemas alheios. Passou a ser a dona de seu destino.

Perguntada a respeito do que a levara a tal transformação, revelou o poder que se continha na expressão que encimava o frontispício do prédio: compreendia, finalmente, o que deveras significava o Bem Maior, que permite a todos aproximarem-se de Deus.

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