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Infanto_Juvenil-->QUANDO MORRE UMA BONECA? -- 27/05/2019 - 16:11 (Adalberto Antonio de Lima) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
 
 
Os gêneros literários não morrem 
Passam pela metamorfose da evolução do homem 
e do mundo. Eclodem e tornam-se eternamente vivos.
 
Tinha sete anos, e  se lembrava de quase todas as estórias que sua avó contava. Corina passava a mão na cabeça da netinha e dizia: ‘Durma, Princesa, durma... Vou retirar os monstros dos teus olhos. Pode dormir agora. Eles já se foram!’  Dormia, não sem antes reclamar: “Eles estão voltando, vovó! Os monstros estão em meus olhos e não me deixam dormir. Conte uma estória!”
— Posso contar outra vez A Lagoa Encantada?
— Não, aquela não! Tenho medo da carimbamba.
— Já contei todas  que sabia!
— Pode ser inventada, vovó!  Pode ser inventada.
— Todas as estórias são inventadas, minha filha!
— Então invente uma!
 
E Corina contou.
 
A fada da sabedoria foi convidada para um congresso que deveria acontecer, nos primeiros dias de vida de uma pequena formiga albina. A formiga seria um fardo para o formigueiro, por isso, deveria ter sido arrancada e jogada fora, quando ainda ovo.
 O destino da pequena formiga estava prestes a transformar-se num exílio de vida ou numa pena de morte, mas, por sorte, a fada madrinha postou-se no meio da assembleia e vaticinou: ‘Esta menina será frondosa como uma palmeira, e quando soprar o vento Norte, navegará os sete mares e será muito aplaudida. O som de seu trompete será um acalento para a alma de quem dela se aproxima, e toda a Terra conhecerá seus feitos. ’   Houve profundo silêncio, no mundo encantado das formigas, em seguida, a rainha decretou:  ‘A partir de agora, a formiga albina se chamará Beethoven. Providenciem a orquestra, organizem o espetáculo, quero ouvir o último momento da quinta sinfonia. ’
— Beethoven existiu de verdade, vovó?
— A formiga Beethoven, só existiu na imaginação de seu criador, mas o compositor existiu. A nova sinfonia de Beethoven, por exemplo, faz um bem enorme a minha alma. Por certo, minha filha, gerações futuras, haverão de usar a boa  música para estimular o cérebro humano a se reorganizar.
Teve vontade de dizer que o menino Davi tocava harpa quando, o rei Saul se sentia perturbado por maus espíritos, e logo que Davi tomava a harpa, Saul acalmava-se, sentia-se aliviado e o espírito mau o deixava.  Pareceu que Corina falava de um menino sem parte do cérebro, que  aprendera a ler e a escrever, ouvindo músicas. Mas... como poderia ela saber de Herman, se ele ainda  não nasceu? Como saber se não será abortado?  Muitos morrem antes de nascer!... 
Como morre  uma pessoa antes de nascer, a boneca de Ravenala  não compreendia. Talvez Corina falasse de seu filho Ludovico que tinha  um buraco no cérebro, viveu sete anos e aprendeu a tocar cavaquinho. Ou falasse mesmo de Beethoven! Não necessariamente da formiga, mas do alemão filho de dona Magdalena. 
— Beethoven tinha um buraco no cérebro?
— Não! Ele tinha um cérebro privilegiado.
— Não entendi.
— Desculpe-me, Maria Emília! Esqueço que tua cabeça é de pano.
— Branquela!
— Cuidado com o preconceito racial. Isso pode ser considerado crime.  Em algum país do mundo,  é crime quebrar um ovo de tartaruga, mas é permitido matar um feto humano.
O diálogo interrompeu-se.  Passos arrastados aproximam-se do quarto. 
— É vovó! Finja que dorme!...
— Já estou fingindo.
O trinco deu um estalo e a porta do quarto se abriu. Corina vê a boneca embrulhada em panos de dormir.
— Vovó! Emília está aborrecida comigo.
— Por que sua boneca está brava contigo?
— Dei uma palmada no bumbum dela.
Corina fez uma retrospectiva do que ocorrera naquele dia, e se recorda  de que, ainda cedo da manhã, “acariciara” o traseirinho de Ravenala, com uma palmada, por  causa de uma travessura.
— Durma, minha filha! Assim que o sol nascer,  você pedirá desculpas a Emília!
— E se o sol não nascer de novo? Tenho medo! Não deveria haver noite! Vultos vagueiam. Vampiros e lobisomem passeiam na escuridão.
— Isso é lenda!
— A carimbamba também é lenda? Tenho medo da carimbamba.
— Às vezes,  a ficção avança os muros da realidade ou a realidade penetra o labirinto da ficção. O que hoje é ficção, amanhã pode ser realidade, mas monstros não existem. Eles são obras criadas por mente doentia.
Ravenala insiste.
— A carimbamba existe?
 — Quando se acredita numa coisa, ela passa a existir de verdade. Mas a carimbamba só existe em teus medos. E agora que ela se casou com a mocinha camponesa, o encanto foi quebrado.
— E a velhinha?
— Bem, a velhinha faz parte da técnica utilizada pelo autor, para que a história nunca acabe, continue viva e passe de geração para geração. A ficção mostra-se  tão real, que  personagens dos contos de fadas saem dos livros e vão morar em mundos reais, como a tua  boneca. Sabe de onde ela  veio?
— Emília  me falou que seu pai era  um homem bom, e foi preso, porque escrevia livros. Se eu escrever um livro, também serei presa?
— Não dê crédito a tudo  que diz uma boneca. Agora, durma, Princesinha.
Corina retirou-se.
 Seus passos lentamente se afastavam, até desparecerem do alcance auditivo da neta.
— Pode acordar,  Emília, a vovó já foi.
— Ufa! Já estava cansada de fingir...
A  noite desce sem luar e sem  estrelas;  tinge  o céu com o negrume da escuridão,  e tece o cenário dos heróis do medo. Temente, o próprio medo treme, e cambaleia. O anjo das trevas passeia, tocando com suas asas a imaginação das crianças. Assustada,  a boneca tem medo do homem que cada menino constrói dentro de si, a partir da interação com brinquedos monstruosos. Maria Emília já não gosta  mais dos filmes de terror, vez por outra, acordava de sobressalto, por causa de  pesadelos habitados por criaturas diabólicas, que outrora, via na TV. Assim, quando passou a pensar como uma pessoa adulta, ela considerava que monstro é criação de mente doentia: diabinhos que o autor transfere em forma de imagem para livros, revistas, e  telinha  de canais aberto da televisão. Corina também pensava assim, e já dissera isto a Ravenala, na presença da boneca.
Insone, Maria Emília refletia: “Se é verdadeiro dizer que os sinais sonoros e visuais descortinam emoções,  também é verdadeiro afirmar que este  mesmo conjunto de imagens e som leva a atitudes e condutas de acordo com a percepção, em torno da qual, orbitam os sentidos humano.” E, pela primeira vez, a boneca de pano foi tomada por  sentimentos estranhos, desejou ser a rainha das  bonecas, ter muitos súditos e um grande exército para combater o inimigo que lhe perturba o sono.  
— Ravinha, gostaria de ser corajoso como Bob.
— Os homens escondem seus medos, quando estão diante das mulheres. Faça  o teste — disse Ravenala —  quando Bob disser que não tem medo, olhe os lábios dele. Se tremerem ele está mentindo.  
— Não são mais os olhos a janela do coração? — quis saber a boneca.
— O rosto é  o lado externo do coração; os olhos, ambos os lados; mas são os lábios que escondem ou revelam a verdade. 
Teve vontade de dizer que o coração do homem modifica seu rosto, para o bem ou para o mal. Assim, não podem ser do Bem os brinquedos com faces monstruosos. Então, pensou em construir uma boneca com duas faces: uma com rosto feliz  e outra com rosto  triste. Mas, reprovou ela mesma seu projeto. Melhor fazer duas bonecas: uma triste e a outra feliz, e quando estivesse triste, brincaria  com a boneca triste... Não!  Isso a levaria a entristecer-se mais ainda. E sorriu da ideia que invadiu sua mente. Depois chorou profundamente, com pena dos meninos que brincam com criaturas monstruosas, e têm suas noites perturbadas por pesadelos. “Por que não produzir bonecos à imagem e semelhança de santos?  Assim, as crianças sonhariam com anjos, e não com demônios fazendo diabruras em suas mentes.”  E novamente questionou:  Como podem dormir as crianças com um barulho destes:  “O cravo brigou com a rosa, debaixo de uma sacada, o cravo saiu ferido, e a rosa despedaçada...”  “A canoa virou, deixou de virar. Foi por causa de Rosinha que não soube remar...”    Ora, ora! Que me dizes?  Põe anjo nos sonhos de seu filho, não pesadelos.
Fingindo que dormia, Maria Emília cobriu o rosto,  tentando  compreender o que pensava a amiga a respeito dos monstros  apresentados às crianças como inofensivos brinquedos. E concluiu: “Não existe monstro bonzinho. Monstros  se apresentam  como justiceiros, fazem o bem a uma pessoa e o mal a outra em nome da justiça.” Descobriu o rosto e pediu a Ravenala que contasse uma estória que lhe fizesse dormir.
— Estou sem sono!
— Conte carneirinhos. Conte assim: “Um carneirinho pulou a cerca;  dois carneirinhos, três carneirinhos... ”
A boneca iniciou a contagem, mas o sono não veio.
— Já  contei 99 e ainda não consegui dormir.
— É porque um desgarrou-se! Não dormirás, enquanto não encontrares a ovelha perdida. 
— Cansei de contar. Quero dormir!
— Peça a seu anjo da guarda para lhe trazer a poção do sono...
— Vou dar mais uma volta pelos pratos e campinas, pode ser que lá eu encontre a ovelha ferida.
— Prados e campinas passam uma ideia de paz, e frescor. Procure sua ovelha  nos lugares mais inóspitos que possa imaginar. Talvez lá ela esteja.
Em sonho, a  boneca Maria Emília andou pelo deserto, mares e vilarejos à procura de sua ovelha. E lamentou: “O mundo encantado está em processo de desconstrução. Muitas bonecas foram  jogadas no lixo, porque lhes faltavam braço ou pernas; outras agonizam arrastadas por  águas turbulentas da liberdade descontrolada.”
Acordou assustada.
— Estou ouviu um estrondo como o ribombar de mil trovões e vejo o anjo das trevas cobrir  a terra com sua sentença de morte e gritar com sua voz cavernosa:  Tudo está perdido. Apagado. A  Verdade e princípio de fé; tudo está perdido. Deus está morto.
 Ouviu ainda o tropel de muitos cavalos, e o tinir de espadas da corte celeste em luta contra as forças do mal.  
Ravenala puxou a caixa de sapatos que estava debaixo da cama. Ergueu a tampa. Maria Emília  estava fria.
— Vovó, vovó!...
— Que houve, minha filha?
— Emília morreu!
— Bonecas não morrem. As meninas  crescem, e guardam suas bonecas no armário. 
— Maria Emília morreu. Quero um velório com todas as honrarias que ela merece. 
A avó entendeu que era preciso penetrar no mundo das crianças, para compreender o recado que elas mandam aos adultos nas falas e diálogos estabelecidos com as bonecas.  Era hora de guardar a boneca de Ravenala, como ela, Corina,  guardara a sua quando ficara mocinha.
— Podes fazer tua boneca  voltar  a viver outra vez.
— Ela está velhinha demais, vovó.  Não pode nascer de novo!
—Pode, minha filha! No fantástico mundo da imaginação, tudo é possível. Nele, o intangível torna-se palpável.  Agora, durma. Já é noite.
— As pessoas não dormem em velório.
— Que velório, Ravenala?
— Velório de Maria Emília. Minha boneca morreu!
— Eu morta? — disse baixinho, de modo que só Ravenala pôde ouvir — sou obra da ficção, vivendo uma realidade humana, ou sou humana, vivendo uma ficção? 
— Ora, Emília! A   ficção é uma realidade que ainda não aconteceu.
— Verdade! Vi  Machado tecendo o perfil psicológico de Capitu.  Afinal, Capitu traiu  o marido, ou não? 
— Muitos leitores  atiram-na do monte Capitolino, outros, acusam Bentinho pela morte de Escobar.  Somos uma colcha de retalhos tecida de muitos sonhos, bons ou ruins temos esse pano velho plasmado nas entranhas e carregamos na carne, em partes menores, traços de muitas gerações. 
Ravenala teve dúvidas se a boneca entendeu ou não a conversa, então, abriu um livro e folheou algumas páginas em que  um homem de sobrancelhas fechadas dava a uma boneca os primeiros traços de vida.
— Veja, se  esquadrinhamos o perfil psicológico de  cada personagem, vamos  encontrar recortes da personalidade do criador.  Ele não se livra  de suas próprias lembranças. Mais cedo ou  mais  tarde, elas aparecem na face ou na alma de seus personagens. O autor coloca um pouco dele mesmo em cada personagem que cria. Entendeu?
— Não consigo processar tanta informação, derramada assim de uma só vez. É justo fazer  isso com uma boneca que tem cérebro de pano?
— Bob também pensava assim. Hoje ele reconhece que devemos apenas levantar hipóteses.
— O Bob só existe em tua  imaginação, princesinha. Ele não é real.
— Claro que o Bob existe! Esteve conosco na Quinta da Boa Vista. Não te lembras?
—Aquele é Robert!
— Robert    e Bob são a mesma pessoa.
— Desta vez, pensei como boneca!
— Nem tanto! Para meu pai, Robert  é Bob. Para minha mãe, Robert é apenas o filho da quase vizinha.
— E para ti?
— Para mim, Bobinho... Às  vezes, bobinho. (pronunciado com vogal fechada no primeiro ‘ô’)
— Bob não é bobo! (ô)
—Bobinho (ô) é uma forma de tratar as pessoas com intimidade.  Neste caso, não tem o sentido de tolo.
— Que é ser  quase vizinha?
— É uma pessoa que mora meio perto. Quase longe. Quase longe é quase perto. Quem mora em teu coração, mesmo estando longe, está perto. Isso é quase perto.
— Entendi quase tudo. 
Esperou Emília acusá-la de plágio ou pelo menos de fazer  um paralelo entre o ‘quase longe, e quase perto’ de Ravenala e o diálogo do pequeno príncipe com a raposa de Bach. Mas a boneca, a  boneca simplesmente  acrescentou: 
— Começas a amar uma pessoa no momento em que te aproximas do coração dela. Se nunca te aproximares, ela estará sempre longe, mesmo estando perto. Isso é quase longe. Mas se te aproximares dela, ainda que venha a se separar geograficamente, e, estando longe, estará perto. Isso é quase perto.
 Ficou contente, porque Emília aprendeu o que lhe foi ensinado e nunca mais pensou que não devesse dar ouvidos ao que diz uma boneca.

***
Adalberto Lima, parte do primeiro capítulo de "Estrela que o vento soprou..."
Adalberto Lima
Enviado por Adalberto Lima em 27/05/2019
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