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Contos-->29. O AVARO CONSCIENTE -- 03/05/2002 - 05:49 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Salvador era o nome daquele indivíduo. Sentava-se à mesa dos médiuns e pretendia receber os espíritos mais variados para as suas comunicações. Realmente, de quando em quando, exprimia certas idéias com que absolutamente não partilhava, mas fazia-o por dever de ofício. O que deveras o atemorizava era a possibilidade de ser atingido por certeira flechada em seu ponto fraco: a avareza. Por isso, não se derramava em palavras fáceis no intuito de bem compenetrar-se de que tudo o que dizia era fruto da responsabilidade dos interlocutores.

Na verdade, tal atitude preventiva tinha efeito contrário e, cada vez mais, ficava mais fácil provocá-lo a falar espontaneamente. Se não dava curso à voz do etéreo, nem por isso queria deixar de participar, o que o levava a longas perlengas a respeito de temas cediços e cansativamente repetidos, dentre os quais o mais freqüente era o da necessidade da confraternização universal, momento em que invectivava contra as leis e os costumes humanos que mantinham distorções sociais, fazendo com que o grosso do povo vivesse na miséria. Responsabilizava o governo, os grandes proprietários, os gordos fazendeiros, os obesos comerciantes, enfim, voltava-se contra as grandes fortunas e não descia jamais aos aspectos morais do espírito da fraternidade e da necessidade de todos praticarem a caridade. Desconhecia a figura do óbolo da viúva e não se lembrava de que as moedas enferrujavam sob o solo.

Contudo, Salvador era consciente do mal que o afligia, do mesmo modo que o fumante, sem largar o cigarro, é capaz de reconhecer cientificamente todos os males da nicotina e do alcatrão, bem como o bêbado contumaz, quando sóbrio, pode discursar longamente a respeito das ruinosas conseqüências orgânicas e morais dos eflúvios alcoólicos. Sabia-se avarento mas sentia isso como contingência do destino ou vestimenta da personalidade. Dizia de si para consigo mesmo, economizando as palavras e as idéias: “Se eu tiver de pagar, pagarei”, mas não abria o bolso para fornecer níquel a ninguém.

Certo dia, ficou doente de internar. A família, que desconhecia o valor de suas posses, à vista de ter sempre prodigalizado bons conselhos e dado assistência moral indefectível para todos que a ele recorreram nos momentos de transe, colocou-o no melhor hospital da região, caríssimo nosocômio, por onde passavam só as pessoas mais gradas e poderosas da sociedade. Arcariam, de fato, com as despesas, principalmente porque o filho mais velho era médico e mantinha estreito relacionamento com o pessoal administrativo da entidade.


Mas Salvador ignorava tais circunstâncias. Ao despertar para o luxo das acomodações, pois se encontrava em apartamento privativo com direito até a acompanhante, quase desfaleceu. Esquecido de que poderia deixar ali a própria vida, temeu pelo dinheiro acumulado em desconhecidas contas bancárias ou transformados em lingotes de ouro escondidos em cofres-fortes, cujo paradeiro só ele sabia.

Chamou o médico de plantão e exigiu dele extenso relatório a respeito de seu estado de saúde. Foi informado de que tinha sido operado às pressas, com sério distúrbio cardiovascular, tendo sido necessária demorada e problemática intervenção cirúrgica. Fazia quatro dias que havia saído da unidade de terapia intensiva, onde permanecera em coma por mais de dez dias. Os curativos nessa época eram de obrigação, de modo que o extenso corte no peito estava inteiramente camuflado.

— Onde está meu filho? — perguntou, inopinadamente.

— Saiu há uma hora para acompanhar alguns amigos que vieram para vê-lo. Segundo pude avaliar, eram pessoas do convívio religioso do senhor.

Salvador suspendeu ali a conversa e solicitou a presença da enfermeira, para ministrar-lhe algum analgésico para a dor de cabeça que se instalava. Não percebeu que, à vinda dos amigos, se tinha seguido o despertar do estado letárgico em que se encontrava e só se preocupava em ter de pagar a conta. A operação, os mais de quinze dias internado, a assistência médica especializada, os medicamentos, até as propinas que julgava serem indefectíveis, tudo o preocupava, especialmente certo temor intuitivo de que o anestesista teria tido muito trabalho e cobraria o valor correspondente.

Fraco, viu-se a ponto de desmaiar. A temperatura subiu, a pressão aumentou e o plantonista foi chamado para a emergência. Por pouco não esticava as pernas naquela ocasião. Mas estava escrito que os sustos perdurariam por alguns dias.

Em suave tarde de março, ao término do verão, desconhecendo que as contas iriam ser pagas pelo filho, deixou a carcassa no leito hospitalar. Tão suave foi o trespasse que não se acreditou morto. Antes, levantou-se lépido, invectivou os médicos como incompetentes e vestiu as roupas que estavam no armário. Reconheceu-se bem mais magro, mas estranhou que o tivessem mantido por tanto tempo deitado quando poderia locomover-se com tamanha facilidade. Chamou de novo os doutores de incompetentes e saiu do quarto e do hospital, repetindo a expressão: “Incompetentes! Incompetentes! Incompetentes!...” Achava que os sedativos é que o tinham chumbado ao leito.

Em sua alucinação, passou direto pela portaria e pretendeu deixar de pagar a conta, tendo em vista sentir-se tão bem. Eles que se atrevessem a correr-lhe atrás. Iria à justiça e exigiria indenização por perdas e danos. Ouvira dizer que, nos Estados Unidos, as pessoas ganhavam milhões de dólares por reclamações contra erros médicos. Faria o mesmo.

Dirigiu-se para os locais em que escondia o dinheiro e pôde, sensação estranha, verificar que tudo estava lá sem mesmo ter tido de abrir os cofres. Voltou para casa e encontrou-a vazia. Na cozinha estava a velha tia fazendo café, mas não quis perturbá-la com a surpresa da volta tão inesperada. Subiu as escadas, trocou de roupa e meteu-se no leito, pretendendo refazer as forças um tanto abaladas pela caminhada. Não percebera que o hospital distava de casa mais de quarenta quilômetros. Preparou o despertador para as seis da tarde e fechou os olhos para dormir. Sua pretensão era comparecer à sessão de seu grupo, às oito.

Dormir não dormiu mas imaginou o que inventaria naquela noite para não passar o dissabor de ficar repetindo as velhas histórias. Imaginou-se recebendo o espírito de um perdulário e teceu longo discurso para a ocasião.

De repente, avaliou o horário e percebeu que havia deixado o momento oportuno para a chegada a tempo. Não se perturbou, no entanto, pois tinha excelente desculpa para atrasar-se; afinal de contas, deixara o leito hospitalar naquela tarde. Mesmo assim, apertou o passo e chegou ao centro dez minutos depois de iniciada a sessão. Sabia que não se admitiam retardatários mas, lembrando-se de ter passado despercebido pela atendente do hospital, acionou a porta e, silenciosamente, foi instalar-se em sua posição habitual.

Chegou a tempo de ouvir sentida prece do orientador da casa em que se fazia menção ao seu nome e à sua vida. Ficou emocionado com a lembrança e pediu a palavra para agradecer. Estranhamente, tudo o que dizia era repetido pelo amigo João, excelente médium psicofônico, cujas comunicações aceitavam desde espíritos infelizes, sofredores impenitentes, até entidades de luz; enfim, toda a gama da espiritualidade.

Ao pedir-lhe para que não repetisse mais o discurso, admirou-se de ser por ele interrogado. Que desplante, tratá-lo com tanta desconsideração; que se lembrasse das belas palavras de há pouco. Perguntaram-lhe como havia chegado até ali e respondeu que a pé, como sempre fizera. Quiseram saber também como viera do hospital. “A pé!”, foi a resposta pronta. Impertinência das impertinências, exigiam que dissesse o nome do hospital e onde ficava. Declarou-o a contragosto. Aí a dúvida surgida. Se o hospital ficava tão distante, como pudera, recentemente operado de tão grave afecção coronária, ter caminhado tanto?

Não respondeu na hora, pois hesitava em revelar que estivera junto à sua preciosa fortuna, o que acrescentava mais vinte quilômetros à distância percorrida. Ainda não atinara com a sua condição de espírito.

Pediu licença para retirar-se mas, nesse instante, adentraram a sala dois elegantes médicos trajados de branco, cuja luz parecia ofender a obscuridade reinante. Travou-se entre os três interessante debate a respeito da vida e da morte que teve por desfecho longo desfalecimento de nosso amigo. Socorrido pelos companheiros do plano espiritual, foi conduzido para entidade hospitalar no etéreo, onde se constatou a necessidade de nova intervenção cirúrgica, desta feita no perispírito, com vistas a estancar séria hemorragia fluídica.

Calemos as referências técnicas para não estragar a surpresa aos leitores que um dia se virem na situação do caro Salvador. Digamos, apenas, que, ao despertar da letargia, acionou a campainha e convocou a presença do médico de plantão. Para surpresa sua, compareceram os mesmos dois facultativos da véspera. Quis saber onde estava, quais os males de que padecia e, principalmente, quem iria pagar a conta.

— Deste ou daquele outro hospital?

— Penso que deste porque daquele saí sem que percebessem.

— Pois seu filho pagou todas as despesas, inclusive o caixão e a tumba.

Intenso alívio perpassou pelo coração do avarento. Certamente a sua fortuna estava a salvo.

— Seu filho soube das contas bancárias do senhor e muito se surpreendeu com as quantias lá depositadas. Pensa em erguer magnífico mausoléu em sua homenagem.

Salvador esfriou o ânimo. Ainda bem que restavam as barras de ouro e as letras do tesouro.

— E esta conta, quem irá pagar?

— Não se preocupe. Apesar de não ser muito, o que você guardou durante a vida será suficiente. Restará, talvez, o dinheiro da propina, mas este você encontrará guardado em determinados cofres, cujo paradeiro só você conhece. Mas tal cobrança é livre e não se efetuará agora. Por enquanto, recomendamos-lhe profundo repouso e a leitura dos Evangelhos, especialmente da passagem do óbolo da viúva e da parábola das moedas enterradas.

Salvador era capaz de repetir de cor os dois trechos citados, mas guardou silêncio diante dos orientadores.

À noite, chorava baixinho e recitava comovido o Salmo XXIII: “O Senhor é meu pastor: nada me faltará...”



Salvador era o nome daquele indivíduo. Sentava-se à mesa dos médiuns e pretendia receber os espíritos mais variados para as suas comunicações. Realmente, de quando em quando, exprimia certas idéias com que absolutamente não partilhava, mas fazia-o por dever de ofício. O que deveras o atemorizava era a possibilidade de ser atingido por certeira flechada em seu ponto fraco: a avareza. Por isso, não se derramava em palavras fáceis no intuito de bem compenetrar-se de que tudo o que dizia era fruto da responsabilidade dos interlocutores.

Na verdade, tal atitude preventiva tinha efeito contrário e, cada vez mais, ficava mais fácil provocá-lo a falar espontaneamente. Se não dava curso à voz do etéreo, nem por isso queria deixar de participar, o que o levava a longas perlengas a respeito de temas cediços e cansativamente repetidos, dentre os quais o mais freqüente era o da necessidade da confraternização universal, momento em que invectivava contra as leis e os costumes humanos que mantinham distorções sociais, fazendo com que o grosso do povo vivesse na miséria. Responsabilizava o governo, os grandes proprietários, os gordos fazendeiros, os obesos comerciantes, enfim, voltava-se contra as grandes fortunas e não descia jamais aos aspectos morais do espírito da fraternidade e da necessidade de todos praticarem a caridade. Desconhecia a figura do óbolo da viúva e não se lembrava de que as moedas enferrujavam sob o solo.

Contudo, Salvador era consciente do mal que o afligia, do mesmo modo que o fumante, sem largar o cigarro, é capaz de reconhecer cientificamente todos os males da nicotina e do alcatrão, bem como o bêbado contumaz, quando sóbrio, pode discursar longamente a respeito das ruinosas conseqüências orgânicas e morais dos eflúvios alcoólicos. Sabia-se avarento mas sentia isso como contingência do destino ou vestimenta da personalidade. Dizia de si para consigo mesmo, economizando as palavras e as idéias: “Se eu tiver de pagar, pagarei”, mas não abria o bolso para fornecer níquel a ninguém.

Certo dia, ficou doente de internar. A família, que desconhecia o valor de suas posses, à vista de ter sempre prodigalizado bons conselhos e dado assistência moral indefectível para todos que a ele recorreram nos momentos de transe, colocou-o no melhor hospital da região, caríssimo nosocômio, por onde passavam só as pessoas mais gradas e poderosas da sociedade. Arcariam, de fato, com as despesas, principalmente porque o filho mais velho era médico e mantinha estreito relacionamento com o pessoal administrativo da entidade.


Mas Salvador ignorava tais circunstâncias. Ao despertar para o luxo das acomodações, pois se encontrava em apartamento privativo com direito até a acompanhante, quase desfaleceu. Esquecido de que poderia deixar ali a própria vida, temeu pelo dinheiro acumulado em desconhecidas contas bancárias ou transformados em lingotes de ouro escondidos em cofres-fortes, cujo paradeiro só ele sabia.

Chamou o médico de plantão e exigiu dele extenso relatório a respeito de seu estado de saúde. Foi informado de que tinha sido operado às pressas, com sério distúrbio cardiovascular, tendo sido necessária demorada e problemática intervenção cirúrgica. Fazia quatro dias que havia saído da unidade de terapia intensiva, onde permanecera em coma por mais de dez dias. Os curativos nessa época eram de obrigação, de modo que o extenso corte no peito estava inteiramente camuflado.

— Onde está meu filho? — perguntou, inopinadamente.

— Saiu há uma hora para acompanhar alguns amigos que vieram para vê-lo. Segundo pude avaliar, eram pessoas do convívio religioso do senhor.

Salvador suspendeu ali a conversa e solicitou a presença da enfermeira, para ministrar-lhe algum analgésico para a dor de cabeça que se instalava. Não percebeu que, à vinda dos amigos, se tinha seguido o despertar do estado letárgico em que se encontrava e só se preocupava em ter de pagar a conta. A operação, os mais de quinze dias internado, a assistência médica especializada, os medicamentos, até as propinas que julgava serem indefectíveis, tudo o preocupava, especialmente certo temor intuitivo de que o anestesista teria tido muito trabalho e cobraria o valor correspondente.

Fraco, viu-se a ponto de desmaiar. A temperatura subiu, a pressão aumentou e o plantonista foi chamado para a emergência. Por pouco não esticava as pernas naquela ocasião. Mas estava escrito que os sustos perdurariam por alguns dias.

Em suave tarde de março, ao término do verão, desconhecendo que as contas iriam ser pagas pelo filho, deixou a carcassa no leito hospitalar. Tão suave foi o trespasse que não se acreditou morto. Antes, levantou-se lépido, invectivou os médicos como incompetentes e vestiu as roupas que estavam no armário. Reconheceu-se bem mais magro, mas estranhou que o tivessem mantido por tanto tempo deitado quando poderia locomover-se com tamanha facilidade. Chamou de novo os doutores de incompetentes e saiu do quarto e do hospital, repetindo a expressão: “Incompetentes! Incompetentes! Incompetentes!...” Achava que os sedativos é que o tinham chumbado ao leito.

Em sua alucinação, passou direto pela portaria e pretendeu deixar de pagar a conta, tendo em vista sentir-se tão bem. Eles que se atrevessem a correr-lhe atrás. Iria à justiça e exigiria indenização por perdas e danos. Ouvira dizer que, nos Estados Unidos, as pessoas ganhavam milhões de dólares por reclamações contra erros médicos. Faria o mesmo.

Dirigiu-se para os locais em que escondia o dinheiro e pôde, sensação estranha, verificar que tudo estava lá sem mesmo ter tido de abrir os cofres. Voltou para casa e encontrou-a vazia. Na cozinha estava a velha tia fazendo café, mas não quis perturbá-la com a surpresa da volta tão inesperada. Subiu as escadas, trocou de roupa e meteu-se no leito, pretendendo refazer as forças um tanto abaladas pela caminhada. Não percebera que o hospital distava de casa mais de quarenta quilômetros. Preparou o despertador para as seis da tarde e fechou os olhos para dormir. Sua pretensão era comparecer à sessão de seu grupo, às oito.

Dormir não dormiu mas imaginou o que inventaria naquela noite para não passar o dissabor de ficar repetindo as velhas histórias. Imaginou-se recebendo o espírito de um perdulário e teceu longo discurso para a ocasião.

De repente, avaliou o horário e percebeu que havia deixado o momento oportuno para a chegada a tempo. Não se perturbou, no entanto, pois tinha excelente desculpa para atrasar-se; afinal de contas, deixara o leito hospitalar naquela tarde. Mesmo assim, apertou o passo e chegou ao centro dez minutos depois de iniciada a sessão. Sabia que não se admitiam retardatários mas, lembrando-se de ter passado despercebido pela atendente do hospital, acionou a porta e, silenciosamente, foi instalar-se em sua posição habitual.

Chegou a tempo de ouvir sentida prece do orientador da casa em que se fazia menção ao seu nome e à sua vida. Ficou emocionado com a lembrança e pediu a palavra para agradecer. Estranhamente, tudo o que dizia era repetido pelo amigo João, excelente médium psicofônico, cujas comunicações aceitavam desde espíritos infelizes, sofredores impenitentes, até entidades de luz; enfim, toda a gama da espiritualidade.

Ao pedir-lhe para que não repetisse mais o discurso, admirou-se de ser por ele interrogado. Que desplante, tratá-lo com tanta desconsideração; que se lembrasse das belas palavras de há pouco. Perguntaram-lhe como havia chegado até ali e respondeu que a pé, como sempre fizera. Quiseram saber também como viera do hospital. “A pé!”, foi a resposta pronta. Impertinência das impertinências, exigiam que dissesse o nome do hospital e onde ficava. Declarou-o a contragosto. Aí a dúvida surgida. Se o hospital ficava tão distante, como pudera, recentemente operado de tão grave afecção coronária, ter caminhado tanto?

Não respondeu na hora, pois hesitava em revelar que estivera junto à sua preciosa fortuna, o que acrescentava mais vinte quilômetros à distância percorrida. Ainda não atinara com a sua condição de espírito.

Pediu licença para retirar-se mas, nesse instante, adentraram a sala dois elegantes médicos trajados de branco, cuja luz parecia ofender a obscuridade reinante. Travou-se entre os três interessante debate a respeito da vida e da morte que teve por desfecho longo desfalecimento de nosso amigo. Socorrido pelos companheiros do plano espiritual, foi conduzido para entidade hospitalar no etéreo, onde se constatou a necessidade de nova intervenção cirúrgica, desta feita no perispírito, com vistas a estancar séria hemorragia fluídica.

Calemos as referências técnicas para não estragar a surpresa aos leitores que um dia se virem na situação do caro Salvador. Digamos, apenas, que, ao despertar da letargia, acionou a campainha e convocou a presença do médico de plantão. Para surpresa sua, compareceram os mesmos dois facultativos da véspera. Quis saber onde estava, quais os males de que padecia e, principalmente, quem iria pagar a conta.

— Deste ou daquele outro hospital?

— Penso que deste porque daquele saí sem que percebessem.

— Pois seu filho pagou todas as despesas, inclusive o caixão e a tumba.

Intenso alívio perpassou pelo coração do avarento. Certamente a sua fortuna estava a salvo.

— Seu filho soube das contas bancárias do senhor e muito se surpreendeu com as quantias lá depositadas. Pensa em erguer magnífico mausoléu em sua homenagem.

Salvador esfriou o ânimo. Ainda bem que restavam as barras de ouro e as letras do tesouro.

— E esta conta, quem irá pagar?

— Não se preocupe. Apesar de não ser muito, o que você guardou durante a vida será suficiente. Restará, talvez, o dinheiro da propina, mas este você encontrará guardado em determinados cofres, cujo paradeiro só você conhece. Mas tal cobrança é livre e não se efetuará agora. Por enquanto, recomendamos-lhe profundo repouso e a leitura dos Evangelhos, especialmente da passagem do óbolo da viúva e da parábola das moedas enterradas.

Salvador era capaz de repetir de cor os dois trechos citados, mas guardou silêncio diante dos orientadores.

À noite, chorava baixinho e recitava comovido o Salmo XXIII: “O Senhor é meu pastor: nada me faltará...”

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