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Contos-->34. A BONDADE DE ANTÃO -- 07/05/2002 - 07:06 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Antão era jovem quando foi convocado para o serviço do Senhor. Desde cedo, deu-se à ponderação a respeito dos bens da vida e da morte e optou pelo sagrado dever de filiar-se a certa seita religiosa da preferência dos pais. Se pudesse escolher, iria ser eremita no deserto, pois sua tendência ao isolamento era forte, reflexo, provavelmente, do modo de ser meditativo e distante.

Entre os colegas da primeira idade, alguns extraviaram-se pelo mundo, mas dois, Pedro e Augusto, solidificaram plena amizade entre si, de modo que o terceto formou grupelho inseparável. Pedro dedicou-se às artes plásticas, tornando-se emérito pintor, filiado às tendências mais inovadoras: era vanguardista e, para tanto, precisava inteirar-se de todas as modalidades filosóficas, literárias e culturais do século. Augusto, ao contrário, reservado e cético, dedicou-se à medicina e foi clinicar, na primeira juventude, em longínqua cidade do interior, onde conheceu Mariazinha, com quem se casou e teve cinco filhos. Ali, no entanto, não viu futuro para os pimpolhos e retornou à cidade grande, instalando-se sob os auspícios do abonado Pedro.

Nesse meio tempo, vamos encontrar Antão às voltas com as teses filosóficas e teológicas do seminário, pois não conseguia grandes progressos nos estudos, incapaz de oferecer as respostas certas às perguntas equivocadas dos mestres. Melhor dizendo, redigia segundo conceitos próprios a respeito dos temas de obrigação, de forma que não favorecia aos orientadores a oportunidade de sua promoção. Ao mesmo tempo, exercia deletéria influenciação no espírito dos mais jovens, pois ia crescendo em idade e não se decidia a abandonar os estudos. Seu isolamento de caráter, contudo, foi cedendo e passou a apreciar sobremodo as tertúlias elucidativas dos pontos que pareciam disparatados pela visão hierarquizada dos professores. Tal espírito de rebeldia, insuspeito a princípio, acabou caracterizando-se vigorosamente, quando a congregação percebeu que os devassos, como foram chamados, se organizavam em sociedade secreta para reverenciarem certos conceitos absolutamente inconseqüentes, se arrolados entre os dogmas que deveriam absorver.

Feita a devassa dos “devassos”, culminou Antão sendo expulso da corporação religiosa, tendo seu nome sido exposto à execração pública, através de circular em que se prevenia todo o clero secular da periculosidade da atuação do ex-professo.

Agora, na rua, sem pai ou mãe que o agasalhasse, vergonha da família, Antão lembrou-se dos amigos e procurou-os, na esperança de bom acolhimento. Deveras, tanto Pedro quanto Augusto o receberam em festa. Pedro mais que Augusto, pois via em Antão alguém de mente aberta, que poderia catalogar entre os vanguardeiros de sua espécie. Mas Antão preparava-lhe surpresa bem desagradável: não só não aceitou a influenciação do amigo como repudiou o ingresso nas fileiras artísticas. Se não podia vestir a batina do presbitério, iria divulgar a sua visão da vida e do mundo através de igreja própria.

Antes, sondou o ambiente religioso da cidade, interessando-se sobremodo pelas misteriosas reuniões noturnas dos centros espíritas. Inteligente e culto, disfarçou sua condição e ofereceu-se ao trabalho, em casa bem modesta do subúrbio. Os mentores da entidade bem sabiam das virtudes e dos defeitos do novel filiado, mas calaram as informações aos instrutores encarnados. Queriam ver até que ponto a iniciativa do jovem iria conflitar contra as disposições metódicas dos tradicionais seguidores kardecistas.

Durante a entrevista, escondeu a condição de ex-seminarista, por medo de que pudesse demonstrar insensibilidade mística, que, pretensamente, imaginava ser necessária para conduzir-se junto à instituição. Após a declaração de que seu desejo era o de conhecer os fundamentos teóricos da instituição, foram-lhe recomendadas as leituras de praxe.

Antão simplesmente devorou O Livro dos Espíritos e O que é o Espiritismo?, mas esbarrou contra invencíveis resistências ao ler O Livro dos Médiuns. Pela inteligência, podia aceitar a tendência religiosa pelo respeito à Divindade como ser supremo e criador do universo; metodologicamente, até aplaudia a tendência científica impressa à doutrina; mas a parte prática precisaria ser evidenciada com rigor.

Admitido para participar do grupo de estudos, foi-lhe designado certo capítulo d O Livro dos Médiuns, que deveria comentar aos colegas, segundo prisma teórico condizente com os fundamentos doutrinários retirados das exposições precisas, diretamente feitas pelos espíritos e coletadas por Kardec. De início, pensou em recusar-se ao desforço, mas enfrentou a responsabilidade, temeroso, todavia, de que pudesse suceder-lhe do mesmo modo que no internato: a expulsão por discordar de certos pontos da doutrina.

Na noite da “pregação”, preparou-se convenientemente e se apresentou prevenido para o debate, que aguardava enervado e triste. Lembrava-se do tempo da infância e via, nos homens, naturais adversários. Quanto daria agora para estar em sua ermida, orando e elevando, em preces, os agradecimentos pela sadia convivência com os bichinhos do deserto! Romanticamente, situava o eremitério dentro de pequenino oásis, no meio de extensos areais, onde os pássaros vinham repousar seu cansaço durante a peregrinação pelo mundo. Via-se acolhendo pequenos insetos, besouros, lagartixas, borboletas. Imaginava alguns animais de pequeno porte no quintal e macacos a se deliciarem nas bananeiras. Ia nesse sonho, quando a prece terminou e teria início sua exposição.

Limpou o suor da testa e iniciou os comentários pelo ponto que julgava essencial:

— Não têm os espíritos possibilidade de entrar em contacto direto com os mortais, pois sua contextura existencial é absolutamente incompatível com a densidade corpórea.

Surpreendidos com a assertiva inicial, os instrutores mexeram-se nas cadeiras mas deixaram fluir a argumentação, que viam arrazoada e bem fundamentada. Lembrando-se das tertúlias com os companheiros, aprofundou o raciocínio, rejeitando, inicialmente, todos os tópicos religiosos que proibiam tal contacto. Fora infiel em sua igreja, por não admitir a bula que vedava o relacionamento entre os planos, pois não aceitava, desde aquela época, a existência de um inferno de eternais penas e sofrimentos. Achava que era absolutamente lógica e coerente a lei do livre-arbítrio e por ela defendia intransigentemente a liberdade de o homem conversar com quem quisesse, vivo ou morto, espírito, duende ou demônio, desde que o fizesse em bondade, com muito amor e no intuito de aprender e crescer na vida. Era um puro. Mas não aceitava a possibilidade do relacionamento com o plano espiritual.

Discorreu longamente a respeito das injunções cármicas da matéria e concluiu, agnosticamente, que tudo o que obtivera Kardec e os demais médiuns em seus falsos contatos com a espiritualidade não era mais que o produto de suas próprias reflexões, fantasias e considerações.

A única pessoa que conseguiu compreender as objeções de caráter filosófico que expendeu foi o diretor de cursos da entidade. Os demais não atinaram com a terminologia empregada, absolutamente hermética, inusitada para os pequenos operários do saber espírita e reveladora de organização mental de sólida fundamentação teórica. Além do vocabulário, espantaram-nos os arrevesados apetrechos silogísticos e a cerrada argumentação, tudo absolutamente dentro dos mais eficazes sistemas da lógica. O aluninho revelava-se um sábio, mas suas idéias conflitavam violentamente com os pobres médiuns presentes, que davam curso a humílimas manifestações nas sessões de desobsessão e doutrinação. Empolgou-os a figura do irmão com quem conviviam; entristeceu-os a postura de negação da verdade revelada.

O orientador dos trabalhos, à vista do adiantado da hora, não abriu os debates e recomendou ao novel orador que procurasse algum médico disponível, para discutir com ele o seu ponto de vista e avaliasse até onde poderia coincidir com visão absolutamente pragmática da matéria. Reconheceu que Antão admitia a espiritualidade, não fez confusão com o materialismo grosseiro dos que não aceitam a existência do Criador e pediu-lhe, delicadamente, que lhe considerasse a observação como de alguém interessado em apenas ajudar.

Estranhou a recomendação do instrutor. Nada de vergastar-lhe a posição, nada de tentar refutar-lhe a exposição, nada de contradizer com a palavra da autoridade: “Vá conversar com um amigo médico”, simplesmente. Por mais que revoluteasse o pensamento, não atinou com a indicação e, por isso, reacendendo a curiosidade, imaginou-se conversando com o caro Dr. Augusto.

Na manhã seguinte, foi em busca do amigo. Era um sábado e estava de folga. Em casa, a amável Mariazinha informou-lhe que o marido se encontrava dando plantão no hospital. Deveria retornar a qualquer momento, pois passara a noite lá. Se quisesse esperar, poderia ocupar a sala de estar, onde ficaria à vontade, vendo televisão. Antão aceitou o cafezinho, desligou o aparelho e apanhou na estante obra consagrada ao estudo dos fetos. Repugnava-o de certa forma esse contacto estreito com os elementos vivos ainda disformes e absolutamente irreconhecíveis como seres humanos. O livro, fartamente ilustrado, demonstrava as anomalias de formação dos embriões e o resultado desastroso para a futura criança. Havia fotografias de todo tipo, desde pequenos monstros sem cérebro até alguns com duas cabeças ou irmãos xifópagos ligados pelo crânio, impossíveis de separação. Para quem estava acostumado com o campo das idéias, lidar com a matéria bruta e deformada parecia dedicação além do apostolado mais diligente. Lembrou-se de seus animaizinhos e avaliou a fantasia em função da peregrinação do amigo médico, envolvido com a carne e absolutamente despreocupado do espírito. Viu a grandiosidade do serviço médico e da assistência aos enfermos e engrandeceu a missão do socorrista.

Quando este chegou, encontrou Antão às lágrimas, reconhecendo-se menor ainda do que se supunha. Ambos se abraçaram e Antão não precisou dizer palavra alguma a respeito do que o trouxera ali. Almoçou com a família, afagou os pequenos, elogiou os atributos dos maiores e voltou para casa com a cabeça eivada de idéias absolutamente desencontradas com suas habituais explosões de silogismos. Estava derreado espiritualmente.

Abriu O Livro dos Espíritos e releu a parte a respeito da inserção na matéria do espírito imortal. Esbarrou com o perispírito, com os fluidos, com a energia, com a magnetização. Imaginou aqueles pequenos seres deformados absolutamente saudáveis, brincando na rua com os companheiros, e deu, finalmente, razão ao Criador em impedir que crescessem e se apresentassem aos demais. O pensamento foi mais longe e pôde vislumbrar que, se havia tanta degeneração genética na formação dos corpos físicos, por certo poderia haver também no que se refere ao corpo espiritual, o perispírito.

Sacudiu a cabeça e renegou a idéia que lhe ia sendo formada na mente. Era incrível que algum espírito pudesse crescer em monstruosidade. Conjeturou o desencarne do mais voraz assassino, do mais perverso criminoso. Foi além da realidade possível e criou monstrengo pavoroso de alguém que se alimentasse de carne humana, que vivesse na maior luxúria, que pertencesse à classe mais invejável, que portasse os mais misteriosos adereços e que se deixasse envolver pelas mais miseráveis criaturas do inferno. Criou na mente algo que seria único no mundo e perguntou de si para consigo mesmo, como é que tal abjeção sobreviveria no espaço etéreo da espiritualidade. Localizou o abismo mais profundo dos infernos e arremessou a criatura lá no meio das chamas, carregando consigo toda a maldade e ignomínia.

Naquela noite dormiu mal e acordou como se tivesse bebido na véspera todo o uísque do mundo. Doía-lhe a cabeça e turvava-lhe a vista de quando em quando. Telefonou para a casa do Dr. Augusto mas a empregada informou-lhe que não estava àquela hora. Fora com a família almoçar em casa de Pedro. Havia festa lá. Não fora convidado?

Agradeceu a informação e, vasculhando entre a correspondência, encontrou convite para “vernissage” do amigo. Expunha, em galeria avançada, os quadros produzidos no último ano. A data, entretanto, referia-se à semana anterior. Como fora esquecer?! Por certo, comemorava-se agora o sucesso e brindava-se com os amigos. Tanto se dedicara a estudar o ponto da exposição que relegara a correspondência a segundo plano. Deveras, o segundo convite também lá estava.

Indisposto, reconheceu-se em débito e dirigiu-se de táxi para a residência do amigo.

A festa era íntima. Além de Augusto e família, havia umas poucas pessoas mais. Antão foi recepcionado com alegria e com serena admoestação por ter perdido a abertura da exposição. Não faria mal; após o almoço, todos iriam para lá. As crianças, para não atrapalhar, tinham por destino matinê especial no cinema do bairro.

Augusto medicou Antão, que se curou da noite mal dormida com simples analgésico.

A reunião transcorreu festiva, comentaram-se os acontecimentos da semana, a venda de toda a coleção, os projetos para novas realizações; expuseram-se conceitos artísticos de inefável versatilidade; os companheiros relembraram a infância e Antão externou o pesar de ter desafiado a casa espírita com sua arrogância metodológica e sua argumentação filosófica. Os demais perceberam por que estava insone mas calaram-se, para não esgazearem ainda mais o amigo. Desconversaram e concluíram que o melhor a fazer era visitar a galeria, antes que os proprietários retirassem as obras. Assim, todos teriam oportunidade de conhecer o aspecto atual da obra de Pedro.

Lá chegando, encontraram a galeria entregue às moscas. Poderiam avaliar as obras com muito cuidado. Pedro aceitava mal a crítica mas ouvia as ponderações dos amigos com muita atenção. Aliás, passava por profunda fase mística, como antes já tivera ensejo de retratar expressionistamente a realidade, quando, por influenciação de Augusto, intentou o caminho da carne e o mistério da dor. Agora, por ouvir Antão falar tanto de espíritos, de luz e de trevas, à vista da expulsão do seminário, vivia os dramas da morte e do mistério do sofrimento espiritual.

Fazia questão de mostrar aos amigos o trabalho mais recente em que unia as duas tendências: era uma visão dantesca do sofrimento corpóreo arremessado nas profundezas do báratro. Esperava terrificar.

De fato, a reação primeira de Antão foi de petrificação instantânea. O homem paralisou no ato. Diante da tela, extasiou-se. Aquela imagem era, tintim por tintim, detalhe a detalhe, cor a cor, tonalidade, traço, tema, assunto, filosofia e imaginação, a figura da noite anterior.

Diante da espiritualidade, não se sabia se o sofrimento maior se estampara na tela ou na consciência de nosso amigo. O da tela, no entanto, inalterável, lá ficou perenemente registrado. Talvez, mais tarde, o artista pudesse elaborar outros trabalhos em que se amenizasse a situação daquelas criaturas. O que estava internado no sentimento de Antão, entretanto, foi cedendo a vez ao êxtase, desta à maravilhosa impressão da verdade e daí para a alegria mais profunda da compreensão da existência. O contacto era possível entre os planos, já que lhe fora possível conceber algo que lá existia. Recordou-se das obras que leu a respeito da parapsicologia. Sabia que teses havia que possibilitavam ao encarnado a visão a distância. Mas rejeitou “in limine” tal postura. O que ocorrera a ele fora algo muito diferente. Era a assistência mais amiga e mais comprobatória de que estava sob as luzes da espiritualidade superior. Acreditava agora na mediunidade. Tinha a prova que lhe faltava.

Passemos em branco por alguns dias de preparação para nova exposição. Chegada a sexta-feira, dia de estudo, lá estava Antão preparado para nova palestra.

À hora da prece, lembrou-se de seu oásis e povoou-o de fetos e de crianças. Acrescentou alguns espíritos sofredores e outros tantos socorristas. Ia começar a assistência aos necessitados, quando foi chamado à realidade pela invocação do orientador. Teriam naquela noite a palavra em aberto para as discussões.

Antão esfriou. Será que o pessoal se preparara para verrumar-lhe a peroração do outro dia? Que trabalho lhes dera inútil desde que estava absolutamente convencido do contrário? Não se precipitou, contudo, e aguardou os acontecimentos. Surpreendentemente, os amigos concordaram todos em que deveriam propiciar ao orador oportunidade de freqüentar as sessões de desobsessão, para que pudesse avaliar “in loco” o que se passava naqueles momentos em que, iniludivelmente para eles, havia manifestação espiritual. Comparou a atitude dos parceiros com a expulsão que sofrera através das autoridades religiosas e sorriu internamente, reconhecendo seus verdadeiros amigos. Declarou-se inocente do crime de malícia que poderia ter-lhe sido imputado, como antes fora, e narrou à minudência todos os passos de sua aventura mediúnica. Desfez-se em desculpas e demonstrou cabalmente tese em que contrariava todos os pontos da anterior exposição. Desacostumado com os desatavios da congregação, sapecou no auditório a mesma arenga filosófica da outra feita, agora feliz por aceder à amizade e às observações judiciosas do kardecismo.

Hoje, Antão percorre o país dando palestras. Seu nome continua na macabra lista pastoral, grifado várias vezes, mas ele palpita na esperança de poder, um dia, em alguma circunstância de caráter espiritual, debater com os prelados a respeito de suas teses de vida.

Eis a história do bom Antão.

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