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Contos-->36. A SEXTA-FEIRA SANTA -- 09/05/2002 - 06:35 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Romão era médium de efeitos físicos. Toda sexta-feira da Paixão, subia ao alto do morro próximo, rodeado por imensa multidão de curiosos, e ali personificava Jesus. Sem que se lhe pudesse suspeitar de engodo ou malícia, deitava-se ao solo, estendia os braços lateralmente, como se destinado fosse a receber os impactos dos cravos a pregarem-no a imaginária cruz e orava compungido para receber a divina graça dos estigmas. Realmente, após o terceiro ou quarto pai-nosso, eis que das mãos e do dorso dos pés fluía sangue, como se atingido fora pelas certeiras marteladas de invisíveis algozes. Romão punha-se de pé e, em pose de Jesus Redentor, exibia a todos o produto de sua fé.

O padre da pequena cidade tentava capitalizar para a paróquia o milagre, mas Romão opunha séria resistência, pois, embora não conhecesse a codificação kardeciana, não via no fato qualquer intervenção realmente divina. Considerava o sacrifício sintomático de predisposição para o efeito e categorizava o fenômeno como meramente sobrenatural. Alguma misteriosa força da natureza ou algum poder especial de alguma entidade é que, para ele, provocava o fato, tanto que, no sábado, as feridas se cicatrizavam e, no domingo, nenhum vestígio se podia perceber. Por outro lado, Deus, para Romão, não iria descer de sua grandeza para preocupar-se com acontecimento tão material.

Estava certo nas conclusões, mas nada além disso intentava compreender, até que se instalou na cidade, em casa de família, pequeno núcleo espiritista. Recém-transferido para a localidade, veio certo diretor de escola, homem probo e temente a Deus, que considerava a vida muito importante para desperdiçá-la no trânsito da cidade grande.

Ao ali chegar, Maurício instalou-se em modesta casa da periferia, investigando logo os recursos da comunidade relativamente aos feitos espirituais. Além da igreja matriz no centro da cidade e de pequena capela à saída da estrada, contavam-se aos dedos os que não professavam a fé católica, quase sempre adventícios que ali aportaram para trabalho eventual e que foram deixando-se ficar pela calma do lugarejo. Não eram tão fervorosos assim que não pudessem conviver pacificamente com os devotos de São Sebastião, o padroeiro do lugar. Romão era atração à parte.

Assim que Maurício verificou que teria de deslocar-se para cidade próxima para cumprir os deveres de bom espírita, não se conformou com o fato e, justamente, percebeu que ali poderia estar em germe a fundação de mais uma casa de assistência espiritual e material.

Chamou os parentes que o haviam induzido a transferir-se para o local e combinaram que, ao invés de deslocar-se ele para outra cidade, viriam os irmãos e cunhadas para realizar trabalhos medianímicos e de doutrinação em sua casa.

Preparou salão do fundo destinado a agasalhar a colheita, agora desocupado, gastou um pouco de dinheiro com a calafetação e higiene e o pôs em condições para a finalidade.

Tudo isso viria a ser motivo do diz-que-diz da cidade. As comadres espalharam a novidade e, em breve, no fundo do quintal do Maurício, dava-se o sabá mais alucinante, na fértil e ignorante imaginação do populacho.

Esclarecido, contudo, Maurício deixava passar os comentários. Antes, para prevenir acidentes, procurou todas as pessoas gradas do município — prefeito, médico, corpo administrativo da municipalidade, edis da câmara, comerciantes preeminentes —, fazendo questão de apresentar-se como funcionário público, educador e espírita. Quanto ao pároco, destinou atenção especial, providenciando matrícula para várias crianças de sua particular assistência, de modo a facilitar o ingresso em sua amizade. É bem verdade que as vagas existiam e que nada mais fez Maurício que dar crédito escolar ao manipulador das consciências da localidade.

O tempo passou sem incidentes, até que determinada ocorrência despertou a atenção do diretor. Certa criança, absolutamente agressiva, não perdia vaza para sapecar algum encontrão mais rude nos companheiros. Da chamada de atenção passou à advertência, desta a séria admoestação, até que, mediante dois olhos roxos e lágrimas abundantes, não teve outro recurso senão proceder à convocação dos pais, mediante a competente suspensão do peralta.

Romão compareceu com a esposa para conversar com a já notória figura do espiritista. Queria ela dizer que era pura feitiçaria o que o professor realizava em casa, mas Romão era mais prudente em assuntos extravagantes

Recebidos com as cautelas de praxe, Romão pôde expor o desagrado por ter o filho sido mandado de volta para casa por ter-se defendido, tão-somente. A esposa disse algumas palavras para reforço da reclamação do marido, mui especialmente porque a suspensão acrescentava mais algumas horas em sua responsabilidade de extrema vigilância do pirralho.

Maurício, expedito em casos que tais, quis avaliar até que ponto a manifestação do pai poderia ser verdadeira e inquiriu dele a defesa do filho, desconfiando que o petiz pudesse ter lá as suas razões.

— Pois, então, senhor diretor. O Manuel não deveria defender-se? Que faria o seu filho se alguém o chamasse de filho do feiticeiro?

Hesitou mas disse a maldita palavra, que lhe escapou no calor da emoção. Mordeu o beiço e prosseguiu:

— Pois os colegas ficam a toda hora a chamá-lo de filho do crucificado, filho do Cristo. Perguntam onde o pai aprendeu a mágica e se em casa eu não faço os meus milagres. A criança tem o coração ferido e o sangue quente. Tanto falam que acaba reagindo. Eu acho que, se ele foi suspenso, deveriam os outros também sofrer punição.

Maurício reconsiderou sua posição e prometeu apurar melhor o caso, pois ignorava por completo os motivos das agressões. Via agora que era mero revide, especialmente porque lhe tocara fundo aquele filho do feiticeiro. Engoliu a referência e insinuou a pergunta certa para deslindar o mistério dos xingamentos.

Romão era a atração das sextas-feiras santas; não perderia a oportunidade para embasbacar o desafeto e milagreiro de fundo de quintal. Achatava-o com a descrição do fenômeno.

Dito e feito. Narrou à minúcia todos os fatos, acrescentando mais alguns, pois desconfiava que logo lhe brotaria sangue da cabeça, à vista da coroa de espinhos.

Maurício percebeu logo a importância que se dava o Romão e a extensão de seus conhecimentos espíritas. Ia convidá-lo para o grupo que organizara, mas preferiu, prudentemente, consultar os demais. Despediu-se do pai, demonstrando afabilidade e prometendo estar na primeira fila para presenciar a cena que ocorreria em breve, dada a proximidade da semana santa.



Passemos em branco pelas atividades relativas ao convencimento dos integrantes da mesa mediúnica e sobre os acontecimentos da semana santa. Na verdade, tudo decorreu segundo os conformes, de sorte que, na primeira sexta-feira após a Páscoa, lá estava Romão, às escondidas, adentrando o quintal do diretor. Não tão às escondidas que não fosse observado por toda a vizinhança despertada para o dia aprazado para as reuniões no fundo do quintal. Por todos os lugares, os olhares se arregalaram com a presença do santo particular da cidade na casa do professor. O dia seguinte seria farto de notícias.

Romão não se manteve muito tranqüilo durante os estudos, pois sentia-se ali peixe fora da água, mas resignou-se a ficar até o fim, já que tudo se fazia em nome de Deus. Maravilhou-o, sobremodo, a maneira como o doutrinador conversava com os sofredores, alguns com linguagem bronca, outros com dizeres que mal compreendia, pois utilizavam-se de estranha terminologia da cidade grande.

Ao término da reunião, fizeram prece contrita para que o instrutor espiritual desse sua contribuição, mas o médium psicofônico enunciou longa palestra a respeito do bem e do mal, de forma a imitar perfeitamente o dialeto caipira falado na região. Maurício estava a admirar a transformação da linguagem do irmão, cujas habilidades no trato desse tipo de jargão desconhecia completamente, mas não conteve brado de admiração, quando, de modo inesperado, a entidade declarou-se avô da personagem ali presente. Não só declarou nome e sobrenome, como se fez reconhecer por passagens várias do conhecimento do neto e absolutamente desconhecidas dos demais.

Instintivamente, Romão benzeu-se três vezes, pediu a bênção ao avô e, timidamente, perguntou o que queria. Prestara bastante atenção nas palavras a respeito do bem e do mal e, de pronto, percebeu que alguma notícia grave deveria receber. De fato, o avô pediu ao neto que parasse de subir ao morro e que se dedicasse mais às tarefas da leitura e do aprendizado do espiritismo. Que voltasse mais vezes àquela casa para receber outras instruções. Abençoou o neto, os presentes, recomendou-se à família e retirou-se.

Romão escondeu algumas lágrimas e recebeu congratulações de todos. Fora deveras grande privilégio merecer, de cara, tanta consideração do plano espiritual. Sem jeito, agradeceu a todos e saiu, sem ver a hora de contar tudo à esposa.

Foi o desastre mais completo de sua vida. Em primeiro lugar, desconfiou a mulher de que tudo fora arranjado pelos feiticeiros para acabar com os milagres que vinham de Deus, pois fora assim que o padre falara no púlpito e ela bem que ouvira diversas vezes. Por outro lado, não era difícil de imitar o sotaque caipira e dar as informações que poderiam ser colhidas em qualquer parte da cidade. Ela bem que ouvira dizer que o diretor, em todo lugar a que ia, perguntava a respeito das faculdades do marido. Não estivera ele na primeira fila na semana passada?

Romão se desarvorou. No íntimo, gostava de sua projeção social e não queria perder essa ocasião de parecer especial diante de todos. Nem o pároco conseguia semelhante efeito espiritual. Além disso, o fato de ter de ler e estudar não era bem com ele.

Na manhã seguinte, por força da mulher, teve de ir confessar ao padre tudo aquilo que ocorrera. A mulher ficou do lado de fora, aguardando a penitência. Três padres-nossos e três ave-marias. Ficou decepcionada e, em casa, tentou tirar do marido o que o padre lhe havia dito, mas Romão calou tudo. Fora confessar-se a pedido dela; calava-se a rogo do padre.

Não satisfeita com a situação, algo ocorreu ainda que mais a incentivou a desentender-se com o marido. O filho voltou para casa com o nariz sangrando. Havia-se batido na rua com a molecada, que dizia que o pai tinha virado feiticeiro. A boa mulher, destaque na vila por ter o marido como a atração turística do local, via-se agora na voz do povo do modo mais maligno: de santo, passava, sem transição, a demônio.

Desta vez, foi ela mesma tirar satisfação com os vizinhos e, para resumir, precisou intervenção policial para apaziguar os ânimos. Não fossem todos pessoas de bem e alguns teriam de pernoitar na cadeia. Aliás, era o que deveria ter ocorrido, não fosse a boa vontade da força policial, pois não havia juiz ou delegado de plantão na localidade.

Romão, inseguro quanto às providências a adotar, fechou-se em casa com a mulher e a filharada e lá se propôs passar o fim de semana, a meditar que solução daria para o caso.

Tarde da noite, bateram-lhe à porta. Ao atender, surpreso, verificou que era procurado pelo pároco e pelo diretor da escola de uma só vez. Expulsaria um ou outro que viesse sozinho. Os dois juntos fizeram-no calar-se. Que desejariam àquela hora?

— Meu caro Romão, — era o padre falando, — viemos a esta hora para que ninguém nos visse. Esta cidade tem mil olhos e cinco mil línguas. Viemos para pedir-lhe que nos desculpe. O meu amigo Maurício me procurou para contar o que ocorreu na outra noite. Hoje, na missa, precisei fazer longo sermão sobre a dignidade humana e o respeito que todos os filhos de Deus merecem. Sei que seu avô se manifestou e lhe pediu para voltar às sessões espíritas.

Os olhos do amigo só não eram o que mais se abrira naquela fisionomia porque o queixo lhe caíra, dando-lhe a expressão mais parva de admiração que qualquer ser naquelas paragens já pôde exprimir.

— Sabemos que você pode não acreditar em nada do que ocorreu; pois eu acredito piamente. Quando lhe pedi para confirmar o milagre das sextas-feiras santas e você não quis atribuir a Deus o fenômeno, para mim foi um alerta. Procurei as obras espíritas, que me foram proibidas no seminário, e li a parte a respeito da mediunidade de efeitos físicos. Eu acho que você deve desenvolver essa faculdade nas sessões, pois está sob forte amparo espiritual, mas não deve fazer isso aqui. O professor Maurício concordou comigo e vai parar de realizar as sessões em casa. A partir da próxima semana, deverá reunir-se no centro que freqüentava na capital e poderá levá-lo junto. Basta que você concorde. Quanto a mim, vou preparar o povo convenientemente para bem receber o professor e ir aceitando o espiritismo como conseqüência natural das leis de Deus. Fique tranqüilo. Está em suas mãos atender o nosso pedido.



Na sexta-feira santa do ano seguinte, lá estava Romão bem no alto do morro, estendido de braços abertos, aguardando que o sangue escorresse das mãos e dos pés. Na primeira fila, duas personagens novas: um jovem sacerdote nordestino, que veio substituir o velho pároco, e uma senhora bem vestida, professora Cristina, aposentada e antiga moradora da localidade, que respondia interinamente pelo cargo de diretor da escola.

Naquela sexta-feira, o sangue não fluiu; nem nunca mais...

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