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Contos-->37. ÀS 14:22H -- 10/05/2002 - 06:08 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Quando o médium terminou o trabalho do dia, eram precisamente 14h e 22m. Sabia disso por ter olhado o relógio exatamente após ter colocado o último ponto ao término da derradeira frase. Efetuou, em seguida, as orações de praxe, naquele dia de forma ainda mais compungida que a habitual, rogando ao Senhor que as palavras se fizessem acompanhar dos respectivos sentimentos por elas expressos e que o cérebro não contivesse qualquer outra idéia que não estivesse na oração. Em suma, queria que sua manifestação de vontade religiosa exprimisse idealmente exatamente aquilo que ele era. Pediu mais ao Senhor: que a prece fosse proveitosa e revelasse inteiramente sua personalidade, mesmo que algo de ruim pudesse ser constatado. Nesse caso, rogava a Deus que lhe enviasse os ensinamentos para melhorar e as forças necessárias para aplicar-se a esse aperfeiçoamento.

Os espíritos amigos ouviram-lhe os queixumes, pois sabiam das dificuldades que enfrentava no momento, principalmente por estar sendo assaltado por sérias idéias de afastamento do convívio familiar. A esposa faltara aos deveres conjugais e ele amargava a desonra social como algo absolutamente cármico. No entanto, faleciam-lhe as forças, e a resistência moral que opunha estava sendo sustentada tenuamente por algumas nuanças espíritas que o retinham junto ao lar e à mesa do trabalho espiritual.

Capistrano estava a ponto de interromper de vez o ritmo da vida. Não o fizera ainda por cálculo, certo egoísmo e por vínculo sentimental que o prendia à esposa e demais parentes afins. Filhos não tiveram nesses cinco anos de matrimônio. Aliás, os exames médicos indicavam que sua impotência era de fundo psíquico e ele não conseguia ejacular. Os testículos tinham ficado atrofiados e todo o procedimento reprodutor estava comprometido. Além do desconforto psicológico, acresciam-lhe dores insuportáveis, de que o infortunado era constantemente acometido.

Mas Capistrano resistira o quanto pôde. Enquanto a mulher não fizera escândalo, manteve-se fiel ao compromisso moral e procurou ajuda terapêutica adequada. Não tendo obtido melhoras, pôs-se a serviço do espiritismo, onde encontrou muito alívio moral. As dores se intensificaram, mas o espírito também se fortificara na prece e no labor socorrista.

Naquela tarde, suspendeu o trabalho após ter registrado bela mensagem de amor, benquerença e compreensão, onde o que mais se recomendava era paciência e confiança no futuro, que estaria, sempre, nas mãos de Deus.

Capistrano afastou a cadeira, consultou novamente o relógio: 14h e 23m. Parecera-lhe que a prece tivesse levado uma hora. Fizera-a em um minuto. O tempo tomava outra dimensão quando medido pelos pensamentos. Tudo parecia transcorrer com a máxima rapidez, menos a vida, que se arrastava e não se definia.

Diante da porta fechada da sala, estacou por alguns momentos. Viera-lhe, de chofre, à memória o doloroso instante da descoberta. O melhor amigo saía pelas portas do fundo, justamente no instante em que retornava das lides mediúnicas. A esposa aproveitava-se dos transes e do apanhado dos ditados para as aventuras extraconjugais. Davam-lhe aqueles momentos inteira liberdade. Capistrano até então de nada suspeitara mas intuía que algo não andava bem, pois as reclamações e desaforos de antes se haviam transformado em enigmática solicitude e em plácido aconchego. Em vão tentara conduzir a esposa ao centro. De início, imaginara que sua cura ensejaria condições para argumentar a favor. O insucesso do tratamento espiritual, contudo, fez com que até ele desistisse de lutar. De resto, para a esposa, ele simplesmente fugira do catolicismo, crença que ela acolhera e que a satisfazia plenamente. Ali, diante da porta, Capistrano desconfiou de que os pecados da esposa estavam sendo perdoados com muita tranqüilidade, de sorte que poderia repeti-los com justa desculpa e pequeníssima responsabilidade. O arrependimento não entrara na cogitação de ninguém.

Voltou-se para trás. O relógio marcava 14h e 24m. Deus do Céu, como o tempo não passa!

Capistrano abriu a porta e, surpresa das surpresas, estava a esposa arremessada ao chão, no meio de sangrenta poça vermelha. Desvairou-se o infeliz. Abraçou a amada criatura e pôs-se a chamá-la à vida, crente de que estava tão-só ferida ou machucada. Não reparara na extensa ferida que lhe abrira o baixo ventre.

Esquecido de todas as conveniências, saiu à rua à procura de socorro.

Quando a polícia chegou, encontrou a cena do crime bem transtornada. Vizinhos tinham estado a bisbilhotar o interior da casa. Parentes tinham prendido Capistrano no banheiro e clamavam em altos brados contra o assassino. Tudo, deveras, indicava para crime passional. E, no entanto, sua prece tinha sido a mais serena e profunda possível.

Largado diante de si mesmo, chorava convulso e lamentava não ter sido advertido pelos amigos da espiritualidade para aquilo que ocorria em seu lar.



— Às 14 e 22, precisamente, ocorreu o crime, — disse o delegado ao juiz, durante o depoimento preliminar.

— Como pode ter tamanha certeza? — inquiriu o magistrado.

— Ao bater com o braço no solo, espatifou-se o vidro do relógio e os ponteiros suspenderam as atividades justamente naquele instante.

— Que diz o legista?

— O crime ocorreu entre as duas e as três horas da tarde. É fato comprovado que...

— Não nos interessam os registros técnicos. Faça a descrição por escrito e assine-a, por favor. Que se apresente o réu.

Capistrano entrou na sala totalmente arrasado. Tinham-no inculpado por força das circunstâncias. Não sabia como defender-se. O advogado não tinha como explicar o fato de estar em casa, na sala contígua, sem que nenhum ruído o tivesse advertido do que se passava. Pelo menos tivesse ouvido qualquer desavença. Aliás, ninguém servira à defesa como testemunha, pois tudo fora combinado entre a mulher e o amante de modo inteiramente sigiloso. Houve um vizinho que confirmou ter visto o rapaz entrando várias vezes na casa do indigitado, mas sempre em sua companhia, nunca sozinho. Não se compreendia, pois, como pudesse o marido aceitar aquela presença e depois ter perpetrado o crime. As coisas estavam confusas.

Mesmo que houvesse razões para desconfianças a respeito da infidelidade conjugal, os motivos apontavam o marido como ofendido e, portanto, como provável agressor. Não haveria motivo que justificasse o amante. De resto, ouvido a respeito nas audiências preliminares junto às autoridades policiais, comprovou álibi perfeito, pois estivera com amigos durante toda a tarde no bar da esquina. Ouvidos estes, todos confirmaram, pois fato excepcional ocorrera naquela tarde: havia pago a bebida para todos. Por razões desconhecidas, estava extremamente alegre e prometera novidades para breve. Consultado pela autoridade a respeito do fato, revelou que havia recebido uma bolada de herança e que iria aprumar-se na vida, como verdadeiramente se comprovou. O amante estava limpo.

Tudo isso passou pela cabeça de Capistrano no curto lapso de tempo em que o juiz ajeitava os óculos e apanhava o dossiê relativo aos seus depoimentos. Repetiu alguns trechos que foram imediatamente confirmados pelo acusado e declarou-se impossibilitado de evitar levar o réu a júri popular, uma vez que era único indiciado e principal suspeito. Determinou a detenção, mas fixou a fiança com brandura, de modo que Capistrano pôde permanecer em liberdade até o momento do julgamento.



Nesse meio tempo, os acontecimentos precipitaram-se. Por força do dinheiro que havia recebido, o amante deixou o lugar em que residia e foi habitar mansão em bairro nobre da capital. Era agora dono de lucrativa indústria, que lhe chegou às mãos pela excentricidade de um tio. Desde muito a propriedade lhe estava destinada, mas o anacoreta se compenetrara de que os anos de vida dificultosa dariam ao sobrinho vivência que o habilitaria melhor a gerir os destinos da firma. Sustentou-lhe os estudos incógnito, com a cumplicidade do irmão e, ao debandar para o outro plano, verificou-se que cumprira a promessa.

Esta nova personagem vai exercer em nossa história fundamental papel. No plano espiritual, acompanhou durante os primeiros dias a vida do sobrinho. Verificou a sua ligação com a mulher do amigo e desconfiou que esse relacionamento iria ser prejudicial para o bom andamento da indústria, que, com tanto sacrifício, montara e fizera prosperar. Não achou justo para si que alguém pudesse vir a usufruir os benefícios de seu trabalho, sem outro esforço a não ser um pouco de benquerença e muito de necessidade física. Arranjou as coisas para que o sobrinho obtivesse lídimo argumento de defesa e estimulou certo ladrão a adentrar a casa, cuja porta se mantinha aberta para a furtiva entrada do amante. Surpreendido pela mulher, o ladrão não lhe deu tempo de defesa e a atacou pela forma descrita. Saiu pelos fundos, quando percebeu que sua ação poderia ser descoberta por alguém que ouvira arrastar a cadeira no outro compartimento. Desconhecido no bairro, percebeu de imediato que alguém mais poderia ser responsabilizado pelo ato. Retirou-se sem levar nada e sem deixar pistas. Praticara crime perfeito.

Pois bem, Elvira, a esposa, era a testemunha de defesa ideal. Ninguém suspeitara da presença daquela terceira pessoa, nem o marido, que concentrara a atenção no amante. A impossibilidade de confronto não ofereceu os recursos necessários para a elucidação da dúvida, por meio de acareação, e Capistrano se desfez em lágrimas por se ver na condição de único suspeito. Por aquela época, recrudesceram-lhe as dores e precisou ser internado para tratamento intensivo.

No leito, sob efeito de fortes sedativos, rememorou passo a passo a vida. Tinha, agora, todo o tempo do mundo, principalmente porque, sabemos, sua capacidade intelectual era extremamente ágil. Chegado ao momento do crime, apanhou na carteira a última mensagem recebida e releu-a para averiguar se ali se continha indício que revelasse o que se passava no cômodo ao lado. Deveras, pareceu-lhe ver nas entrelinhas a conduta ideal para quem estivesse, como ele, sendo acoimado de crime que não cometeu. Encheu-se de paciência e invocou espiritualmente a esposa para vir-lhe trazer conforto e esperança.

Ela não veio, mas os guias não no desampararam. Sabiam que era devedor de extensa lista de itens os mais diversos, entre os quais, contudo, não se incluía dívida alguma de sangue. Aliás, neste aspecto, era até credor, mas isto não vinha ao caso. Os irmãos que cuidavam dele, sopesando os méritos e os débitos, julgaram que era chegada a hora de desfazer a trama urdida contra a esposa e que repercutira, involuntariamente, em sua inocente pessoa.

Anacleto e Camargo, cientes de tudo o que ocorrera com o protegido, procuraram o antigo empresário para com ele tratarem dos negócios de Capistrano, que, por ação e culpa sua, estavam degringolando. O velho senhor muito lamentava o infortúnio causado, mas não estava, de modo algum, interessado em ressarcir o coitado de seus prejuízos. Que procurassem a esposa infiel, que dera motivos para o empreendimento. Aliás, era fácil de encontrá-la, pois vivia à cata de quem lhe cortara a vida tão rente, o que lhe estava causando transtornos sérios.

A dupla de protetores não via como Elvira pudesse auxiliar, uma vez que imaginavam que o velho poderia voltar a influenciar no ânimo do assassino, fazendo-o com que se acusasse e livrasse o assistido da condenação iminente. Em todo caso, foram atrás da jovem e a encontraram absolutamente desolada, crendo-se eterna devedora do marido. Ela, sim, faria qualquer coisa para aliviar-lhe as penas. Pois bem, que o procurasse e intuitivamente lhe ministrasse os afagos espirituais capazes de confortá-lo naquele transe.

Ao se achegar ao marido, com a ajuda dos protetores, pôde Elvira ter longa palestra íntima com o infeliz, durante a qual lhe pediu humildemente perdão por todo o mal que lhe fizera, especialmente por não lhe ter dado a atenção material que a saúde exigia. Discorreu longamente a respeito de sua frustração de caráter religioso, pois o que encontrara no reingresso ao éter não combinava em nada com o que lhe prometera sua fé religiosa. Ao contrário, confirmava o que lhe dissera ele quando dos intentos de convertê-la ao espiritismo. Que lhe dissesse o que poderia fazer para auxiliá-lo.

Em seu deslumbramento interior, Capistrano imaginou que a esposa poderia, se deveras fora ela com quem estivera mantendo aquele maravilhoso diálogo — pois desconfiava de que poderia estar sendo iludido, já que bem pouco havia passado desde o desenlace e não houvera tempo suficiente para tão rápido restabelecimento, conforme sua formação espírita lhe afirmava —, que a esposa poderia manifestar-se mediunicamente, levantando a hipótese não aventada pelo judiciário em relação a latrocínio.

Os guias muito se admiraram da solução proposta mas desconfiaram de que não haveria esperança de que pudesse dar certo, a menos que o real criminoso confessasse a autoria do ato. De qualquer modo, iriam empreender a tentativa. Sabiam da dificuldade de encontrar mediador idôneo e respeitado, mas não desfaleceriam em seu ministério socorrista.

Foi longa a peregrinação até que encontraram ajuda em modesta casa de evangelização. Sem que o médium sequer suspeitasse de quem se tratava, apontou os nomes de todas as personagens e indicou à polícia os meios de apanhar o verdadeiro criminoso, único cuja identidade se mantivera em sigilo. Que as autoridades procedessem às devidas investigações.

Dito e feito. Os responsáveis pelo centro, à vista das indicações a respeito do réu e de sua freqüência a declarada casa coirmã, não demoraram para localizar a pessoa certa. Convencido o advogado a incluir nos autos a peça absolutória, deu-se início às investigações que culminaram com a prisão do procurado bandido. Foi de imensa alegria para os policiais a captura do criminoso, que, por força da coerção policial, descreveu inúmeros assaltos e latrocínios, incluindo aquele de que fora vítima o sofrido casal.

Mediante a apresentação do verdadeiro culpado, Capistrano foi liberado e pôde voltar às lides habituais, agora sem a esposa amada mas com o coração absolutamente sossegado, tendo em vista a profunda assistência espiritual de que fora alvo. Veio-lhe até à lembrança, certa tarde em que encerrava os trabalhos mediúnicos, aquela prece que um dia o fizera solicitar ao Senhor forças para que as palavras pudessem revelar-lhe exatamente os sentimentos e os pensamentos, como se pudesse externar tudo o que realmente era. Naquele instante, olhou para o relógio: 14h e 22m, e duas lágrimas sentidas rolaram-lhe pela face.

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