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Contos-->41. O PECADO CAPITAL -- 14/05/2002 - 06:21 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Serapião não se conformava com ter pecado contra o Senhor. De volta de recente encarnação, já desperto para a realidade da consciência, tendo perpassado pelo Umbral mais tenebroso e merecido certo apoio socorrista, foi levado àquele hospital em que meditava a respeito da existência, dando ênfase especial ao “pecado” que o havia arremessado ao báratro.

Para bem elucidar o leitor, precisaríamos largamente preocupar-nos com a história moral de Serapião, mas isto ensejaria romance meramente carnal, em que os relacionamentos se deram no exclusivo interesse das verdades materiais. Para circunscrever o tema ao fulcro da questão, devemos dizer que a nossa personagem se deu a diversos vícios e praticou diferentes crimes. Entretanto, após cumprir as penas que lhe foram impostas pela instituição judicial dos homens, foi agasalhado pela fraternidade de certo grupo especializado no encaminhamento de ex-detentos, tendo tido a sorte de ressarcir todos os débitos para com a sociedade. Como não havia fustigado a paciência além dos aspectos do patrimônio, não lhe foi difícil solicitar as devidas desculpas, tendo trabalhado intensamente para repor ceitil a ceitil tudo o que havia subtraído às pessoas. “Pé de chinelo”, algumas galinhas e radinhos de pilha ficaram no passivo, que se viu saldado pela pena maior de ter de suportar a convivência de criminosos de mais larga malignidade.

Isto posto, não restaria ao Serapião nada além do que reconhecer-se errado do ponto de vista doutrinal espírita e segundo a exposição evangélica do Cristo, para arrepender-se, oportunidade que lhe foi dada nas profundezas das cavernas.

Algo, no entanto, lhe ficou na consciência que não o fazia sossegar. O sentimento de culpa acabrunhava-o e, no plano espiritual, sufocava-o a ponto de impedi-lo de livremente se propor ao trabalho. Assistido pelos médicos do posto em que se internara, omitiu essa impressão vadia com o intuito de melhor caracterizá-la nas próximas entrevistas. Entrementes, pretendia recompor-se espiritualmente, para o que se pôs a ler, em desespero, quantas obras lhe caíssem às mãos.

Tinha o intelecto desenvolvido e o internamento na carne objetivara justamente fazê-lo menos orgulhoso desse recurso precioso para quem tem bom desenvolvimento moral, mas pernicioso para quantos almejam fazer dele o ponto de apoio para sobrepor-se aos companheiros. Sendo assim, não lhe foi difícil perlustrar as páginas dos autores mais sérios e complexos, assimilando-lhes as teorias e as exposições, muitas vezes minuciosas e cansativas.

Ao cabo de bons seis meses de intensas leituras, a primeira luz se fez no fundo da consciência: “pecara” contra o Senhor porque não suspeitara de que, mais dia, menos dia, iria ter de defrontar-se consigo mesmo, e considerara esse encontro como da mais absoluta tranqüilidade. Habituado a pagar todos os crimes, supusera que os débitos devem ser encarados com a mais fria razão. A inconsistência diante daquele “pecado” capital era a ponta do “iceberg”, a indicar que muito deveria aprender que não estava escrito nos livros.

Por esse tempo, já confesso diante dos instrutores, que nada lhe adiantavam a respeito do drama íntimo, mesmo porque ele temia perguntar-lhes, arrumou vaga em equipe socorrista que dava assistência aos desesperados em vias de suicídio. Aprendiz, diligenciou tenazmente para compreender os fenômenos psíquicos que envolvem a loucura final e pôde, em breve tempo, ascender na escala do grupo, vindo a ocupar posição de preeminência.

Cabe assinalar que, dentre os seus feitos como auxiliar, registraram-se dois casos emergenciais em que se viu só diante dos infelizes, tendo logrado êxito nas tentativas de assistência e socorro, impedindo que viessem a proceder ao desate das ligações corpóreas. Tais ocorrências só puderam ser conseguidas pelo muito de amor que colocou em todas as providências, especialmente na verdadeira aflição que sentiu por ver os irmãos na iminência do desastre. O que mais o espantou nas duas ocasiões foi o fato de, ao lado de estar absolutamente envolvido com os estremecimentos morais de ambos, sofrendo-lhes a dor com profunda intensidade, conseguir manter desperta a mente e equilibrado o perispírito, de modo a prestar cabal e completa ajuda, como se habituado estivesse a esse mister. As lágrimas lhe escorreram, o coração confrangera-se, mas a lucidez da mente imperturbada deu-lhe à ação, característica superior de quem age em conformidade com os padrões éticos e profissionais mais rigorosos.

Ao atingir o ápice possível dentro do grupo, ainda as lágrimas lhe escorriam ao atender os infelizes, mas a emoção renovada não tinha o dom da novidade nem a força da premência. Aperfeiçoara os aspectos técnicos a tal ponto que a segurança da assistência chegava a confortar até os auxiliares mais diretos. Apesar de tudo, quando perdia algum paciente, voltava aos livros, reestudava todos os casos semelhantes, programava célebres discussões com os parceiros e não descansava até caracterizar plenamente que, se não obtiveram êxito, nenhum outro grupo obteria.

Era perfeccionista com relação ao trabalho; não poderia deixar de ser também à vista de si mesmo.

Todo esse desejo de sublimar os problemas alheios, na verdade, não era mais que o reflexo da tentativa de resolver definitivamente o seu, e isso não lhe passava, em absoluto, despercebido. Temia, inclusive, que, após ter encontrado a solução para seu “pecado” capital, perderia o “élan” em relação ao serviço que vinha fazendo, pois tudo parecia indicar para ulterior necessidade de resgate daquela dolorosa culpa escondida.

Por essa época, outro ponto importante ficou-lhe inteiramente claro. Se sofria a desdita de ter menoscabado a importância dos sentimentos na averiguação das causas do desajuste moral, também deixara de considerar que a misericórdia divina lhe daria a devida trégua para a aquisição de resistências psíquicas adequadas para sofrear os impactos da revelação, ao mesmo tempo que serviriam de couraça segura com que se protegeria dos próprios ataques que desfecharia contra sua pessoa. Valiosíssimas tinham sido, portanto, as informações que acumulara no cuidado com os eventuais suicidas.

Achou que estava progredindo e criou coragem para chegar-se ao instrutor particular para confiar-lhe o drama de sua existência.

Raimundo recebeu-o com agrado e declarou, desde logo, que o aguardava há algum tempo, não tendo tomado a iniciativa de procurá-lo por depender de seu livre-arbítrio a consulta. De qualquer forma, estava pronto para ouvi-lo, embora deixasse claramente demonstrado que bem estava ciente de tudo.

O fato foi notado por Serapião, que se alegrou por verificar que, da mesma forma que proporcionava assistência aos encarnados, havia quem por ele se preocupasse. Isso lhe deu segurança e, sem titubeios, iniciou a descrição da percepção de que algo havia feito que ofendera o Senhor, embora o fato não se lhe revelasse inteira e claramente à consciência. Desde há muito vivia com esse fardo, embora não desse a demonstrar a ninguém, porque fazia questão de impedir que se manifestasse para não prejudicar os trabalhos sob sua responsabilidade. Pedia ao mentor que lhe indicasse o caminho da cura.

Raimundo não se fez de rogado e longamente discorreu a respeito da felicidade de possuírem os indivíduos uma consciência. Ressaltou especificamente, no caso do protegido, o papel de impulsionadora para o trabalho que exercera e finalizou dizendo que nada conhecia ou sabia que pudesse causar transtorno àquele nível. Deixasse a natureza agir que a sabedoria de Deus evidenciaria, de uma hora para outra, a necessidade de imprimir corretivos aos aspectos menos desenvolvidos de sua moral. Somasse às que possuía outras virtudes em falta e voltasse a procurar o instrutor, após cinco anos.

Para quem esperava resposta imediata, a postura do orientador não poderia agradar. Durante os dois primeiros anos, preocupou-se demasiadamente em analisar os porquês que teriam levado o amigo a dilatar tanto o prazo para a volta. Finalmente, concluiu que o tempo nada era diante da eternidade e, se dois anos se passaram, tão cheios de serviços e realizações, teria a capacidade de esperar mais dez, vinte, uma centena, com absoluta confiança de que a recomendação fora valiosa.

Nesse meio tempo, foi guindado a cargo de mais larga responsabilidade, pois lhe foi outorgada a função de administrar o hospital psiquiátrico encarregado do socorro e restabelecimento dos infortunados suicidas pinçados no Umbral, portanto, em condições de assistência e restabelecimento.

Tendo necessidade de mais estudos, dedicava-se integralmente às tarefas, tendo pouco tempo para avaliar até que ponto a pressão cármica se exercia sobre a consciência, a impedir-lhe que se dedicasse de modo absoluto ao conhecimento, prevenção, tratamento e cura das defecções psíquicas. Buscava a compreensão de todos os fenômenos mentais de caráter teratológico, supondo, de modo intuitivo, que, ao se deparar com algum caso análogo ao seu, despertaria para a verdade.

Os três anos se passaram sem que se apercebesse, de modo que, quando se apresentou ao velho amigo, seis meses haviam transcorrido além do prazo.

Raimundo não estranhou o retardamento, tendo feito questão de ressaltar que isso se devia à necessidade de adaptação à idéia de que a realidade a ser enfrentada poderia ferir o andamento dos trabalhos na instituição que Serapião administrava. Era compreensível a preocupação com preparar possível substituto. Após esse intróito, fez considerações a respeito da natureza da capacitação adquirida pelo protegido e recomendou-lhe que lá permanecesse por mais dez anos, no mínimo, a fim de assegurar-se de que o tempo, realmente, pouco significava, conforme lera no relatório apresentado pelo discípulo. Não conseguira decifrar o mistério da angústia consciencial, mas via para breve a possibilidade de resolução do enigma. Acrescentasse mais paciência à tenacidade, mais comedimento à seriedade, mais proficiência ao devotamento e buscasse fortificar-se intelectualmente, uma vez que era evidente o seu brilho e acuidade. As bibliotecas de psicologia humana dos encarnados não poderiam ter segredos para ele. A par disso, que fosse investigar na Terra o destino de todos os parentes e amigos, para assistência direta durante os momentos de folga. Sabia Raimundo que o que estava pedindo ao afilhado era tremenda sobrecarga às tão extensas atribuições, contudo, se, realmente, estava tão interessado em desfazer a impressão de pecado, que atendesse intimorato.

Desta feita, Serapião não se admirou das observações do mentor nem titubeou em considerar que bem poderia estar certo. Pelo menos, as crises de consciência tinham diminuído e isso lhe comprovava que o remédio ministrado principiava a surtir efeito.

Após muito meditar, resolveu atender a todos os compromissos de modo organizado e absolutamente previsível. Categorizou as tarefas por ordem de prioridade, organizou rigoroso horário de atendimento, dispôs o pessoal na instituição de assistência de forma a substituí-lo com eficácia nas incursões pelas leituras e no acompanhamento aos encarnados e pôs-se a campo para a realização das obrigações.

Inicialmente, as obras revelaram-se-lhe imensamente simples e acessíveis. Surpreendeu-se com a possibilidade de ilustração da teoria por meio dos inúmeros casos atendidos. Entrou em contacto com os autores das diversas dissertações e propôs-lhes acrescentar roteiro demonstrativo da aplicação da teoria à prática, de modo que, ao cabo de algum tempo, juntara à agenda mais aquela necessidade de trabalho. Solicitou a ajuda de alguns companheiros e iniciou a descrição de caso a caso, ilustrando, de modo valiosíssimo, as obras compulsadas. Dada a facilidade de impressão e divulgação, em breve, as diversas instituições no campo etéreo estavam recebendo a sua contribuição, o que lhes facilitava enormemente o reconhecimento dos problemas dos pupilos e assistidos.

Serapião tornara-se, realmente, pesquisador sério e aplicava a sua natureza superior de modo absolutamente conveniente. Se se dedicasse à pesquisa pura de modo ordenado, encontraria meios para discutir a teoria, de forma a ampliar os conhecimentos na área da realidade da mente humana encarnada. Sem cobiçar alcançar esse alto objetivo, mas confiante em que a experiência e capacidade poderiam conduzi-lo para esse setor, dedicou-se a fundo em concluir as leituras e as ilustrações, de molde a esgotar completamente todas as fontes. De fato, após vinte e cinco anos de reflexões, estava Serapião prontinho para enfrentar o novo desafio.

Entrementes, nas poucas horas que lhe sobravam semanalmente, acompanhou os filhos e demais familiares na jornada pela carne, de modo a se tornar protetor dos mais ativos e diligentes. Mercê de sua condição superior na instituição que dirigia, à vista das inúmeras amizades que ia conseguindo por sua determinação na consecução das tarefas e na perseguição incansável dos objetivos, sem jamais ter medido qualquer sacrifício de caráter íntimo, mas administrando o tempo do pessoal com magnanimidade e benevolência, sem nunca ter pressionado jamais alguém a desempenho coercitivo para além do lógico e do razoável, estabeleceu cordato relacionamento com diversos companheiros que o assistiam desveladamente na função de acompanhamento do pessoal na carne. Assim, se, por acaso, algo parecia indicar necessidade de ajuda ou de simples atendimento, as providências eram tomadas por delegação e depois referidas ao amigo e superior; se algo de incomum e urgente merecia a presença do responsável maior pela assistência, Serapião era imediatamente alertado, de forma que a organização lhe facilitou sobremodo prestar total ajuda aos companheiros encarnados.

Certo dia, ao recolher-se em prece, lembrou-se da necessidade de reencontrar o orientador e amigo para a terceira entrevista. Despertou para tão grande atraso, mas, cumprindo o protocolo, apresentou-se para receber as devidas informações, resultado de trabalho de pesquisa e de amor nunca negados.

Raimundo estava muito feliz por ter o assistido desenvolvido tão grandemente, para além das expectativas, todos os tópicos da anterior recomendação. Elogiou a diligência, o esforço, o trabalho, a conquista de todas as virtudes preconizadas e declarou, finalmente, que era hora de Serapião conhecer o que lhe causara tanto transtorno moral. Que voltasse à sua presença, assim que descobrisse em suas posteriores investigações, pois tinha amplas condições de ajuizar sozinho a respeito da consciência. Disse mais. Disse que, às vésperas de descobertas importantes no campo a que se dedicava, a ponto de poder ampliar os conhecimentos no setor, certamente incluiria, entre as teses que iria desenvolver, uma que se solidificaria sobre a sua própria consciência. Quanto ao ressarcimento das dívidas para com o Senhor, ficasse tranqüilo que o Pai providenciaria.

A seguir, ambos saíram abraçados do gabinete do instrutor, tendo-se dirigido ao templo mais próximo para agradecimento conjunto da felicidade de partilharem de tanta bem-aventurança e assistência. Ali, contritos, elevaram os pensamentos ao Senhor, enquanto lágrimas lhes brotavam saudáveis e intensas, a demonstrarem a compenetração que adquiriram da necessidade de obrar pelo próximo em amor, pelo amor que deviam ao Pai.

Faz cinqüenta anos que Serapião se dedica a escrever obras preciosíssimas a respeito da consciência humana culpada e do tratamento preventivo que se deve dar ao encarnado para restabelecimento das premissas cármicas, a fim de evitar o suicídio. Trata também da cura dos ferimentos e da possibilidade de restabelecimento dos enfermos no plano espiritual. Ultimamente, tem-se dedicado à organização de grupos socorristas para atendimento dos que se encontram perdidos no Umbral, a fim de se amenizarem os efeitos deletérios ao perispírito desde a primeira hora. Tão cedo não conseguirá arriscar palpite a respeito do término da atividade.

Tendo sido procurado por Raimundo para a discussão a respeito de certa defecção psíquica de um dos assistidos do mentor, durante a conversa saiu o assunto de sua pressão consciencial. Sorridente, Serapião pediu ao irmão que lesse as últimas dez obras que, por certo, ali se encontravam descritos todos os sintomas, as causas, as conseqüências e o tratamento para a afecção que o abalara. Mas dizer qual fora, não saberia. Que o mestre se dignasse apontá-la.

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