Usina de Letras
Usina de Letras
224 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62073 )

Cartas ( 21333)

Contos (13257)

Cordel (10446)

Cronicas (22535)

Discursos (3237)

Ensaios - (10301)

Erótico (13562)

Frases (50480)

Humor (20016)

Infantil (5407)

Infanto Juvenil (4744)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140761)

Redação (3296)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1958)

Textos Religiosos/Sermões (6163)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Artigos-->“Não sei de nada mais inútil que uma criança terrificada” -- 20/03/2007 - 22:39 (João Rios Mendes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Na tarde do dia 08 de março de 2007 – Dia Internacional da Mulher, eu estava na fila no supermercado Pão de Açúcar e presenciei uma mulher, que se encontrava logo atrás de mim, segurando um garoto de uns seis anos, ser convidada, pelas outras pessoas da fila, a se retirar, porque no carrinho dela havia muito mais que os dez volumes permitidos. Apesar da manifestação da fila inteira, a mulher continuou como se nada estivesse acontecendo, como se não fosse com ela. Esse ar de “não tô nem aí” irritou outra mulher, que também segurava uma criança da mesma idade. Esta segunda mulher largou seu filho e partiu para cima da outra. Ambas abandonaram seus filhos e foram resolver suas diferenças no chão, mostrando que não somos assim tão civilizados. Só não se machucaram muito porque a “turma do deixa disso” foi eficiente e as apartou. Mas a cena das mulheres se enfrentando não me espantou tanto, na verdade, nem sei direito o que aconteceu. O que me assustou foi a cara das crianças. Os meus olhos não se desgrudavam delas, em desespero com suas mães igualmente desesperadas. Mas o desespero das mães foi medido e calculado. O das crianças não. Largadas e apavoradas, elas choravam, imploravam e gritavam as mesmas frases: “mãe, pára com isso!”, “vamos embora, mãe”, “mãe, deixa disso!”, “mãe, não faz isso!”, “vamos sair daqui, mãe”...



A mãe que estava com o carrinho cheio teve uma dura lição e daqui pra frente provavelmente respeitará os direitos dos outros. A criança dela também, embora tenha aprendido da maneira mais cruenta possível.



Na noite daquele dia li a crônica do jornalista Sérgio Bittencourt - de onde copiei o título acima, publicada no jornal Correio da Manhã, de 12 de maio de 1965*. Nesta crônica, ele narra a prisão do ex-guerrilheiro Carlos Marighela, num cinema, pela polícia da ditadura. Segundo Bittencourt, os policiais do DOPS



[...] tiveram que atirar em virtude de Marighela encontrar-se armado. Mentira, e o fotógrafo deste jornal foi ameaçado por um dos vândalos, justamente porque fotografaria, como fotografou, Marighela sem arma... A fotografia que publicamos hoje mostra o terror estampado na cara das crianças presentes à arbitrariedade. Não sei de nada mais inútil que uma criança terrificada... O que sei, o pouco que sempre soube, é o que um bom senso me grita: pior que fazer uma “revolução” com aspas é aliar essa mesma “revolução” ao sangue inútil arrancado do corpo de um homem cambaleante, indefeso e sozinho – tudo isto ante os olhos confusos e assustados de crianças, que podem não saber o que seja uma “revolução”, mas já percebem o que é uma covardia. (José, 1997, p. 209-210)



Por casa do acontecido no supermercado e da leitura da crônica, passei aquela noite em claro, abalado, vendo os rostos e ouvindo os gritos das crianças. Esta insônia fez-me lembrar de quando eu tinha treze ou quatorze anos e vendia bilhetes de Loteria Federal pelas ruas de Brasília. (Loteria Federal é aquela dos bichos águia, burro, carneiro, cavalo, macaco, pavão e outros).



Naquele tempo, nos fundos do colégio Marista, em Taguatinga, fui abordado por dois garotos, bem maiores e mais fortes do que eu, com seus cachorros. Sem nenhuma razão, sem motivo algum, eles atiçaram os cachorros contra mim – acho que eram um doberman e um pastor alemão. Eles seguravam os animais pela coleira, os cães enfurecidos ficavam em pé nas patas traseiras tentando me alcançar. Eu chorava, implorava e gritava por socorro. Os rapazes riam zombando de mim e perguntando se eu estava com medo, falavam pra eu não correr. Como eu me afastava, cai de costas, indefeso. Aí senti no rosto a baba e o bafo quente dos cachorros. Não sei quanto tempo isso durou, mas foi uma eternidade de segundos. Igual às crianças no supermercado, eu também estava abandonado à própria sorte, ninguém nos socorreu, ninguém nos afagou. Todo humilhado, todo sujo e com os bilhetes espalhados pelo vento, levantei-me. Terminado aquele dia, também naquela noite não consegui dormir.



Que frase certeira! “Não sei de nada mais inútil que uma criança terrificada”.









*PIETROFORTE, Antonio Vicente. Semiótica Visual: os percursos do olhar. São Paulo: Contexto, 2004, p. 52.

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui