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Contos-->ALMA PENADA -- 28/05/2002 - 19:21 (Edmar Guedes Corrêa****) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Carlos e sua irmã Joana percorriam quase todos os dias aquele caminho entre o sítio onde moravam e a escola em que estudavam. Era cerca de cinco quilômetros e levavam aproximadamente 20 minutos. A ida era mais fácil que a volta devido ao declive acentuado da estrada. Alguns trechos eram esburacados e cobertos de pedregulhos. A estrada sinuosa era cercada por uma pequena mata na margem esquerda.
Cerca de um quilômetro da fazenda, após uma grande descida que terminava no início da mata, havia uma gruta de onde escorria uma água geladíssima. Todos que passavam por aquela estrada paravam para matar a sede. Carlos muitas vezes entrou por ali e subiu na gruta a procura da mina daquela água límpida e gelada. Outras vezes, usava aquela entrada para explorar a mata. Se bem que não poderia chamar aquilo de mata por causa do tamanho das árvores. Ele gostava muito daquele lugar.
Num domingo de Agosto, Carlos e sua irmã acompanharam sua mãe à Santa Paula. Ela fora à missa e levou os filhos, como de costume. Após a missa, dona Ana aproveitava para visitar alguns amigos. E lá iam as crianças atrás.
Dona Ana parou diante do portão de madeira da casa de dona Maria, e bateu palmas perguntando:
-- Dona Maria! Tem alguém em casa?
Silêncio por alguns instantes.
Dona Ana bateu palmas novamente.
-- Já vai! – respondeu uma voz.
-- Bons dias – disse dona Ana, depois que o portão foi aberto. – Como vai?
-- Vamos indo! Entre!
Entraram, subiram os dois degraus de tábua da porta da sala, e foram em direção da cozinha.
A casa de dona Maria era uma velha casa de taquara com reboques. Em alguns dos lados podia-se ver as taquaras amarradas com cipó. Além da pequena sala, mais dois quartos e a cozinha completavam os cômodos da casa.
Na cozinha, sentadas no banco de madeira, encontravam-se algumas senhoras conversando enquanto tomavam café em canequinhas feitas com lata de extrato de tomates.
-- Bons dias! – disse dona Ana às outras senhoras.
-- Bons dias! – exclamaram todas juntas.
-- Chegou numa boa hora – disse uma delas. Uma senhora de aproximadamente 45 anos.
-- Sentem-se – disse dona Maria.
Dona Ana se sentou e os filhos também se sentaram.
Dona Maria pegou três canequinhas e ofereceu café às visitas. Carlos não estava com vontade de tomar café, mas aceitou por delicadeza. Além disso, ele era tímido demais para dizer alguma coisa ou recusar a oferta.
A conversa continuou e dona Ana passou a fazer parte da rodinha de senhoras. As crianças permaneciam caladas, prestando atenção ao que elas conversavam.
Em dado momento, duas senhoras passaram a conversar entre si; uma delas, dona Rosália, vizinha de dona Ana, soltou a seguinte notícia:
-- Seu Francisco esteve lá em casa ontem e disse que há um homem todo vestido de branco aparecendo para as crianças – contou a mulher, com ar de mistério.
-- Eu também fiquei sabendo dessa história – interveio a outra. – Dizem até que os filhos do seu Chico já viram o tal homem na beira da estrada.
-- Seu Bento também disse que seu filho viu o homem – falou dona Rosália. – Ele disse que é um homem de mais ou menos 35 anos, todo vestido de branco, com um chapéu branco. Estão achando que deve ser uma alma penada.
-- Será, dona Rosália? – quis saber a mãe dos meninos.
Dona Ana era uma mulher assim como a maioria das mulheres do campo; acreditavam em muitas lendas. Não raras vezes, comentava com o marido casos de lobisomem que atacou fulano, que sicrano viu uma mula sem cabeça, e tantas outras histórias desse tipo.
Os filhos foram crescendo naquele ambiente de crenças e supertições. Quando ouviram a história do homem vestido de branco, ficaram assustados; contudo não demonstraram o medo que estavam sentindo. Também não tocaram no assunto com a mãe e nem entre si naquele dia. Parecia que o assunto havia começado e encerrado na casa de dona Maria.
Dona Ana falou a noite com o marido a conversa que ouvira das vizinhas na casa de dona Maria. Ele, porém, não deu importância ao fato. Achou que isso não passava de conversa fiada de quem não tem o que fazer. Até chegou a zangar com a mulher:
-- E você fica acreditando nessas bobagens!
Os filhos contudo, não ouviram essa conversa.
No dia seguinte, uma segunda-feira, as crianças levantaram cedo e se arrumaram para a escola. Carlos estava cursando a quarta série e sua irmã a terceira.
Saíram cerca de vinte minutos para as sete horas como faziam todos os dias que estudavam. Carlos porém, lembrou-se da história que ouviu no dia anterior. Repentinamente um medo tomou conta daquele menino. Então comentou com a irmã:
-- E se a gente encontrar aquele homem que as mulheres estavam falando ontem na casa da dona Maria?
-- Ai!, estou com medo! – exclamou a irmã, se encolhendo.
-- Eu também.
Estavam descendo o primeiro declive que desembocava na entrada da mata, onde havia um grande barranco.
Talvez foi só uma infeliz coincidência, ou talvez o lugar, por ser um pouco escuro e por ter uma mata, tenha despertado o medo naquelas crianças. A verdade é que os dois pararam ali mesmo, no meio do caminho, e não tiveram coragem de prosseguir em direção à escola.
-- O que a gente faz? – perguntou Joana.
-- Vamos voltar e falar que vimos o homem de branco ali no mato – sugeriu ele. – Estou com medo e não vou passar por ali sozinho. Já pensou se a gente encontra com ele e ele pega a gente?
-- Ai!, Meu Deus! Então vamos.
E voltaram.
Chegaram em casa morrendo de medo. Além de tudo ainda havia o receio da reação dos pais. Se não acreditassem neles, com certeza teriam que passar por aquele trecho sozinhos. E ainda por cima, com certeza, levariam uma surra. A única forma de escapar era serem convincentes. Tinham que demonstrar que realmente haviam visto o tal homem, custasse o que custasse.
-- O que aconteceu? – perguntou a mãe.
-- Vimos um homem todo de branco sentado no barranco, perto da mina – explicou Carlos. Sua voz estava presa e parecia muito assustado. Estava preste a chorar.
-- Ele tava lá e ficou olhando para nós e aí nós saímos correndo – completou a irmã, que também estava com a voz trêmula, com voz de choro.
O medo os tornou tão verdadeiros e convincentes que a mãe, também influenciada pelo que ouvira no dia anterior, não hesitou em acreditar. Os filhos foram espertos em procurar a mãe. Sabiam que seria muito mais fácil ela acreditar no que estavam contando do que o pai; Aliás, as mães tendem sempre a acreditar mais nos filhos do que os pais. Além do mais, a mãe já tinha ouvido a história e isso facilitava por demais as coisas.
Se o pai realmente acreditou nos filhos, não sabemos. Contudo, ele foi ao local juntamente com os filhos e a esposa procurar o referido homem de branco. Vasculhou todo o lugar e não encontrou nada.
Os pais quiseram tranqüilizar os filhos, mas o medo não os abandonava. Então Joana disse:
-- Ah ele ali! – Apontou o dedo. – Passou correndo pra lá. – Continuou indicando para onde “ele” tinha ido.
-- Mas não estou vendo nada! – exclamou o pai.
-- Eu também não vi nada! – disse a mãe.
-- Ele está ali – disse Carlos, ajudando a irmã.
Procuraram, procuraram e ninguém encontrou nada; pelo simples motivo de que não havia nada para ser encontrado. O que havia sucedido com as duas crianças era provavelmente o mesmo que se sucedera com as que deram origem a história. Ou seja, não haviam visto nada. Talvez os primeiros tenham visto alguém, alguém que não conheciam e por acaso estava vestido de branco, e tivessem ficado impressionadas que acabaram se amedrontando; tão amedrontadas quanto Carlos e Joana.
Os dois filhos não tiveram a intenção de enganar os pais ou faze-los de bobos. Não, nada disso. Foram apenas movidos por um medo do desconhecido, coisa muito comum em crianças. Principalmente quando se leva em conta o grande número de crendices em que estão expostos. Sabiam que não viram nada, mas fizeram daquela mentira algo tão real, que eles mesmos acabaram por acreditar que estavam vendo alguma coisa. E não mediram esforços para manter a mentira.
Naquele dia, a mãe os acompanhou até a escola e contou o episódio à professora.
A volta para casa foi de grande medo. Tiveram dificuldades para passar pelo mesmo local sozinhos. Contudo, não havia outro jeito: passaram correndo sem olhar para trás.
Durante os quatro dias seguintes a história se repetiu. As crianças continuavam como medo de passar pela estrada. E toda vez que alguém ia procurar o tal homem, não encontrava nada. Outras pessoas foram ajudar a vasculhar o local, mas também não o encontraram. A conclusão que chegaram era de que aquele homem todo vestido de branco que só aparecia para as crianças, na verdade só poderia ser uma alma penada vagando por aquelas redondezas, pedindo algumas preces. Foi o que fizeram: preces, muitas preces.
Não tardou para que a notícia se espalhasse pela redondeza. Primeiro, foram os vizinhos mais próximos; depois, a notícia chegou à Santa Paula. E assim, Carlos e a irmã ficaram conhecidas como as crianças que viam o homem de branco.
No primeiro final de semana, depois do ocorrido, os filhos se juntaram à mãe durante o anoitecer e foram rezar o terço para a pobre alma do homem de branco. Durante cerca de uma hora, os três de joelhos rezaram virados para a cama. Eram orações repetitivas que pareciam intermináveis. Ainda mais para crianças de dez e onze anos. Aquilo era quase uma tortura para eles, ter que repetir a mesma coisa varias vezes. Contudo, agüentaram firme, pois haviam inventado a mentira por medo e não podiam mais desmenti-la. Carlos achou que aquilo na verdade era um castigo por terem inventado a história.
No domingo, dona Ana levou os filhos à missa. A igreja estava lotada. Todos que haviam acreditado na narrativa dos meninos estavam ali com o mesmo objetivo: orar para que a alma daquele homem descansasse em paz e não voltasse a aparecer para assustar mais crianças. A missa foi realizada e o padre não deixou de ler a lista de pessoas para as quais, em memória delas, aquele culto se celebrava. Dentre essas pessoas constava a alma de um desconhecido que estava implorando por preces.
Ao final da missa, todos os presentes saíram consternados.
No dia seguinte, uma segunda-feira, as crianças foram para a escola e não viram mais o homem de branco. O medo havia passado, não de todo, mas o suficiente para não terem que insistir com aquela farsa. E assim, todos pensaram que o homem havia desaparecido graças às preces e a missa que fora rezado em favor de sua alma. Contudo, Carlos sabia que não era nada disso.
Nunca mais ninguém viu o homem de branco. O ocorrido ainda continuou a ser contado por muitas pessoas durante muitos anos. Carlos e sua irmã cresceram, mudaram-se para outra cidade. Ainda hoje, depois de mais de vinte anos, há alguém que se lembre desse episódio.
Para Carlos, aquela conversa despretensiosa deixou marcas muito mais profundas que se podia imaginar. Ele nunca mais se esqueceu daquilo tudo, e por conseqüência perdeu um bem precioso: a fé. Não só a fé em Deus, mas se tornou um cético ferrenho. Quando teve maturidade para analisar os fatos, viu que as pessoas acreditam naquilo que não podem ver e no que os outros dizem, sem mesmo averiguar se o que acabaram de ouvir tem fundamentos ou não. Se for assim, então porque acreditar num Deus que nunca viu? Num Deus que só se sabe através de livros escritos a milhares de anos, por pessoas que também estivessem sendo iludidas como foram seus pais, seus visinhos e tantos outros. “Ora! Se eu e minha irmã fomos capazes de enganar uma comunidade inteira, o que não poderiam ter feito outras pessoas durante milhares de anos! Até hoje as pessoas continuam sendo enganadas por políticos escrupulosos, por falsos profetas...”, pensou ele muitos anos depois, quando já era um homem formado.
Carlos pensou muito nisso e em outras coisas mais. Ao final das contas,chegou a conclusão de que só deveria acreditar naquilo que pudesse ver, ser provado e comprovado. E assim perdeu a fé e se tornou ateu.

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