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Artigos-->Analisando Chico Bento -- 26/07/2007 - 15:18 (João Rios Mendes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Este trabalho foi embasado na Criação da Estética Verbal, de Mikhail Bakhtin, que retrata a relação do autor com o herói e analisa as ações emotivo-volitivas e o aspecto físico deste herói. A partir desta teoria, que analisa a relação autor-personagem, e das histórias de Chico Bento, realçaremos, contrariamente, a relação leitor-personagem, em que o leitor é o autor e o personagem o herói.

O personagem Chico Bento foi criado pelo escritor Maurício de Souza, que usa as histórias em quadrinhos como suporte para o leitor. Chico é um garoto de uns cinco anos de idade, que gosta de brincar, tem preguiça de ir à escola, é rodeado de amigos e tem uma namorada e uma família harmoniosa.

Ao ler Chico Bento, o leitor encontra um personagem que mora no campo, numa realidade não muito distante da sua. Essa proximidade com o mundo rural talvez facilite o entrosamento do leitor com o personagem. Este leitor sai do mundo urbano e, durante a leitura, penetra no campo, passeia por lá, enfim, sente-se em casa e confunde-se com o próprio homem do campo. Durante seu passeio, este turista rural abandona sua vida urbana e, por um momento, aventura-se na companhia de Chico Bento, seus amigos e familiares. O personagem empresta sua história para que o leitor viaje ao campo sem sair de casa. O menino caipira Chico Bento atrai o leitor que se vê passeando pelo campo e se esquece de seu mundo urbano agitado, com seu excessivo tráfego de veículos, violência e correria para cumprir os horários dos compromissos e afazeres.

Por ser criança, o personagem Chico Bento tem a mesma dificuldade de um garoto de sua idade de pronunciar algumas palavras dominadas pelos adultos, além disso, constrói frases de acordo com o linguajar das pessoas de seu convívio. O personagem, ao vivenciar as suas histórias, mantém o leitor sempre por perto, este se identifica e reencontra-se nas histórias que viveu ou que foram contadas por seus antepassados.

A grande lição que se tira da leitura de Chico Bento é a constatação de que a realidade e a ingenuidade dele, sendo esta certa ou não, oferece várias maneiras de o leitor aceitar e conviver no mundo com ele, pois não há nada ali que seja estranho a ponto de causar desprezo a quem é convidado a lá estar.

Para Bakhtin (1992, p. 26) a “reação a um todo é precisamente específica da reação estética (...) julga e lhe assegura o acabamento em forma de um todo concreto-visual que é também um todo significante”. Por isso, Chico Bento não existe sem a beleza do mundo que o cerca. Ele seria falso se não se trajasse como um garoto caipira e não fizesse as estripulias próprias de quem vive no campo. Todos esses componentes (trajes, estripulias, linguagem etc.) não existiriam se estivessem fora dele e devem ser analisados integralmente no personagem.

Segundo Bakhtin (1992, p. 28), “quando o autor fala de seu herói, expressa sua relação do momento com um herói já criado e determinado (...) encarado de um ponto de vista social, moral ou outro (...)”, a admiração do leitor pelo personagem é construída sobre o fio das atitudes ético-subjetivas do personagem. Cada movimento do personagem é construído pelo leitor, de forma a lhe dar vida. Neste caso, dar vida significa o leitor compartilhar as aventuras de Chico Bento, tomar banho com ele nos córregos, roubar as goiabas do vizinho, ir à escola, cuidar dos animais, etc.

O personagem não interage com o leitor, não se prepara para se encontrar com ele. Ao contrário, é o leitor quem se prepara, molda-se, e ajusta sua postura para com o personagem. O personagem é soberano em seu mundo. Tudo leva a crer que ele é independente em seu mundo, pois parece que ele não age em conformidade com os desejos do leitor. Sendo assim, se o leitor não estiver disposto a esse ajustamento, não haverá interação e interposição do seu mundo e o do personagem.

Bakhtin afirma que:

o autor é o depositário da tensão exercida pela unidade de um todo acabado, o todo do herói e o todo da obra (...) Esse todo que assegura o acabamento ao herói; o herói não pode viver dele e inspirar-se nele em sua vivência e em seus atos... (BAKHTIN, 1992, p. 32)

Para o leitor, Chico Bento não se acaba, pois, a cada história, ele o surpreende com suas artimanhas, sempre inocente na visão do leitor, e astuta, na visão do personagem. O leitor também é inacabado e evolui a cada episódio. Nas realizações observadas pelo grupo, constatamos que o leitor de Chico Bento caminha lado a lado com ele e compartilha sua ética e subjetividade. Esse compartilhamento acontece em mundos diferentes, mas não tão distantes da realidade do leitor. O interesse pelo garoto Chico Bento é atribuído, em grande parte, ao seu comprometimento ético e à sua ingenuidade mista de criança e caipira.

O leitor aprecia o personagem, identifica-se com ele, penetra em seu cotidiano, mas não altera o seu mundo. Ele vivencia a história e volta para a sua realidade sem trazer as experiências ali vividas. Se o leitor traz para o seu mundo as experiências do personagem, trata-se de um caso patológico, em que o personagem está mais impregnado no leitor do que no seu criador, o autor. O que o leitor vivencia é o universo do personagem: um mundo imaginário com padrões reais, perfeito, com uma família estável, amigos fiéis e liberdade para brincar.

Segundo Bakhtin,

é só nos voltarmos para a imaginação criadora, para o devaneio sobre nós mesmos, e logo nos convenceremos de que ela não utiliza o aspecto físico (...) O mundo de meu devaneio se dispõe à minha frente (...) sem ter, com isso, a menor representação da minha imagem externa, ao passo que a imagem das outras personagens (...) se apresenta com uma nitidez em geral impressionante. (BAKHTIN, 1992, p. 48)



O aspecto físico do personagem é um fator instigante para o leitor, pois lhe traz recordações saudosistas dos tempos de sua própria infância ou de seus antepassados. Nessa transposição de cultura, o personagem Chico Bento define a história, toma conta do leitor e determina o fim de seu passeio como turista rural. Quando fecha a revista, o leitor encerra sua viagem, inconsciente de que foi determinada pelo personagem. Mesmo fadigado, e deixando a leitura para outro momento, o leitor, ainda assim, está preso à narrativa do personagem.

O personagem não pode mudar o seu aspecto físico, sob o risco de alterar o foco da história e a interpretação que o leitor tem dele. O aspecto físico do leitor está em sintonia com o do personagem. Aqui, a ditadura é do leitor que não permite a mudança física do personagem. Não é recomendável que o personagem mude bruscamente seu aspecto físico, mas, quando a mudança é necessária, esta deve usar antecipadamente artifícios explicativos que preparem o leitor para o novo visual do personagem, de forma a não comprometer o seu sucesso.

Continua Bakhtin:

A visão que temos de nosso aspecto físico quando nos olhamos no espelho é de natureza totalmente particular (...) permanecemos em nós mesmos e só vemos o nosso reflexo (...) vemos o reflexo de nosso aspecto físico, mas não vemos a nós mesmos em nosso aspecto físico (...) estamos diante do espelho, mas não estamos dentro do espelho (...) A relação que temos com nosso aspecto físico não é de ordem estética e só se refere ao efeito que eventualmente podemos causar aos outros. (BAKHTIN, 1992, p. 52)



Sendo assim, o aspecto físico do Chico Bento não é apenas uma fotografia, é também o comportamento ético e subjetivo que está exposto para o leitor. Tão só pela imagem o leitor já é capaz de construir parte do contexto individual subjetivo do personagem. Mas essa visão fotográfica que o leitor tem do personagem é finita e só se completa com a avaliação do comportamento ético e subjetivo dele. O aspecto físico do leitor é acabado para si, já o aspecto físico do personagem é inacabado para o leitor. A questão esbarra no inconsciente do leitor que se vê como um ser pronto e acabado e apto para entender o personagem que também está pronto e acabado. A certeza do leitor acontece quando ele se vê, tempos mais tarde, fazendo nova avaliação do aspecto físico ou ético-subjetivo do personagem.

Por que o leitor lê uma história de Chico Bento? Talvez a pergunta principal seja: por que motivo ele volta a ler? Esse desejo de participar do mundo do personagem é inerente à vontade de o leitor viver aquelas aventuras. Essa resposta corrobora com Bakhtin (1992, p. 48) quando afirma que “o devaneio não preenche as lacunas da percepção efetiva e não tem de preenchê-las”. Essa vontade entre o mundo real e o imaginário das histórias causa tensão ao leitor e o estimula a participar das aventuras de Chico Bento.

A viagem do leitor pela cultura e costumes de Chico Bento é a linha divisória entre o devaneio daquele e a realidade deste. É neste momento que o leitor deixa sua realidade para viver o imaginário do personagem, adentrando no mundo dele e o tornando real em sua vida. Somente quando finda a história é que o leitor toma fôlego, respira e volta a si, retornando da viagem. Para Bakhtin (1992, p. 48), “de um ponto de vista plástico-pictural, o mundo do devaneio se assemelha ao mundo da percepção afetiva”; é o devaneio, o prazer dessa viagem do mundo concreto ao mundo imaginário que captura a fidelidade e a admiração do leitor pelo personagem. O leitor é cooptado pelo personagem a fazer essa viagem, a se abstrair para viver novas experiências. O personagem é sagaz ao deixar pistas para atraí-lo. Este, conscientemente ou não dessa indução, entrega-se sem resistência ao chamado do personagem que, a cada episódio, conta com um leitor assíduo.

Segundo Bakhtin,

quando me identifico com o outro, vivencio sua dor precisamente na categoria do outro e a reação que ela suscita em mim não é o grito de dor, e sim a reação a palavra de reconforto e o ato de assistência. (BAKHTIN, 1994, p. 46) (grifos no original)



Igualmente, o leitor, quando se identifica com a história, não abandona seus valores éticos e subjetivos, mas coloca-os à prova ao compartilhar os valores éticos e subjetivos do personagem. Embora seja grande o poder do personagem sobre o leitor, este só assume os valores do outro quando seus valores não estão completamente sedimentados. O leitor só questiona seus valores quando o personagem é convincente em suas posturas, e isso só evolui com o amadurecimento do leitor. A ação que o personagem exerce sobre o leitor só é possível graças à sua força. Essa tensão na relação leitor-personagem só acontece devido à instabilidade emocional do leitor que, a cada contato, se depara com o personagem de identidade definida.

No caso de Chico Bento, o leitor conhece a personalidade, a ética e até prevê certas atitudes do personagem. O leitor, porém, está em permanente construção, é ele quem muda de opinião a cada novo contato, constrói opiniões novas e decide continuar ou não a deleitar-se com as aventuras do personagem. Já este não muda de ética só para agradar o leitor.

O que antes era tensão, agora é ditadura do personagem sobre o leitor. Ditadura, ressaltemos, não de exigência de mudança de compromisso, mas de fidelidade a cada episódio. Para sobreviver, o personagem conserva sua postura ética linear inarredável, pois as mudanças comportamentais nem sempre são bem recebidas pelo leitor que também não abandona seus princípios. Quando o leitor domina sua personalidade, é ele quem constrói e modifica o personagem. Enquanto o leitor não impõe sua personalidade, é o personagem quem molda os valores ético e subjetivo do leitor.





*Este texto é parte de um trabalho maior elaborado com as colegas Raquel Soares, Kelma Ribeiro e Aline Cardoso, apresentado no curso de Pós-Graduação em Gramática, Texto e Discurso.

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