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Poesias-->POEMA NÃO-DESCARTÁVEL -- 23/06/2000 - 20:00 (João Ferreira) |
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POEMA NÃO-DESCARTÁVEL
Eu pertenço a um mundo essencial
Que existe algures
Dentro e acima de mim
Pertenço a um território demarcado
Para onde fui enviado
Sem que eu soubesse exatamente para quê
Mas estou aqui
Na minha rota cósmica
Preso ao meu mundo essencial
Por necessidade original
Decidi entrar no jogo
Onde alguma rainha-fada
Preside aos destinos de uma corrida sem patrocinadores
De longa data
Meus aios e meus mestres
Me recomendaram não deixar escapar os sinais
Que as coisas, o firmamento e a consciência moral
Nos enviam
Durante muito tempo
Cumprindo a recomendação
Virei um poeta e um místico à espera de redenção
Nas noites estreladas
Meu olho se danava com o luar sem soluço romântico
Mas minha insistente vontade
Procurava o mistério das luzes azuis do dia
E o das vermelhas nas tardes de crepúsculo
No percurso da observação me habituei
A sentir o prazer visual das cores
E a mística asssombração da via-láctea e das estrelas
Ao lembrar-me que meu corpo encarcerado
Mora em território demarcado
Na mira de um mundo essencial
Farejei com atenção o planeta em que habito
Como poeta-navegador construí um barco à prova de onda
E passei a fazer grandes esperas à madrugada
E serestas ao pôr-do-sol e aos lindos cravos
Passei a conhecer melhor este país
E durante longos anos atravessei os vales
Observei as plásticas estufas de rosas
Com talos firmes e perfumes embevecidos
No frio e no calor
Aprendi a suavizar meu cárcere
Redimindo parte de meu cativeiro sofrido de outrora
Transeuntes omuns
Me achavam ave rara
Uma figura volante de passarinho
Com resquícios de dinossauro
Na minha rota rígida
Comentaristas desnuclearizados
Me achavam um doido marginal etcetera e tal
Eu sabia que o recolhimento na caverna
Me iniciara no espírito dos grandes mistérios
Do país estranho que demandamos
Nunca me perturbei
No meu passo vigiado pela dama da corte
Assegurado pela sabedoria de meus mestres
Nessa trajectória
Tal como nos palácios orientais
Havia muitas carrancas voltadas para meu caminho
Mas a poesia da minha mente me ensinava a venerar
Alegorias, mitos e sabedorias milenares
Por assentimento interno
Meu id caminhava lado a lado com o ego
Numa camaradagem legal que sabe misturar
Palavras rituais com gestos profundos
Caminhando
Agora descubro
Que meu passaporte está caducando
E que fiel aos códigos patrimoniais da minha cidade
E à bandeira do meu país
Me sinto ora em casa própria ora em cabana in-gloo
Fazendo desta viagem minha grande aventura
Como outros humanos busco dialéticas razões
Cultos e cânones artísticos
Procurando nos ícones a pista
Para o trabalho apaziguador da mente
E na plataforma existencial
Me deleito com a poesia messiânica
Que explica a touca do bailado da dor e da beleza
Eu sei que a poesia pode armar o espírito
Suavizar o cárcere
E compor com a razão a busca do mundo essencial
Apesar das intempéries e dos gelos polares
E da carcaça em declínio
Acredito na sobrevivência estelar
Além das tragédias cósmicas e essenciais
Alheias à minha vontade
Também descobri o ar de comédia
De lances fortuitos e inesperados
Que temperam a particular travessia
Como no Sussuarão nos tempos jagunços de Riobaldo
Nesta perspectiva sobra a mensagem
Do lado temporal e corrosivo da existência
Persoinificada na veste material do cosmos em transformação
Assim meio pensador meio místico meio cigano
No intervalo
Vivo em minhas tendas e acampamentos da mente
Catando discursos simbólicos
Alegorias e música
Para não perder o embalo radical
Que faz conviver com o aroma das flores
E com o repousante convívio da natureza
Nossa mãe.
Jan Muá
Brasília 1987 |
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