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Ensaios-->LINHAS FUTURISTAS EM FERNANDO PESSOA -- 10/10/2000 - 09:36 (João Ferreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
AS LINHAS FUTURISTAS MARINETTIANAS E AS INDIVIDUAÇÕES MODERNISTAS PESSOANAS DA 'ODE TRIUNFAL' DE ÁLVARO DE CAMPOS


João Ferreira
10 de outubro de 2000


INTRODUÇÃO

Entre as leituras possíveis da 'Ode Triunfal' , daremos preferência, por agora, a uma leitura acadêmica, própria de uma sala de aula, tentando privilegiar a objetividade do conhecimento haurido nas fontes. Para dar sucesso a essa leitura, estruturaremos nossa exposição partindo de uma estratégia modelizada em vários tempos.
Num primeiro tempo, uma introdução que aborde uma metodologia científico-pedagógica dirigida para o leitor-receptor.
Num segundo tempo, o texto intregral do Manifesto de Tommaso Marinetti sobre o Futurismo (1909).O conhecimento do texto de Marinetti é 'conditio sine qua non' para a abordagem dos princípios estéticos do futurismo, e base para o estabelecimento da uma pesquisa intertextual e comparativa com o texto de Álvaro de Campos.
Num terceiro passo, mostraremos o texto integral da Ode Triunfal, datado de Londres- junho de 1914, que proporcionará ao leitor-receptor o material essencial para uma leitura analítica, compreensão dos conteúdos da Ode e aprofundamento da relação entre Marinetti e Fernando Pessoa. Pela leitura direta, o leitor/receptor perceberá a cumplicidade entre os dois autores comprometidos com o modernismo e futurismo vanguardista, e a ruptura com as teorias estéticas vigentes no final do século XIX. Ao mesmo tempo, a leitura analítica franqueará não só o encontro com Marinetti, mas mostrará a ênfase dada à poesia sensacionista, interseccionista, modernista e futurista de Fernando Pessoa. Através de Álvaro de Campos, Fernando Pessoa mostrará nesta Ode o tributo que pagou a uma corrente vanguardista como foi o futurismo e também a forma autônoma de encarar a estética futurista, ao se distanciar de alguns parâmetros traçados dogmaticamente por Marinetti, como é o caso do desprezo pelo passado, pelas bibliotecas e museus,etc. Basicamente, Álvaro de Campos, sintoniza com Marinetti ao assumir o tom laudatório e empolgante a favor da Civilização industrial. Mas para além do Manifesto, é reservado um grande espaço para a subjetividade poética de Fernando Pessoa, o qual, através do heterônimo Álvaro de Campos, nos dá uma Ode com detalhes riquíssimos, ampliando, de maneira nova e enriquecedora, a temática do Manifesto e mostrando a sua relação poética com o mundo industrial e contemporâneo, adotando posições avançadas de modernidade e de contemporaneidade. Pela linha reta do confronto intertextual e comparativo entre as duas peças de vanguarda, será mais fácil mostrar o caminho desta nossa leitura essencialmente textual e objetiva.

I – O TEXTO DO
MANIFESTO SOBRE O FUTURISMO DE TOMMASO MARINETTI(1909)*


“Nós estivemos toda a noite em vigília, meus amigos e eu, sob as lâmpadas de mesquita, cujas cúpulas de cobre tão esburacadas como nossa alma tinham todavia os corações elétricos. E espezinhando nossa nativa preguiça sobre opulentos tapetes persas, discutimos nas fronteiras extremas da lógica e grifamos o papel de dementes escrituras.
“Um imenso orgulho enchia nossos peitos, ao nos sentir os únicos em pé, como os faróis ou como as sentinelas avançadas, face ao exército de estrelas inimigas que acampam nos seus bivaques celestes. A sós com os mecânicos nas caldeiras infernais dos grandes navios, a sós com os negros fantasmas que se mexem no ventre vermelho das locomotivas desvairadas, a sós com os bêbados que batem as asas contra as paredes!
E eis-nos bruscamente distraídos pela circulação dos enormes tramway de dois andares, que passam sobressaltantes, matizados de luz, tais como os lugarejos em festa, que o Pó, nas enchentes subitamente abala e destrói, para os arrastar sobre as corredeiras e redemoinhos de um dilúvio, até ao mar.
Depois o silêncio se agravou. Como escutávamos a prece extenuada do velho canal a ranger os ossos dos palácios moribundos na sua barba de verdura, súbito rugiram sob nossas janelas os automóveis esfomeados.
Vamos, meus amigos! Disse eu. Partamos! Enfim, a Mitologia e o Ideal místico estão ultrapassados. Vamos assistir ao nascimento do Centauro e veremos logo voarem os primeiros Anjos! – É preciso abalar as portas da vida para nela experimentar os gonzos e os ferrolhos!... Partamos! Eis o primeiro sol nascendo sobre a terra!... Nada é igual ao esplendor de sua espada vermelha que se esgrima pela primeira vez nas nossas trevas milenares.
Nós nos aproximamos das três máquinas resfolegantes para acariciar seu peito. Eu me deitei sobre a minha, sob a direção –cutelo de guilhotina – que ameaçava meu estômago como um cadáver no seu caixão, mas ressuscitei de repente.
A grande vassoura da loucura nos arrancou e nos empurrou através de ruas escarpadas e profundas como torrentes esgotadas. Aqui e ali lâmpadas deploráveis, nas janelas, nos ensinavam a menosprezar nossos olhos matemáticos. - O faro, gritei eu, o faro basta às feras!... E nós caçávamos, como novos leões, a Morte na pelagem negra, salpicada de cruzes pálidas, que corria diante de nós no vasto céu violeta, palpável e vivo. E portanto não tínhamos a Amante ideal levantando a sua foice até às nuvens nem a Rainha cruel a quem oferecer nossos cadáveres torcidos em argolas bizantinas... Nada para morrer a não ser desejo de nos desembaraçar enfim de nossa muito lenta coragem!
Nós íamos esmagando sob o umbral das casas os cães de guarda, que se achatavam enrodilhados sob nossos pneus queimados, como um falso colarinho sob um ferro de engomar.
A Morte afagada me antecedia em cada curva, para me oferecer gentilmente a pata, e alternativamente, se deitava rente à terra com um ruído de maxilares estridentes, escorrendo-me os olhares veludosos do fundo das poças..
Saiamos da Sabedoria como de uma ganga horrenda e entremos, como frutos apimentados de orgulho, na boca imensa e torta do vento!... Demo-nos de comer ao Desconhecido, não por desespero, mas simplesmente para enriquecer os insondáveis reservatórios do Absurdo!
Com eu havia dito estas palavras, virei repentinamente sobre mim com a embriaguez louca dos cães raivosos que se mordem a cauda, e eis de repente que dois ciclistas me desaprovaram, titubeando diante de mim como dois raciocínios persuasivos e portanto contraditórios. Seu ondeamento estúpido discutia no meu terreno... Qual tédio!... Puah!... Eu cortei logo e, por asco, me lancei – zás traz! - de cabeça para baixo, numa valeta...
Oh! Maternal fosso, cheio pela metade de uma água lodosa! Fosso de usina! Eu saboreei em plena boca tua lama fortificante que me lembra a santa teta negra de minha ama sudanesa!
Como eu endireitasse meu corpo, lodoso e malcheiroso glutão, senti o ferro vermelho da alegria me traspassar deliciosamente o coração...
Uma multidão de pescadores à linha e de naturalistas gotosos estava amotinada de espanto em volta do prodígio. Com a alma paciente e minuciosa, eles elevaram muito alto enormes gaviões de ferro para pescar meu automóvel, parecido a um grande tubarão atolado. Ele emergiu lentamente abandonando o fosso, tais as escamas, sua pesada carroceria de bom-senso e seu estofado de conforto.
A gente o acreditava morto, meu bom tubarão, mas eu o despertei com um só carinho no seu dorso todo-poderoso e ei-lo ressuscitado, correndo a toda a velocidade sobre suas barbatanas,
Com o rosto mascarado pela boa lama das usinas, cheio de escórias de metal, de suores inúteis e de fuligem celeste, levando nossos braços pisados na tipoia, entre o lamento dos sábios pescadores à linha e dos naturalistas angustiados, nós ditamos nossas primeiras vontades a todos os homens vivos da terra:

MANIFESTO DO FUTURISMO

1.Nós queremos cantar o amor ao perigo, o hábito à energia e à temeridade.
2.Os elementos essenciais de nossa poesia serão a coragem, a audácia e a revolta.
3.Tendo a literatura até aqui enaltecido a imobilidade pensativa, o êxtase e o sonho, nós queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, o passo ginástico, o salto perigoso, a bofetada e o soco
4.Nós declaramos que o esplendor do mundo se enriqueceu com uma beleza nova: beleza da velocidade. Um automovel de corrida com seu cofre adornado de grossos tubos como serpentes de fôlego explosivo... Um automóvel rugidor, que tem o ar de correr sobre a metralha, é mais belo que a vitória de Samotrácia...
5. Nós queremos cantar o homem que tenha direção, cuja haste ideal atravessa a Terra, arremessada sobre o circuito de sua órbita...
6. É preciso que o poeta se desgaste com calor, brilho e prodigalidade, para aumentar o fervor entusiástico dos elementos primordiais...
7. Não há mais beleza senão na luta. Nada de obra-prima sem um caráter agressivo. A poesia deve ser um assalto violento contra as forças desconhecidas, para intimá-las a deitar-se diante do homem...
8. Nós estamos sobre o promontório extremo dos séculos!... Para que olhar para trás. No momento em que desenterrar os batentes misteriosos do Impossível? O Tempo e o Espaço morreram ontem. Nós vivemos já do absoluto, já que nós criamos a eterna velocidade omnipresente.
9. Nós queremos glorificar a guerra – única higiene do mundo- o militarismo, o patriotismo, o gesto destrutor dos anarquistas, as belas idéias que matam e o menosprezo da mulher.
10. Nós queremos demolir os museus, as bibliotecas, combater o moralismo, o feminismo e todas as covardias oportunistas e utilitárias.
11. Nós cantaremos as grandes multidões movimentadas pelo trabalho, pelo prazer ou pela revolta; as ressacas multicoloridas e polifônicas das revoluções nas capitais modernas; a vibração noturna dos arsenais e dos estaleiros sob suas violentas luas elétricas: as estações glutonas, comedoras de serpentes que fumam; as usinas suspensas nas nuvens pelos barbantes de suas fumaças; as pontes para pulos de ginastas lançadas sobre a cutelaria diabólica dos rios ensolarados: os navios aventureiros farejando o horizonte; as locomotivas de grande peito, que escoucinham os trilhos como enormes cavalos de aço freados por longos tubos e o voo deslizante dos aeroplanos cuja hélice tem os estalos da bandeira e os aplausos da multidão entusiasta.

Foi na Itália que nós lançamos este manifesto de violência agitada e incendiária, pala qual fundamos hoje o Futurismo, porque queremos livrar a Itália de sua gangrena de professores, de arqueólogos, de cicerones e de antiquários.
A Itália foi por muito tempo o grande mercado das quinquilharias. Nós queremos desembaraçá-la dos museus inumeráveis que a cobrem de inumeráveis cemitérios.
[...]

II. O TEXTO DA
“ODE TRIUNFAL” DE ÁLVARO DE CAMPOS (1914)

Depois de apresentarmos o texto do Manifesto sobre o Futurismo de Marinetti, é fundamental que coloquemos à disposição do leitor, o texto da Ode Triunfal de Álvaro de Campos para um objetivo cotejo e pesquisa textual. Eis o texto da Ode:


1 À dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica
2 Tenho febre e escrevo
3 Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto
4 Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

5 Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r- eterno!
6 Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria
7 Em fúria fora e dentro de mim,
8 Por todos os meus nervos dissecados fora,
9 Por todas as papailas fora de tudo com que eu sinto!
10 Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
11 De vos ouvir demasiadamente de perto,
12 E arde-me a cabeça de querer cantar com um excesso
13 De expressão de todas as minhas sensações,
14 Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

15 Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical
16 Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força –
17 Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,
18 Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
19 E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas
20 Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão
21 E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta
22 Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem
23 Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes
24 Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
25 Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma

26 Ah! Poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
27 Ser completo como uma máquina!
28 Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
29 Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
30 Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
31 A todos os perfumes de óleos e calores e carvões
32 Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável

33 Fraternidade com todas as dinâmicas!
34 Promíscua fúria de ser parte- agente
35 Do rodar férreo e cosmopolita
36 Dos comboios estrénuos
37 Da faina transportadora-de-cargas dos navios,
38 Do giro lúbrico e lento dos guindastes,
39 Do tumulto disciplinado das fábricas
40 E dos quase-silêncio ciciante e monótono das correias de transmissão!

41 Horas européias, produtoras entaladas
42 Entre maquinismos e afazeres úteis

43 Grandes cidades paradas nos cafés,
44 Nos cafés – oásis de inutilidades ruidosas
45 Onde se cristalizam e se precipitam
46 Os rumores e os gestos do ÚTIL
47 E as roda, e as rodas-dentadas e as chumaceiras do Progressivo

48 Nova Minerva sem-alma dos cais e das gares!
49 Novos entusiasmos da estatura do Momento!
50 Quilhas de chapas de ferro sorrindo encostados às docas,
51 Ou a seco, erguidas, nos planos-inclinados dos portos
52 Atividade internacional, transatlântica, CanadianPacific!
53 Luzes e febris perdas de tempo nos bares, nos hotéis,
54 Nos Longchamps e nos Derbies e nos Ascots,
55 E Piccadillies e Avenues de l’Opera que entram
56 Pela minh’alma dentro!

57 Hé-lá as ruas, hé-lá as praças, hé-la-hô la foule
58 Tudo o que passa, tudo o que pára às montras!
59 Comerciantes, vadios, escrocs exageradamente bem vestidos,
60 Membros evidentes de clubes aristocráticos
61 Esquálidas figuras dúbias, chefes de família vagamente felizes
62 E paternais até na corrente de oiro que atravessa o colete
63 De algibeira a algibeira!
64 Tudo o que passa, tudo o que passa e nunca passa!
65 Presença demasiadamente acentuada das cocotes,
66 Banalidade interessante (e quem sabe o quê por dentro?)
67 Das burguesinhas, mãe e filha geralmente,
68 Que andam na rua com um fim qualquer:
69 A graça feminil e falsa dos pederastas que passam ,lentos
70 E toda a gente simplesmente elegante que passeia e se mostra
71 E afinal tem alma lá dentro!

72 (Ah como eu desejaria ser o souteneur disto tudo!)

73 A maravilhosa beleza das corrupções politicas
74 Deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos
75 Agressões políticas nas ruas
76 E de vez em quando o cometa dum regicídio
77 Que ilumina de Prodígio e Fanfarra os céus
78 Usuais e lúcidos da Civilização quotidiana!

79 Notícias desmentidas dos jornais,
80 Artigos políticos insinceramente sinceros,
81 Notícias passe-à-la caisse, grandes crimes –
82 Duas colunas deles passando para a segunda página!
83 O cheiro fresco a tinta da tipografia!
84 Os cartazes postos há pouco, molhados!
85 Vient-de-paraitre amarelos com uma cinta branca!
86 Como eu vos amo a todos, a todos, a todos,
87 Como eu vos amo de todas as maneiras,
88 Com os olhos e com os ouvidos e com o olfacto
89 E com o tacto (o que palpar-vos representa para mim?)
90 E com a inteligência como uma antena que fazeis vibrar!
91 Ah como todos os meus sentidos têm cio de vós!

92 Adubos, debulhadoras a vapor, progressos da agricultura!
93 Química agrícola, o e comério quase uma ciência!
94 Ó mostruários dos caixeiros-viajantes,
95 Dos caixeiros-viajantes, cavaleiros-andantes da Indústria,
96 Prolongamentos humanos das fábricas e dos calmos escritórios!

97 Ó fazendas nas montras! Ó manequins! Ó últimos figurinos!
98 Ó artigos inuteis que toda a gente quer comprar!
99 Olá grandes armazéns com várias secções!
100 Olá anúncios elétricos que vêm e estão e desaparecem!
101 Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente de ontem!
102 Eh cimento armado, beton de cimento, novos processos!
103 Progressos dos armamentos gloriosamente mmortíferos!
104 Couraçaas, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos!

105 Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera
106 Amo-vos carnivoramente
107 Pervertidamente e enroscando a minha vista
108 Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis,
109 Ó coisas todas modernas
110 Ó minhas contemporâneas, forma actual e próxima
111 Do sistema imediato do Univeso!
112 Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!

113 Ó fábricas, ó laboratórios, ó music-halls, ó Luna-Parks,
114 Ó couraçados, é pontes, ó docas flutuantes -
114 Na minha mente turbulenta e incandescida
115 Possuo-vos como a uma mulher bela,
115 Completamente vos possuo como a uma mulher bela que não se ama
116 Que se encontra casualmente e se acha interessantíssima.

117 Eh-lá-hô fachadas das grandes lojas!
118 Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios
119 Eh-lá-hô recomposições ministeriais!
120 Parlamento, políticas, relatores de orçamentos,
121 Orçamentos falsificados
122 (Um orçamento é tão natural como uma árvore
123 E um parlamento tão belo como uma borboleta.)

124 Eh-lá o interesse por tudo na vida
125 Porque tudo é a vida, desde os brilhantes nas montras
126 Até à noite ponte misteriosa entre os astros
127 E o mar antigo e solene, lavando as costas
128 E sendo misericordiosamente o mesmo
129 Que era quando Platão era realmente Platão
130 Na sua presença real e na sua carne com a alma dentro,
131 E falava com Aristóteles que havia de não ser discípulo dele

132 Eu podia morrer triturado por um motor
133 Com o sentimento de deliciosa entrega de uma mulher possuída.
134 134 Atirem-me para dentro das fornalhas!
135 Metam-me debaixo dos comboios!
136 Espanquem-me a bordo de navios!
137 Masoquismo através de maquinismos!
138 Sadismo de não sei quê moderno e eu e barulho!

139 Up-lá hó jóquei que ganhaste o Derby
140 Morder entre dentes o teu cap de duas cores!

141 (Ser tão alto que não pudesse entrar por nenhuma porta!
142 Ah, olhar é em mim uma perversão sexual!)

143 Eh-lá, eh-lá, eh-lá, catedrais!
144 Deixai-me partir a cabeça de encontro às vossas esquinas
145 E ser levantado da rua cheio de sangue
146 Sem ninguém saber quem eu sou!

147 Ó tramways, funiculares, metropolitanos
148 Roçai-vos por mim até ao espasmo!
149 Hilla! Hilla! Hilla-hô!
150 Dai-me gargalhadas em plena cara,
151 Ó automóveis apinhados de pândegos e de putas,
152 Ó multidões quotidianas nem alegres nem tristes das ruas,
153 Rio multicolor anônimo e onde eu me posso banhar como quereria!
154 Ah, que vidas complexas, que coisas lá pelas casas de tudo isto!
155 Ah, saber-lhes as vidas a todos, as dificuldades de dinheiro,
156 As dissensões domésticas, os deboches que não se suspeitam,
157 Os pensamentos que cada um tem a sós consigo no seu quarto
158 E os gestos que faz quando ninguém pode ver!
159 Não saber tudo isto é ignorar tudo, ó raiva,
160 Ó raiva que como uma febre e um cio e uma fome
161 Me põe a magro o rosto e me agita às vezes as mãos
162 Em crispações absurdas em pleno meio das turbas
163 Nas ruas cheias de encontrões!

164 Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma,
165 Que emprega palavrões como palavras usuais,
166 Cujos filhos roubam às portas das mercearias
167 E cujas filhas aos oito anos – e eu acho isto belo e amo-o! –
168 Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada.
169 A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa
170 Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão
171 Maravilhosa gente humana que vive como os cães
172 Que está abaixo de todos os sistemas morais,
173 Para quem nenhuma religião foi feita
174 Nenhuma arte criada
175 Nenhuma política destinada para eles!
176 Como eu vos amo a todos, porque sois assim,
177 Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus,
178 Intangíveis por todos os progressos,
179 Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!

180 (Na nora do quintal da minha casa
181 O burro anda à roda, anda à roda,
182 E o mistério do mundo é do tamanho disto.
183 Limpa o suor com o braço, trabalhador descontente.
184 A luz do sol abafa o silêncio das esferas
185 E havemos todos de morrer
186 Ó pinheirais sombrios ao crepúsculo,
187 Pinheirais onde a minha infância era outra coisa
188 Do que eu sou hoje...)

189 Mas, ah outra vez a raiva mecânica constante!
190 Outra vez a obsessão movimentada dos ônibus.
191 E outra vez a fúria de estar indo ao mesmo tempo dentro de todos os comboios
192 De todas as partes do mundo
193 De estar dizendo adeus de bordo de todos os navios,
194 Que a estas horas estão levantando ferro ou afastando-se das docas.
195 Ó ferro, ó aço, ó alumínio, ó chapas de ferro ondulado!
196 Ó cais, ó portos, ó comboios, ó guindastes, ó rebocadores!

197 Eh-lá grandes desastres de comboios!
198 Eh-lá desabamentos de galerias de minas!
199 Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes transatlânticos!
200 Eh-la hô revoluções aqui, ali, acolá,
201 Alterações de constituições, guerras, tratados, invasões,
202 Ruído, injustiças, violências e talvez para breve o fim,
203 A grande invasão dos bárbaros amarelos pela Europa,
204 E outro Sol no novo Horizonte!

205 Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto
206 Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,
207 Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?
208 Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento
209 O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro
210 O Momento estridentemente ruidoso e mecânico,
211 O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes
212 Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais.

213 Eia, comboios, eia pontes, eia hotéis à hora do jantar,
214 Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos,
215 Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de cavar,
216 Engenhos, brocas, máquinas rotativas!
217 Eia! Eia! Eia!
218 Eia electricidade, nervos doentes da Matéria!
219 Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do Inconsciente!!
220 Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!
221 Eia todo o passado dentro de todo o presente!
222 Eia todo o futuro já dentro de nós! Eia!
223 Eia!eia!eia! eia!
224 Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita!
225 Eia!eia!eia, eia-hô-ô-ô!
226 Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me
227 Engatam-me em todos os comboios.
228 Içam-me em todos os cais
229 Giro dentro das hélices de todos os navios.
230 Eia! Eia-hô eia!
231 Eia! Sou o calor mecânico e a eletricidade!

232 Eia! E os rails e as casas de máquinas e a Europa!

233 Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a trabalhar, eia!

234 Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá!


235 Hup-lá, hup-lá. Hup-lá-hô, hup-lá!
236 Hé-lá! Hê-hô Ho-o-o-o-o!
237 Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!

238 Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!


Londres –6-1914.


III. ALGUNS ELEMENTOS DE LEITURA DO MANIFESTO


De posse dos dois textos, uma leitura analítica, exigiria uma compreensão cabal da terminologia empregada e algumas considerações úteis ao universo hermenêutico.

Em primeiro lugar, haveria que salientar algumas linhas básicas da ideologia estética do Manifesto de Marinetti.
Antes de tudo, o Manifesto é uma chamada de atenção sobre a revolução industrial, sobre a tecnologia que se seguiu às grandes invenções do século XIX e mostra um novo caminho para a estética literária baseada em novas realidades inventivas e tecnológicas, que caracterizam a civilizaçaão industrial: a eletricidade, as locomotivas, o delírio do automóvel, as máquinas resfolegantes, os gonzos, os ferrolhos, a realidade das usinas, a civilização metálica, os guindastes, as caldeiras infernais dos grandes navios, os tramways de dois andares, a velocidade, etc.
A mais alta forma de expressão estética, segundo Marinetti, é a luta. Não há obra-prima sem caráter agressivo. “A poesia deve ser um assalto violento contra as forças desconhecidas para intimá-las a deitar-se diante do homem”.
Numa antecipação ao próprio sentido estético-naturalista de Alberto Caeiro e do dadaismo, Marinetti defende um retorno ao natural e ao primitivo (“O faro basta às feras”);
Num dos artigos importantes do Manifesto, prega-se a ousadia, a coragem perante o perigo e a ameaça da Morte;
Defende-se no Manifesto uma atitude estética anti-tédio da geração decadentista anterior;
Proclama-se a morte do Tempo e do Espaço: “O tempo e o Espaço morreram ontem. Nós vivemos já do absoluto[]...]” Item 8.
Proclama-se a beleza da velocidade: “Nós declaramos que a beleza do mundo se enriqueceu com uma beleza nova: a beleza da velocidade!. Item 4.
Faz-se o confronto entre a naturalidade dos “sábios” pescadores, de um lado, e a preocupação científica dos angustiados “naturalistas”.
Cantam-se as grandes multidões movimentadas pelo trabalho, pelo prazer e pela revolta. Item 11.
Declaradamente, o Manifesto quer desembaraçar através da literatura a mentalidade envelhecida da Itália e da Europa.
Com o “peito cheio de orgulho” a geração futurista representada pelo Manifesto lança um desafio novo com desprezo pelo passado, pelas trevas milenares. De seu código está excluída a Mitologia clássica e a história das religiões. “Partamos! Enfim, a Mitologia e o Ideal místico estão ultrapassados” (Introdução).


IV. VESTÍGIOS MARINETTIANOS E INDIVIDUAÇÕES MODERNISTAS PESSOANAS

Apresentados os textos e a terminologia dos dois documentos, teríamos agora o encargo de apontar os principais vestigios marinettianos e as individuações modernistas pessoanas na Ode Triunfal. Por outras palavras. Compete-nos mostrar os traços que manifestam o rastreamento de Fernando Pessoa, apesar do Manifesto, tanto no aspecto de originalidade como de caminho autônomo.


4.1. A inspiração e os vestígios marinettianos. A passagem de Pessoa pelo texto de Marinetti

A primeira preocupação crítica é a de mostrar a relação de Pessoa com o texto de Marinetti.
Na produção poética de Álvaro de Campos encontramos um poema intitulado “Marinetti Acadêmico”. É um poema sem data. Ele registra a transição do poeta Marinetti, outrora autônomo e futurista irreverente para o rol dos poetas acadêmicos. Álvaro de Campos fala da escalada do poeta para o social e da pressão que todo o poeta sofre até perder sua liberdade e tornar-se acadêmico: “Lá chegam, todos, lá chegam todos.../Qualquer dia, salvo venda, chego eu também.../ Se nascem afinal, todos para isso... (I, 1038) [...] “Lá chegam todos/Marinetti Acadêmico...// As musas vingaram-se com focos elétricos, meu velho/ Puseram-te por fim na ribalta da cave velha/ E a tua dinâmica sempre um bocado à italiana,f-f-f-f-f-f-f-f-f- “ Só foge disso quem morre antes” (Lelo, II, 1038). Este poema atesta que Pessoa conhecia e acompanhava a trajetória poética de Marinetti.
Mas a Ode Triunfal é mais do que isso. O texto mostra que ele leu e conheceu o Manifesto. Por outro lado, é interessante alinhar a Ode com outros textos em prosa deixados por F.Pessoa. Entre outros, “O lazer agitado da vida moderna”, onde observa: “Movemo-nos muito rapidamente de um ponto para outro ponto onde não há nada a fazer, e chamamos a isto pressa febril da vida moderna. Não é a febre da pressa, mas a pressa da febre”(Obras em prosa, p.499). E tem outro texto sobre “Características de nossa época” onde ele fala dos “toxicômanos da velocidade” 499 e 500.. “O que o Mestre Caeiro me ensinou foi a ter clareza, equilíbrio, organismo no delírio e no desvairamento e também me ensinou a não procurar ter filosofia nenhuma, mas com alma” (Obras em Prosa, 153).
Tanto “O lazer agitado da vida moderna” quanto as características da nossa época mostram um acompanhamento e um interesse muito grande do poeta de Mensagem pelos problemas contemporâneos. Pessoa diz: “A minha Ode Triunfal no 1º número de Orpheu é a única cousa que se aproxima do futurismo. Mas aproxima-se pelo assunto que a inspirou, não pela realização – e em arte a forma de realizar é que caracteriza e distingue as correntes e as escolas”( Álvaro de Campos. A ignorância crítica a respeito do futurismo. In: PESSOA, F. Obras em Prosa, Aguilar, 154). Isto confirma que as teses do futurismo inspiraram a Ode e que os dois textos se aproximam entre si. Tal aproximação, porém, é caracterizada mais pela temática do que pela forma. A análise textual leva-nos à conclusão de que a forma é inteiramente pessoana. E é a forma, na realidade, que distingue toda a estrutura e beleza artística da Ode. O próprio Fernando Pessoa nos alerta que: “Em arte é a forma de realizar que caracteriza e distingue as correntes e as escolas.”
Pelo texto em si, pela inspiração temática e pelos elencos terminológicos apresentados, a aproximação é clara. Há detalhes inconfundíveis. Os primeiros versos e o desfile das temáticas cantadas na Ode resumem o tom do poema. As lâmpadas elétricas, a fábrica, a febre, o ranger dos dentes das máquinas, as engrenagens, as rodas, os maquinismos em fúria, os motores, os gonzos, os êmbolos, a modernidade industrial em toda a sua extensão, a atmosfera intensa da máquina e o estado febril de criação do poeta traduzem o sentimento do novo belo da máquina que os antigos não conheceram “Fera para a beleza/ Para a beleza disto totalmente desconhecido dos antigos” (al. 3 e 4 da Ode), mostrando a essência futurista do poema. Não fica nenhuma dúvida de que a inspiração temática e terminológica marinettiana envolve o poema.
Mas há um leque maior de inspiração marinettiana. No artigo 11 do Manifesto, Marinetti diz: “Nós cantaremos as grandes multidões movimentadas pelo trabalho, pelo prazer ou pela revolta [...] Na Ode, Álvaro de Campos canta “Grandes cidades paradas nos cafés[...9] e no vv. 57: “Hé-lá as ruas, hé-lá as praças, hê-la-hô la foule” . No vv. 152 Ó multidões quotidianas nem alegres nem tristes das ruas”. Vv. “A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa/Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão/maravilhosa gente humana que vive como os cães/ que está abaixo de todos os sistemas morais/Para quem nenhuma religião foi feita/Nenhuma arte criada”.
Na introdução ao Manifesto, Marinetti fala do “ranger dos ossos dos palácios moribundos e do rugido “sob nossas janelas dos automóveis esfomeados”. Álvaro de Campos escreve nos vv. 23 e 25: [...”Átomos[...] que andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes/ Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando[...]. Marinetti fala de lâmpadas elétricas, do calor mecânico, de fúria, de comboios, de trilhos, navios, guindastes, tramsways, de pontes, da velocidade, dos automóveis. Na Ode de Álvaro de Campos, encontramos: tramways( v. 147), de rails (v.), de pontes (vv) 213, de guindastes (v.38),de lâmpadas elétricas da fábrica (vv. 1), de febre (v.2), de calor mecânico (v,231)
Marinetti: Nós nos aproximamos das três máquinas resfolegantes para acariciar seu peito” (I). Álvaro de Campos, no vv. 25 registra “a carícia” dos átomos que andam por estas correias de transmiissão”...

4.2. As individuações modernistas de Pessoa na “Ode Triunfal”

Mesmo ligado a Marinetti pela inspiração temática da Ode, Fernando Pessoa reservou seu talento para a criação ímpar. Aceitando construir através de Álvaro de Campos uma poética nova ligada à civilização moderna e contemporânea, ele soube se esmerar na composição irrepetível. Vamos acentuar alguns aspectos que mostram a intransferível modernidade e individualidade de Pessoa. São expressões, é a forma, o estilo, a invenção, a composição que o tornam Fernando Pessoa sem mais.
A primeira observação que seria útil colocar em destaque é que Pessoa, embora tenha acompanhado com entusiasmo o elogio da máquina e a civilização contemporânea propalados no Manifesto, não aderiu ao radicalismo marinettiano que rompia com o passado, eliminava o espaço e o tempo da poética futurista, proclamava a guerra, hostilizava o feminismo, louvava a temeridade e a loucura, condenava as bibliotecas e os museus, etc.
Para escrever a Ode Triunfal, Fernando Pessoa criou seu próprio espaço poético. A primeira dissensão proclamada por Pessoa é a concepção de tempo. Embora Marinetti tenha apregoado contundentemente: “Enfim, a mitologia e o ideal místico estão ultrapassados”(I)[...]saiamos da sabedoria como de uma ganga horrenda e entremos como frutos apimentados de orgulho, na boca imensa e torta do vento!...”[...] Nós queremos demolir os museus, as bibliotecas [...], Fernando Pessoa cria uma postura de preservação do passado. Essa postura é de aceitação do passado. O passado compõe parcialmente o tempo presente e a história humana. Fernando Pessoa entende que a sabedoria do passado integra a história da máquina moderna (“E há Platão e Vergílio dentro das máquinas”. No vv. 17 Álvaro de Campos abre a dimensão de seu canto: “Canto e canto o presente, e também o passado e o futuro/Porque o presente é todo o passado e todo o futuro/ E háPlatão e Vergílio dentro das máquinas e das luzes elétricas/ Só porque houve outrora e foram humanos Vergílio e Platão/ E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta/Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro de Ésquilo do século cem/ Andam por estas correias de transmissão[...]. E mais adiante: “Tudo oq eu passa, tudo o que passa e nunca passa” (v.64). E ainda nos vv.220-222: “Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!/Eia todo o passado dentro de todo o presente/Eia todo o futuro já dentro de nós. Eia!” Nos vv. 124 ss.: “Eh-lá o interesse por tudo na vida/Porque tudo é a vida, desde os brilhantes nas montras/Até à noite ponte misteriosa entre os astros/E o mar antigo e solene, lavando as costas/E sendo misericordiosamente o mesmo/Que era quando Platão era realmente Platão/Na sua presença real e na sua carne com a alma dentro/E falava com Aristóteles que havia de não ser discípulo dele.”.
Fica evidente que o modernismo e o futurismo de Fernando Pessoa se constrói pelo avanço dentro da modernidade sem, atropelos de tempo, fazendo ele a leitura perspicaz de que o tempo é indivisível na história evolutiva do próprio homem. É esta posição sobre o passado o marco divisor da múltipla independência de um poeta que aceita de Marinetti o que é e todos, como o triunfo da máquina, mas seletivamente irá desenvolver no poema o que for mais moderno como verdade contemporânea.

Para este capítulo, seria justo destacar o lugar importante que Álvaro de Campos dá à aplicação dos princípios sensacionistas na composição do poema. Sabemos que esses princípios caracterizaram especificamente o movimento de Orpheu e Fernando Pessoa faz questão de dizer que são eles a característica fundamental da geração de Orpheu. Logo nos primeiros versos da Ode, ao cantar as máquinas e os motores e os ruídos modernos nos vv. 12-14, canta: “E arde-me a cabeça de querer cantar com um excesso/ De expressão de todas as minhas sensações/Com um excesso contemporâneo de vós ó máquinas” . No v. 26: “Ah poder exprimir-me todo como um motor se exprime!”. No v. 226-231: “Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me/Engatam-me em todos os comboios/Içam-me em todos os cais/Giro dentro das hélices de todos os navios/Eia! Eia-hô-eia!/ Eia! Sou o calor mecânico e a eletricidade!”. O sensacionismo está vivo nos vv.83-91: “O cheiro fresco a tinta de tipografia!/ Os cartazes postos há pouco, molhados/ Vient-de-paraître amarelos com uma cinta branca!/Como eu vos amo a todos, a todos, a todos/Como eu vos amo de todas as maneiras,/Com os olhos e com os ouvidos e com o olfacto/ E com o tacto (o que palpar-vos representa para mim?)/E com a inteligência como uma antena que fazeis vibrar!/Ah como todos os meus sentidos têm cio de vós!”. Fernando Pessoa nos deixou uma Carta Sobre o Sensacionismo a um editor inglês e outro texto sobre o Plano e início de uma Teoria do Sensacionismo, onde ressalta o “sensacionismo como inovação estética (Lello, II, 195). Ao comparar o sensacionismo com os outros movimentos literários, Pessoa destaca a oposição do Sensacionismo aos movimentos literários anteriores. Mostra a diferença do sensacionismo em relação ao classicismo onde todos os assuntos deveriam ser tratados no mesmo estilo, no mesmo toma, 'com a mesma linha exterior a delinear-lhes a forma' ”II, 197). Mostra que o sensacionismo não busca “a visão nítida” como preocupação estética, “porque há sentimentos e conceitos que de sua natureza são complexos e não suscetíveis de expressão simplificada”(II,197). Nem tudo é nítido no mundo exterior. Também, ao contrário do classicismo que limitava a participação subjetiva do artista, o sensacionismo defende que o artista interpreta através de seu temperamentro no que ele mais tem de universal ou universalizável(Ib.197). Lembrar algo que possa representar o sensacionismo, ajuda a acompanhar a leitura desta Ode, múltipla, complexa, variada. Na linha sensacionista, muitos atalhos podem ser abertos para uma análise. Poderíamos colocar a abrangência sensacionista em toda esta Ode. “Tenho febre”(v.2), “ó rodas, ó engrenagens r-r-r-r-r-r-r-r eterno/Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria/ Em fúria fora e dentro de mim” (vv.5-7). “Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,/ De vos ouvir demasiadamente de perto. [...] vv. 10-11. “E arde-me a cabeça de querer cantar com um excesso/ De expressão de todas as minhas sensações,/Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas” (vv.12-14). “Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical” (v. 15). “Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto/ Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento/A todos os perfumes de óleos e calores e carvões/Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável” (vv.29-32).”Fraternidade com todas as dinâmicas!/Promíscua fúria de ser parte-agente/Do rodar férreo e cosmopolita/ Dos comboios estrénuos/Da faina transportadora-de-cargas dos navios/ Do giro lúbrico e lento dos guindastes[...] (vv.33-38). Este olhar sensacionista é amplo e abrangente. É parte-agente e estende-se a todas as coisas. É como um olhar carnívoro carregado de atenção, de desejo, de ação e de integração na máquina, na modernidade e na contemporaneidade, sob as formas mais variadas, até místicas: “Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera/Amo-vos carnivoramente/Pervertidamente e enroscando a minha vista/Em vós, ó coisas grandes, banais úteis, inúteis/ Ó coisas todas modernas/Ó minhas contemporâneas, forma actual e próxima/Do sistema imediato do universo/Nova revelação metálica e dinâmica de Deus” (vv.105-112). “Ah olhar é em mim uma perversão sexual” (v.142). E mais adiante, procurando a expressão de um sensacionismo mais passivo, mais sado-masoquista: “Eu podia morrer triturado por um motor/Com o sentimento de deliciosa entrega de uma mulher possuída./Atirem-me para dentro das fornalhas! /Metam-me debaixo dos comboios/Espanquem-me a bordo dos navios/Masoquismos através de maquinismos/Sadismo de não sei o quê moderno e eu e barulho!” (vv. 132-138). Ao falarmos da estética sensacionista pervadindo este poema, queremos sublinhar que Fernando Pessoa conscientemente canalizou toda a sua composição dentro de uma estratégia das idéias que expõe em “Proleg^menos para uma estética não-aristotélica”. Na estética não-aristotélica, quem comanda é a vida, a emoção, a sensação e não a intelectualização. No plano artístico da Ode, as máquinas e os motores passam a ser meras sensações que o poeta traduz artisticamente. Segundo o primeiro princípio do sensacionismo, “todo o objeto é uma sensação nossa”. E o segundo: “Toda a arte é a conversão duma sensação em objeto”. E o terceiro: “Toda a arte é a conversão duma sensação numa outra sensação” (Fernando Pessoa. Obra em Prosa. Aguilar,. 426). Traduzindo: a máquina e a civilização industrial são captados como sensações ou como percepções nossas. É isto o que colhemos dos objetos. Captamo-los como sensações. A partir do momento em que temos os objetos como sensações, tentamos materializá-los e devolvê-los à forma primitiva de objetos. Em terceiro lugar, a arte só é arte se nós, a partir de uma sensação de contato com a realidade, elevarmos essa sensação que colhemos dos objetos ao nível artístico da linguagem com que a arte se expressa: é o caso da pintura, da escrita, da escultura,etc.
Se prestarmos atenção, verificaremos que o grande fio condutor da composição da Ode é a exaltação da civilização industrial, da máquina, das multidões trabalhadoras, dos ócios modernos,e de toda a dinâmica da sociedade urbana, social e política. Sendo estética a intenção, o poeta é explícito na apresentação destas temáticas aparentemente prosaicas. Sua ode assume um tom de epopeia metálica, dinâmica, motorizada. A literatura descobre a indisfarçável presença da máquina e endereça para ela uma parte da propdução poética modernista e futurista. Este lado estético é sublinhado por Álvaro de Campos, ao resolver tomar como temática os fenômenos modernos da máquina, do motor e da eletricidade: “Tenho febre e escrevo [...] fera para a beleza disto/Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos” (vv. 3 e 4. Mas dentro desse teto há outros temas que fluem naturalmente como parte do mundo contempoâneo e que não opodemos deixar de referir. Entre eles: a parte que canta os armamentos e as máquinas mortíferas de guerra, a corrupção política (“a beleza das corrupções políticas, v. 73), a multidão (la foule) nas ruas e nas praças (v.57), a principalidade das vitrines e dos manequins na dinâmica vida moderna (“as montras” v.58, v. 97), a “presença demasiadamente acentuada das cocotes” (v.65), os “deliciosos” escândalos financeiros (v.74), os anúncios luminosos (v.100), o destaque dos caiaxeiros-viajantes (representações comerciais) na sociedade de consumo (“cavaleiros andantes da Indústria/ prolongamentos humanos das fábricas e dos calmos escritórios” vv.95-96), os novos processos da construção, o cimento armado (vv. 101-102). Num estilo ora exclamativo, ora descritivo, ora narrativo, Álvaro de Campos, mostra que estes fenômenos são do nosso tempo, são modernos e contemporâneos e fazem parte, atingem e condicionam nossa vida tornando visível da diferença da vida de hoje da vida de ontem (v.101).
A abrangência de alusao e conhecimento do contemporâneo e da psicologia da soeocidade moderna perpassam pelos versos de Álavaro de Campos. De sublinhar o expressivo emprego simbólicao do sinal de admiração/exclamação para significar o destaque, o espanto e a surpresa do novo! A argúcia e ironia com que nos repassa a transitoriedade da estética da corrupção e do escândalo “A maravilhosa beleza das corrupções políticas/ Deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos/Agressões políticas nas ruas/ E de vez em quando o cometa de um regicídio” (vv.73-76). Não escapa ao poeta a crítica ao exagero do consumismo “ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar” (v.98). Um poema que proporciona ainda a informação objetiva sobre uma sociedade voltada para o prazer do instante (“Novos entusiasmos da estatura do Momento” v.49), para o utilitarismo ( “os rumores e os gestos do útil” v. 46), sobre o trabalhador revoltado e descontente (v.183) e sobre outros fenômenos característicos de uma vida etiquetada que começou a desenvolver-se na sociedade industrial.
Para concluir, podemos resumir que, partindo de um canto agressivo contido na letra de um manifesto, Fernando Pessoa conseguiu, a nível artístico, produzir uma peça nova, enraizada nas vivências e nas sensações contemporâneas, dando-lhe um tratamento artístico com base na teoria sensacionista que ajudou a criar.


João Ferreira
Composição: 1995-2000
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