Usina de Letras
Usina de Letras
117 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62152 )

Cartas ( 21334)

Contos (13260)

Cordel (10448)

Cronicas (22529)

Discursos (3238)

Ensaios - (10339)

Erótico (13567)

Frases (50555)

Humor (20023)

Infantil (5418)

Infanto Juvenil (4750)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140788)

Redação (3301)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1958)

Textos Religiosos/Sermões (6177)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Ensaios-->TEORIA HERMENÊUTICA DE PAUL RICOEUR -- 10/10/2000 - 11:06 (João Ferreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


A TEORIA HERMENÊUTICA DE PAUL RICOEUR


João Ferreira
10 DE OUTUBRO DE 2000


INTRODUÇÃO

Wallace Martin, em seu trabalho 'O Círculo Hermenêutico e a arte de interpretação', traduzido por Luiza Lobo e inserido em 'Teoria da Literatura em suas Fontes' (org. de Luiz Costa Lima, Rio, Francisco Alves, 1975, pp.57-72), diz textualmente que 'cada novo modo de interpretação literária adveio ou resultou em uma formulação teórica'(p.57).
Partindo deste princípio, podemos compreender porque é que na dinâmica hermenêutica do nosso quotidiano de leitura e de recepção, na volúpia de tentarmos entender melhor o sentido do texto,recorremos a uma galeria de modalidades teóricas que habilitam ao acesso interpretativo do texto. Entre as teorias hermenêuticas contemporâneas, ocupa um lugar de destaque a teoria de Paul Ricoeur, de que iremos nos ocupar, a partir de agora.

O CORPUS DA NOSSA PESQUISA

É ampla a obra publicada por Paul Ricoeur na área de interpretação ou de hermenêutica. Entre suas obras, convém lembrar: 1. O Conflito das Interpretações. Ensaios de Hermenêutica (Le conflit des intéprétations. Essais d Hermeneutique, 1969), traduzido para português por Hilton Japiassu e publicado pela Editora Imago; 2. Da interpretação: ensaio sobre Freud,(1965)( a edição inglesa leva o título de 'Freud and Philosophy: an Essay on Interpretation', N.Y.,Yale University Press,197O) trad. port., Rio, Imago, 1978; 3.Simbólica do Mal e Interpretação ( A tradução norte-americana: The symbolism of Evil,N.Y., Harper & Row, 1967; 4.História e Verdade, Rio, Forense; 5. Interpretação e Ideologias, Rio, Francisco Alves, 1977 (organização, tradução e apresentação de H. Japiassu).Inclui o ensaio 'Hermenêutica e crítica das ideologias', publicado no volume 'Démithisation et idéologie, ed. Enrico Castelli, Aubier, 1973, pp.25-64) 6. Teoria da Interpretação, trad. portuguesa, Lisboa, ed. 7O, 1987; 7. A metáfora viva (La métaphore vive, Paris, Seuil 1975), trad. portuguesa de Hilton Japiassu.
Para organização do ideário que iremos apresentar neste ensaio, usaremos os seguintes textos de Paul Ricoeur: Interpretação e Ideologias, editora Francisco Alves, 1977, com organização, tradução e apresentação de Hilton Japiassu;Teoria da Interpretação que é uma série de lições dadas por Paul Ricoeur na Universidade Cristã do Texas, cidade de Fort Worth, Estado do Texas, USA, no período de 27 a 3O de novembro de 1973, com o título geral de Discurso e excesso de significação( Discourse and the Surplus of Meaning). A tradução portuguesa publicada pelas Edições 7O de Lisboa, fiel ao texto da Editora da Universidade Cristã do Texas foi feita a partir do original inglês 'Interpretation Theory: Discourse and the Surplus of Meaning', editorado em 1976 pela Texas Christian University Press. A edição portuguesa saiu com o título 'Teoria da Interpretação. O Discurso e o excesso de significação' em 1987. O nódulo central do livro aponta na direção de uma 'teoria sistemática e compreensiva que tenta explicar a unidade da linguagem humana em vista dos diversis usos a que é sujeita'.(ib.9). Se quisermos encontrar um lugar adequado para ele, diremos que ele se situa no 'horizonte das investigações de Ricoeur a propósito da linguagem e do discurso', conforme lembra Ted Klein no prefácio da edição americana. Esse autor identifica o aludido 'horizonte' como 'a busca de uma filosofia compreensiva da linguagem' apta a 'explicar as múltiplas funções do ato humano de significar e de todas as suas inter-relações', assinalando que nenhuma obra singular de Ricoeur publicada no período de 196O a 1969 procurou esse horizonte da 'filosofia compreensiva', e que nem as demais obras a oferecem em conjunto pelo fato de o próprio Ricoeur achar que essa elaboração não poderá ser oferecida por um só pensador.
A terceira fonte que usaremos como parte do corpus de pesquisa para o ideário desta palestra é O Conflito das Interpretações. Ensaios de Hermenêutica (Le conflit des interpretations. Essais d Herméneutique), publicado pelas Éditions du Seuil, Paris, em 1969.
Este livro tem o mérito de analisar a hermenêutica na sua realação com as principais teorias que ocupavam o debate teórico entre os inteletuais no final da década 6O: o estruturalismo, a psicanálise e a fenomenologia. Por essa análise e abrangência torna-se um livro necessário para compreensão do pensamento de Ricoeur.

O HORIZONTE DA HERMENÊUTICA

No decorrer desta exposição tentaremos o horizonte da teoria hermenêutica exposto por Paul Ricoeur. Para isso, alguns passos metodológicos serão estabelecidos. 1. Primeiro, exporemos as funções da Hermenêutica, segundo Ricoeur: a) tarefa hermenêutica; b) a exegese clássica e a compreensão hermenêutica; c) Ricoeur e a teoria hermenêutica contemporânea. 2. O enxerto hermenêutico na fenomenologia. 3. Os quatro pontos da teoria da interpretação de Paul Ricoeur.


1. AS FUNÇÕES DA HERMENÊUTICA

1.1. A tarefa hermenêutica

Ao tentar estabelecer a tarefa da hermenêutica, Paul Ricoeur parte da criação de um espaço conceitual: 'Adotarei a seguinte definição de trabalho - diz - : a hermenêutica é a teoria das operações da compreensão em sua relação com a interpretação dos textos'. A ideia diretora será a da efetivação do discurso como texto. Em seguida são elaboradas as categorias do texto, preparando-se o terreno para tentar superar a aporia central da hermenêutica, colocada pela crítica hermeêutica romântica, na dissociação entre entre explicar(erklaeren) e compreender(verstehen). A reorientação hermenêutica defendida por Ricoeur, deverá buscar, no plano epistemológico, dentro de uma noção do texto, uma complementariedade entre explicar e compreender.
Ricoeur parte criticamente de algumas pressuposições, tentando superar que justificam a própria pesquisa do ajuste hermenêutico. Segundo Ricoeur, não neutralidade em hermenêutica. Sempre há pressuposições. Segundo ele, a história recente da hermenêutica é dominada por duas preocupações. A primeira é aquela que tenta ampliar o horizonte da hermenêutica progressivamente de modo a fazer que as hermenêuticas regionais (particulares) sejam incluídas numa hermenêutica geral. Observa Ricoeur, entretanto, que essa busca de 'desregionalização' não poderá ser bem sucedida se as preocupações epistemológicas da hermenêutica, concentradas em seu esforço para constituir-se em saber de reputação científica, não forem subordinadas a preocupações ontológicas, 'segundo as quais 'compreender'deixa de aparecer como um simples modo de conhecer para tornar-se 'uma maneira de ser' e um modo de relacionar-se com os seres e o ser (Interpretação e Ideologia, tr.port., 18). 'O movimento de desregionalização se faz acompanhar pois de um movimento de radicalização pelo qual a hermenêutica se torna, não somente geral, mas fundamental (Ib.18).

1.2. A exegese clássica e a compreensão hermenêutica

Destacamos para informação e consideração sobre o subteme aem causa, uma passagem importante tirada de 'O Conflito das Interpretações. Ensaios de Hermenêutica'(LCI, ed. francesa, Seuil, 1969, p.7, e que diz respeito à irigem da hermenêutica.
'Não é inútil lembrar- diz Ricoeur - que o problema hermenêutico foi colocado primordialmente nos limites da exegese, ou seja no quadro da disciplina que se propõe compreender um texto, compreendê-lo a partir de sua intenção, na base do que ele quis dizer. Se a exegese suscitou um problema hermenêutico, ou seja, um problema de interpretação, é porque toda a leitura de texto, ligada ao 'quid', ao 'em vista de' qual o texto foi escrito, se faz sempre no interior de uma comunidade, de uma tradição ou de uma corrente viva de pensamento, que desenvolvem pressupostos e exigências. Neste sentido, a leitura dos mitos gregos na escola estoica, na base de uma física e de uma ética afilosóficas, implica uma hermenêutica muito diferente da interpretação rabínica da Thora na Halacha ou Haggada; por sua vez, a interpretação do Antigo Testamento à luz do acontecimento crístico, pela geração apostólica, dá uma outra leitura dos acontecimentos, das instituições, dos personagens da Bíblia diferente da dos rabinos.
Em que é que estes debates exegéticos se relacionam com aq filosofia? Na medida em que a exegese implica toda uma teoria do signo e da significação, como se vê pelo exemplo da 'De doctrina christiana'de Santo Agostinho. Mais precisamente, se um texto pode ter vários sentidos, por exemplo um sentido histórico e um sentido espiritual, é preciso recorrer a uma noção de significação muito mais complexa que a dos signos ditos unívocos que requer uma lógica da argumentação. Enfim, o trabalho mesmo da interpretação revela esquema profundo, o de vencer uma distância, um afastamento cultural, de igualar o leitor a um texto estranho e desta feita incorporar o seu sentido à compreensão presente que um homem pode captar dele mesmo.
Desta forma, a hermenêutica não pode permanecer apenas como uma trécnica de especialistas - a& 61472;& 61556;& 61541;& 61539;& 61550;& 61544;& 61472;& 61541;& 61554;& 61549;& 61544;& 61550;& 61541;& 61557;& 61556;& 61545;& 61547;& 61544; dos intérpretes de oráculos, de prodígios; ela põe em jogo o problema geral da compreensão. Assim, nenhuma interpretação marcante pôde constituir-se sem recorrer aos modos de compreensão disponíveis numa determinada época: mito, alegoria, metáfora, analogia,etc. Esta ligação da interpretação - no sentido preciso da exegese textual - com a compreensão ( no sentido amplo de entendimento dos signos) é atestada por um dos sentidos tradicionais da palavra 'hermenêutica', o que nos vem do & 61520;& 61541;& 61554;& 61545;& 61472;& 61509;& 61554;& 61549;& 61541;& 61550;& 61541;& 61545;& 61537;& 61555; de Aristóteles; é interessante que em Aristóteles a 'hermeneia'não se limita à alegoria, mas diz respeito a todo o discurso significante; mais: é o discurso significante que é a 'hermeneia', que 'interpreta'a realidade, na medida em que diz 'algo de alguma coisa'; há 'hermeneia' porque a enunciação é uma tomada do real através de expressões significantes, e não um extrato de significações que se dizem provenientes das próprias coisas.
Esta é a primeira e a mais original relação entre o conceito de interpretaçãoi e de compreensão; ela consegue comunicar os problemas técnicos da exegese textual aos problemas mais gerais da significação e da linguagem.
Mas a exegese não deveria suscitar uma hermenêutica geral a não ser através de um segundo desenvolvimento, que é o da filologia clássica e das ciências históricas do final do século XVIII e do início do século XIX. É com Schleiermacher e Dilthey que o problema hermenêutico se torna um problema filosófico. Quando falamos de 'origem da hermenêutica' queremos fazer uma alusão expressa ao célebre ensaio de Dilthey publicado em 19OO; o problema de Dilthey era o de dar às Ciências do Espírito (Geisteswissenschaften) uma validade comparável à das Ciências da Natureza, em plena época da filosofia positivista. Posto nestes termos, o problema seria epistemológico: haveria que elaborar uma crítica do conhecimento histórico, tão forte quanto a crítica kantiana do conhecimento da natureza e subordinar a esta crítica procedimentos esparsos da hermenêutica clássica: lei do encadeamento interno do texto, lei do contexto, lei do contexto geográfico, étnico, social,etc. Mas a solução do problema excedia as fontes de uma simples epistemologia: a interpretação que para Dilthey está ligada a documentos fixados pela escritura, é somente uma província do domínio mais vasto da compreensão, que vai de uma vida psíquica a uma vida psíquica estranha; o problema hermenêutico acha-se assim puxado pelo lado da psicologia: compreender é, para um ser finito, transportar-se a uma outra vida; a compreensão histórica põe em jogo todos os paradoxos da historicidade: como é que um ser histórico pode compreender historicamente a história? Por sua vez estes paradoxos reenviam a uma problemática muito mais fundamental: como é que a vida ao exprimir-se pode objetivar-se? E como é que objetivando-se, ela conduz à luz das significações susceptíveis de ser retomadas e compreendidas por um outro ser histórico, que ultrapassa a sua própria situação histórica? Um problema maior que voltaremos a encontrar no fim da nossa pesquisa é o da relação entre a força e o sentido, entre a vida cheia de significação e o espírito capaz de os encadear numa continuidade coerente. Se a vida originariamente não é significante, a compreensão será sempre impossível; mas para que esta compreensão possa ser fixada, não será necessário introduzir na própria vida esta lógica do desenvolvimento imanente que Hegel chamou de 'conceito'? Não será necessário também tornar disponíveis todos os recursos de uma filosofia do espírito no momento em que se faz uma filosofia da vida? Esta é a dificuldade maior que pode justificar que se pesquise pelo lado da fenomenologia a estrutura da recepção, ou segundo nossa imagem inicial, a jovem planta sobre a qual será possível introduzir o enxerto hermenêutico.'(LCI,9).

1.3. Paul Ricoeur e a teoria hermenêutica contemporânea

Uma das preocupações fundamentais de Ricoeur e a elaboração de sua teoria em termos modernos, criticamente e epistemologicamente atuais. Para isso, é necessário destacar a relação privilegiada da hermenêutica com as questões da linguagem. Entre essas questões tem papel especial a polissemia das palavras em contextos diferenciados. Nesse manejo dos contextos, há uma permuta de mensagens entre os interlocutores. 'Produzir um discurso relativamente unívoco com palavras polissêmicas, identificar essa intenção de univocidade na recepção das mensagens, eis o primeiro e o mais elementar trabalho da interpretação'. As teorias de Dilthey, Schleiermacher, a teoria linguística, a fenomenologia de Husserl, a teoria epistemológica, a intologia de Heidegger, a interpretação em Freud, a metodologia hermenêutica de Gadamer a partir da ontologia heideggeriana, são capítulos importantes a considerar na elaboração da hermenêutica ricoeuriana. O enxerto da hermenêutica na fenomenologia mereceeu uma atenção especial de Ricoeur.
Este tema é enfrentado em 'O conflito das interpretações'. Segundo seu autor,há dois caminhos para fundamentar a hermenêutica na fenomenologia. Um caminho curto e um caminho longo. O caminho curto é a de uma 'ontologia da compreensão', à maneira de Heidegger.
Essa ontologia da compreensão, evitando o debate metodológico, se situa, no seu conjunto, no plano de uma ontologia do ser finito, para encontrar aí 'a compreensão', não mais como um modo de conhecimento mas como um modo de ser (LCI, p.1O).[...] A questão 'em que condições um sujeito conhecente pode conhecer um texto ou a história' é substituída pela questão 'o que é um ser cujo ser consiste em compreender?'. O problema hermenêutico torna-se deste modo um território da Analítica deste ser - o 'Dasein'- que existe compreendendo.(ib. 1O).
O caminho longo que eu proponho tem igualmente a ambição de levar à reflexão para o nível de uma ontologia; mas por etapas, seguindo os requisitos sucessivos da semântica e depois da reflexão. A dúvida que eu tenho é a de se é possível fazer uma ontologia direta, sem a intermediação da exigência metodológica e sem o auxílio do circulo da interpretação de que ela é fundamento para a teoria. Mas é o 'desejo'desta ontologia que induz ao objetivo acima proposto e que lhe permite não se envolver seja com uma filosofia linguística à maneira de Wittgenstein seja com uma filosofia reflexiva de tipo neokantiano. Meu problema será precisamente este: o que acontece com uma epistemologia da interpretação nascida de uma reflexão sobre a exegese, sobre o método da história, sobre a psicanálise, sobre a fenomenologia da religião, etrc, quando ela é tocada, animada e, se assim se pode dizer, aspirada por uma ontologia da compreensão.? (LCI, p.1O-11).
Coloquemo-nos portanto em face das exigências desta ontologia da compreensão.
Para bem entender o sentido da revolução do pensamento que ela propõe é necessário transportar-se até ao termo no desenvolvimento que ele tem desde as 'Logische Untersuchungen' de Husserl até ao 'Sein und Zeit'de Heidegger, livre para se perguntar, em seguida, o que na fenomenologia de Husserl aparece como significante em relação a esta revolução de pensamento. O que é preciso coinsiderar em toda esta radicalidade, é o retorno da mesma questão, retorno que, em lugar de uma epistmologia, nos dá uma ontologia da compreensão.

3. OS QUATRO PONTOS DA TEORIA DA INTERPRETAÇÃO DE PAUL RICOEUR

Na tentativa de buscarmos um síntese mais coerente dos pontos de vista da hermenêutica de Paul Ricoeur, ifereceremos agora os quatro pontos fundamentais da teoria de interpretação. Esses quatro pontos são: 1. A lunguagem como discurso. 2. A fala e a escrita. 3. Metáfora e símbolo. 4. Explicação e compreensão.

3.1. A Linguagem como discurso

'Na medida em que a hermenêutica é interpretação orientada para textos e na medida em que os textos são, entre outras coisas, exemplos de linguagem escrita, nenhuma teoria da interpretação é possível sem que se prenda com o problema da escrita'(TI 37). Na escrita há uma separação do significado em relação ao evento. Mas esta separação não cancela a estrutura fundamental do discurso.

3.2. A escrita

A valorização da escrita é a valorização do discurso da exteriozação intencional. O discurso é sempre de e sobre alguma coisa, mesmo quando há a ilusão de ausência da referência, a referência poderá estar cindida mas não abolida. O discurso dá-nos o mundo, entendendo por mundo 'o conjunto de referências desvendadas por todo o tipo de texto, descritivo ou poético que lemos, compreendemos ou amamos'. Compreender um texto é interpolar entre os preducados da nossa situação todas as significações que constituem um 'Welt'a partir da nossa 'Umwelt'(circunstância) TI 49.
No processo da escrita, há dois problemas que necessariamente deveremos analisar: a distanciação e a apropriação.
Ao passar pela mediação da leitura, toda a escrita precisa essencialmente da hermenêutica. Por esse motivo, a leitura torna-se um problema hermenêutico(Teoria da Interpretação=TI 54). 'Surge então -diz Ricoeur - uma nova dialética: a da distanciação e da apropriação'(TI 54. Por apropriação Ricoeur entende a 'autonomia semântica',que separa o texto do seu escritor. 'Apropriar-se'é fazer 'seu'o que é 'alheio' ou tornar 'nosso'o que é 'estranho' para nós, tornar do leitor o que até ali era exclusivamente do autor (TI 54). A tendência de fazermos nosso o que é alheio caracteriza o distanciamento ou distanciação. ': Distanciação' não é apenas o hiato espacio-temporal entre o leitor e o aparecimento de uma obra de arte ou de um discurso. É um traço dialético, o princípio de uma luta que denuncia a existência de uma alteridade de um lado e de uma ipseidade do outro. Nesta luta de distanciação entre a ipseidade ontológica do leitor e a alteridade textual aparece a necessidade de o leitor apelar para a 'compreensão'como forma de superar a alienação cultural que caracteriza os dois termos dialéticos: o texto não é o leitor e o leitor não é o texto. Quando o autor elabora seu texto e o entrega ao público como texto significante e alguém, na qualidade de leitor, resolve empreender uma viagem de leitura, completam-se as duas margens do processo dialético. A leitura passa a ser, segundo palavras de Ricoeur, um 'phármacon'ou um remédio, através do qual um indivíduo, assumindo o papel de leitor tenta vencer o distanciamento e o estranhamento do texto, passando ao ato de domesticação, tornando-o mais caseiro e mais próximo mediante a busca da 'significação'. A proximidade que o leitor busca no texto suprime a 'distância cultural' no momento em que tenta incluir a alteridade na ipseidade, ao mesmo tempo que preserva a alteridade do texto como 'outra realidade'que evidencia o 'ser do outro' para aquém para além dos atos hermenêuticos.
Para Ricoeur, esta problemática dialética da hermenêutica está enraizada na própria inteligência humana, na história do pensamento humano e na situação ontológica do homem como ser-no-mundo (TI55). Ricoeur mostra essa essa problemática dialética analisando alguns fenômenos culturais. O Iluminismo do século XIX, por exemplo, pode suscitar a pergunta: como tornar uma vez mais presente a cultura da antiguidade, não obstante a intervenção da distância cultural. O romantismo alemão: como podemos nós tornar-nos contemporâneos de gênios passados? Como deve alguém, portanto, utilizar as expressões de vida fixadas pela escrita a fim der se transferir para uma vida psíquica estranha?(TI 55)

3.3. Metáfora e símbolo

No capítulo hermenêutico da explicação e compreensão do texto literária entram necessariamente o entendimento da metáfora e do símbolo. Este é exatamente o terceiro capítulo da teoria da interpretação.
Para começar Paul Ricoeur mostra a diferença entre o campo de significação das obras científicas, cuja significação se deve tomar 'literalmente'e o campo das obras de literatura, caracterizadas por 'um excesso de sentido' que é o sentido que está para além da simples dimensão do signo linguístico. A grande questão, entretanto, é se este 'excesso de sentido' é uma parte da significação ou se deve entender-se como um fator externo, não cognitivo e simplesmente emocional [TI 57). Para Ricoeur, a metáfora é a apedra de toque do valor cognitivo das obras literárias. Conseguir 'incorporar o excesso de sentido das metáforas no domínio da semântica'será conseguir dar à teoria de significação verbal a sua maior extensão possível (TO 57). No capítulo da variação de significações, a metáfora parecia na retórica clássica, como uma figura ornamental destinada a tornar o discurso mais belo e agradável, concorrendo para torná-lo mais persuasivo. A metáfora era i,a extensão de sentido mediante o desvio do sentido literal das palavras. A razão do desvio era a semelhança. No classicismo, a metáfora não era destinada a fornecer uma informação nova da realidade. Ela era uma função emotiva do discurso, enquanto causava sensações agradáveis de prazer do discurso (TI 61).
Na teoria de Ricoeur, o âmbito da metáfora não é apenas a palavra, mas a frase: 'A metáfora tem a ver com a semântica da frase'(TI 61). Ela faz sentido numa enunciação, é um fenômeno de predicação, não de denominação. É por isso que, segundo Ricoeur, deveríamios falar de 'enunciação metafórica'e não do uso metafórico de uma palavra. Quando dizemos 'manto de tristeza'ou 'anjo azul'estamos apresentando metáforas. A metáfora é o resultado da tensão entre dois termos numa enunciação metafórica. Seria absurdidade a leitura literal de uma metáfora: o anjo não é azul, se azul é uma cor; a tristeza não é manto se manto é um traje feito de tecido. A interpretação metafórica pressupõe uma interpretação literal que se autodestrói numa contradição significante. É este processo de autodestruição ou de transformação que impõe uma espécie de torção às palavras, uma extensãoi de sentido, graças à qual podemos descortinar um sentido onde uma interpretação liteal seria literalmente absurda.(TI 62). Assim uma metáfora não existe em si mesma, mas numa e por uma interpretação(TI 62). Na enunciação metafórica submetemos as palavras a um trabalho de sentido, ou a 'uma torção metafórica'para usarmos palavras de Beardsley(TI 62).
Fica bem claro, portanto, que nesta perspectiva, não é a nomenclatura das imagens que se analisa quando se fala de metáfora. O que está em jogo numa expressão metafórica é o aparecimento de um parentesco onde a visão ordinária não percepciona qualquer relação (TI 63). Na ret
órica clássica, o tropo era a substituição de uma palavra por outra. Para a hermeêutica da metáfora há uma opisição à concepção puramente retórica da metáfora. Numa metáfora vivas, diz Ricoeur, a tensão entre as palavras ou, mais precisamente entre as duas interppretações, uma literal e outra metafórica, ao nível de toda a frase, extrai uma verdadeira criação de sentido, que a retórica cla ssica não explica TI 63. Entre a teoria da tensão da metáfora e a teoria da substituição (clássica) há uma diferença frontal. Na teoria de Ricoeur, 'emerge uma nova significação, que engloba toda a frase'. 'Neste sentidoi a metáfora é uma criação instantânea, uma inovação semântica que não tem estatuto na linguagem já estabelecida e que apenas existe em função em virtude da atribuição de um predicado inabitual ou inesperado. Por conseguinte, a metáfora assemelha-se mais à resolução de um enigma do que a uma associação simples baseada na semeljança: é constituiífs prls resolução de uma dissonância semântica'TI 63-64). A especificidade deste fen^meno será compreendida na hora em que admitirmos admitirmos a existência de metáforas vivas (metáforas vivas são metáforas de invenção, em cujo interior a resposta à discordância na frase é uma nova extensãoi de sentido'(64). Neste sentido as metáforas de tensão, não têm como ser traduzidas. E também, a metáfora não é um ornamento do discurso (TI 64).

3.4. Explicação e compreensão

O problema da explicação e da compreensão é o problema terminal da leitura. Mas o que é realmente compreender um discurso quando tal discurso é um texto ou uma obra literária?
'Na medida em que o ato de ler mé a contrapartida do ato de escrever, a dialética do evento e da sigmificação, tão essencial à estrutura do discurso, gera uma dialética correlativa na leitura entre a compreensão (o verstehen da tradição hermenêutica alemã) e a explicação ( o 'erklaeren' da mesma tradição).[...] A compreensão é para a leitura o que o evento do discurso é para a enunciação do discurso e a explicação é para a leitura o que a autonomia verbal e textual é para o sentido objetivo do discurso'(TI 83).


João Ferreira
Época de composição: 1994-2000
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Perfil do AutorSeguidores: 73Exibido 9264 vezesFale com o autor