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Ensaios-->A "FLOR DE VIDRO" DE MURILO RUBIÃO -- 14/05/2001 - 12:03 (João Ferreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


“A FLOR DE VIDRO” de Murilo Rubião

Ensaio acadêmico
João Ferreira

A 'Flor de Vidro' é um conto de três páginas, da autoria do escritor mineiro Murilo Rubião. Foi publicado no volume 'Os Dragões e Outros Contos', editado em Belo Horizonte em 1965.
O conto insere-se na tipologia temática e narrativa da escrita fantástica do autor.
Seu núcleo narrativo é montado em torno de um estado traumatizante de consciência do protagonista, cuja ambiguidade dará toda a vida à narrativa.. O título “A flor de vidro” está ligado a um estado traumático, ou talvez melhor, a um estado de terror ou até de visão, que domina e toma conta de Eronides. A chegada de Marialice, os passeios, o amor entre os dois e outros elementos da ação narrativa, são apenas satelizantes. Em seu núcleo principal, o conto apresenta um caráter dramático profundo escondido na psiquê de Eronides. Esse estado dramático aflora por vezes à consciência para problematizar ainda mais o comportamento e as relações humanas de Eronides. Esse conflito da 'Flor de vidro' e do terror que guarda apenas para si como “reminiscência amarga”, assustava a própria namorada Marialice, terminando por estabelecer, entre os dois, uma tensão por falta de uma explicação conveniente. Como consequência nota-se que o amor entre Eronides e Marialice “se nutria da luta e do desespero”. Vários efeitos e detalhes da fabulação se concentram em torno da visão aterrorizada de que Eronides é portador.
Entre os efeitos do conflito central que ajudam a estruturar a ação do conto, podemos enumerar alguns episódios e incidentes que nos trazem profundas interrogações sobre o lastro psíquico e psicanalítico das falas, pensamentos e comportamentos de Eronides: “Da flor de vidro restava somente uma reminiscência amarga”.-“Marialice!” “Foi a velha empregada que gritou e Eronides ficou sem saber se o nome brotara da garganta de Rosária ou do seu pensamento”[...] “Uma realidade inesperada sacudiu-lhe o corpo com violência. Afobado, colocou uma venda negra na vista inutilizada e passou a navalha no resto do cabelo que lhe rodeava a cabeça”[...] “Jogou-se fora da cama e encontrou, no espelho, os cabelos antigos. Brilhavam-lhe os olhos e a venda negra desaparecera”[...] “Os passeios sucediam-se. Mudavam o horário e acabavam na mata. Às vezes pensando ter divisado a flor de vidro no alto de uma árvore, comprimia Marialice nos braços. Ela assustava-se, olhava-o silenciosa, à espera de uma explicação. Contudo ele guardava para si as razões do seu terror”[...] Quando o trem se pôs em movimento, a presença da flor de vidro revelou-se imediatamente. Os seus olhos se turvaram e um apelo rouco desprendeu-se de seus lábios. – “Na volta, um galho seco cegou-lhe a vista”[...].
Se dermos atenção ao contexto revelado nas lexias citadas, poderemos observar que os episódios e incidentes citados dão-nos a medida do estado da psiquê perturbada e aterrorizada de Eronides, perturbação que persiste até em momentos agradáveis da vida.
O discurso narrativo é essencialmente psicanalítico e fantástico e o behaviorismo nele latente balança a análise e a interpretação do mais atento leitor. O elemento central de dinamização narrativa é o medo, a perturbação, o terror, que fica aninhado no seio de algumas metáforas e de alguns símbolos: flor de vidro, venda negra, espelho. Mas há ambiguidades na narrativa e na linguagem, difíceis de superar. Algumas delas estão no episódio que se segue ao relato do apito da locomotiva, que se converte em onomatopéia figurativa do nome de Marialice. Há outras ambiguidades no discurso do narrador quando narra que “foi a velha empregada que gritou e que Eronides ficou sem saber se o nome Marialice brotara da garganta de Rosária ou do seu pensamento... Parece, com efeito, que isto aponta para um fundo psicanalítico real, que é reafirmado no episódio do corte de cabelo com a navalha, suas visões no espelho, suas visões sobre a flor de vidro e as consequentes mutações psíquicas que se seguiram a esses episódios e incidentes. O que é fato é que o terror domina os atos de Eronides e sua psiquê fica incapaz de os controlar e de os perceber em consciência.
Dentro do princípio clássico de que “epílogo do conto corresponde, via de regra, ao clímax da estória” e “que surpreende o leitor por seu caráter imprevisível, poderíamos suspeitar que o terror ou o complexo psíquico desenhado na estória diga respeito a um defeito físico da vista representado pela metáfora “flor de vidro”, defeito que encobriria de Marialice. O epílogo, ao mostrar que “na volta um galho cegou-lhe a vista” aprofunda aparentemente a suspeita. Poderia, na verdade, um defeito físico ter operado uma metamorfose psíquica e gerado uma personalidade com comportamentos paranormais. Mas isso é apenas um ângulo hipotético de análise. Incidentes mais profundos permanecem para ser explicados. Eronides tem na realidade comportamentos anormais ou paranormais a partir do momento em que “uma realidade inesperada lhe sacode o corpo com violência” ou quando pensa “ter divisado a flor de vidro no alto de uma árvore” ou quando “a presença da flor de vidro se revela”[...]
O jogo das ambiguidades é operacionalizado pela narrativa num contraste vivo. No passeio pela mata com Eronides, a namorada Marialice gritou para ele uma praga: “Tomara que um galho lhe fure os olhos, diabo”[...] Quando regressava da estação, um galho cegou a vista de Eronides. Parece uma vingança do destino e o cumprimento da praga. Mas há mais ambiguidades e paranormalidades. Eronides vê no espelho “cabelos antigos”[...] a venda negra desaparecera”[...]
Juntando o inesperado, o surpreendente, o anormal e paranormal e o jogo de forças desconhecidas, o conto pode ter seu percurso analisado também sob o ângulo do fantástico. A dominação psíquica analisada em Eronides pode ser duplamente vista quer como um fenômeno de anormalidade psíquica de um ser humano dominado pelo terror e por uma psiquê doentia, quer como uma variada fenomenologia de relação entre uma psiquê humana e forças sobrenaturais e superiores.
No que tange à estrutura do conto, é oportuno dizer que a narrativa é feita em terceira pessoa e converge para um alvo. A parte imaginária é profunda e deixa o leitor voltado para horizontes ambíguos, ora abertos, ora fechados, mas sempre interrogativos. O ponto central parece ser claro, apesar de tudo: a expressão de um homem aterrorizado, sob dominação. Mas, dominado por quem e por quê?
As pequenas unidades e sequências do conto são apresentadas em linguagem não inteiramente objetiva. O conto tradicional parece desconhecer “alçapões subterrâneos ou passagens com segundas intenções”. Em Flor de vidro, porém, os quadros estão bem estruturados mas a linguagem tem sua ambiguidade. Há diálogos diretos, a maior parte deles, de Marialice, e também indiretos. Vários discursos referentes a Eronides têm essa característica ambígua com inclinação para situações e expressões psicanalíticas e fantásticas.
Se nos voltarmos para a trama, em si mesma, diremos que Murilo Rubião consegue narrar prendendo o interesse do leitor até ao desenlace. Há muitos fio enigmáticos pelo caminho, como já dissemos. . Há um homem com um trauma instalado na cabeça e com saudades de sua namorada Marialice. Uma namorada chegando de trem para passar férias. Há alegria. Amam-se. Passeiam. Passam momentos juntos e Marialice volta a partir de trem, deixando Eronides condenado à solidão. Aparentemente, o conto de Murilo Rubião, tem uma trama normal e linear. Mas analisando bem, a trama não é linear, ela é profunda e labiríntica. Há um personagem, protagonista da estória, que embora ame e tenha saudades e dê passeios, mostra uma psiquê estranha, sendo enigmático em seu comportamento e em sua linguagem.
O narrador-observador narra mas não explicita todo o foco de visão. Ou seja, o foco narrativo ou ponto de vista é problemático, da mesma forma que é problemático o protagonista, o que termina por criar um núcleo dramático também na narrativa.
Toda a tensão dramática fica por conta da enigmática flor de vidro e no dramático epílogo da cegueira de Eronides, que advém após a praga de Marialice.
Brasília, 1985
João Ferreira
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