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Ensaios-->15. POBRE SOFREDOR -- 11/06/2002 - 06:20 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Tenho vinte e cinco anos e mal posso assegurar que vá determinar-me a ficar por aqui qualquer tempo. Não acredito em que os meus males possam ser sanados por simples referência a eles, nem que arrependimento algum possa restabelecer os fatos.

Não é verdade que as coisas se deterioram? Hoje estão novas, mas o tempo faz com que se estraguem. Quando estão sendo bem usadas e cuidadas, mesmo assim se destroem. Imaginem, então, se são desperdiçadas, maltratadas, aí as coisas se desgraçam logo. Como é que será possível acreditar que se restabeleçam?

Eu, um dia, rasguei uma calça novinha. Meus pais me haviam comprado numa loja chique, para o que haviam feito enorme sacrifício. De propósito, peguei a tesoura, às escondidas, e meti a ponta na costura. Aí errei, pois queria despregar uma parte e acabei furando o tecido. Minha mãe descobriu a peraltice e me deu uma surra. A calça ficou perdida, pois nunca mais quis colocar aquele feio remendo e minha mãe ficava chorando, arrependida por ter batido em mim. Nunca mais esse erro foi esquecido.

Como é que vão dizer agora que as coisas se restabelecem?

Não penso que tudo esteja para sempre perdido. No caso da calça, ganhei outra, depois de muito tempo. A que estraguei ficou abandonada no armário, sem utilidade. No caso da surra, aquela não foi a única e outras foram se juntando no armário de minha memória. Mas me lembro de todas elas e nenhuma se apagou.

Será que, se contar todos os casos em que apanhei, só isso irá ser capaz de me fazer esquecer de tudo? Eu duvido.

Estava chegando a hora de me definir a respeito da vida, quando parti para este outro lado. Não tenho intenção alguma em pensar no que me sucedeu, pois não quero fazer passar para o papel o drama maior de minha existência. Tenho esse direito? Ou não?

Pedem-me para dizer o que espero da turma que me socorreu.

Acho que esses cuidados estão muito bons e estou sentindo boas melhoras no estado geral. Faz bastante tempo que vim para cá e não acho que se possa fazer muito por mim. Quando pensava que ia arrepender-me dos males que fiz, logo me apareciam na mão os objetos que utilizei para praticar os malfeitos. No caso da calça, recebia uma tesoura e ficava furando os tecidos que encontrava. Aí aumentava mais o sofrimento.

Era muito triste ficar com o revólver atirando a esmo, ensurdecido pelos estampidos que não acabavam mais, pois não precisava recarregar.

Houve uma época, contudo, que me veio à cabeça dar uns tiros em certa pessoa. Foi a maior alucinação, pois aí não tinha as balas e precisava buscar a munição. Quando encontrava, não sabia onde estava o revólver e, quando achava, não mais sabia onde havia deixado as balas. Fiquei nessa agonia até que desisti de atirar. Aí o revólver se carregou sozinho, mas abandonei a idéia, de modo que ficou inútil. Dei uns tiros para o ar, para informar que poderia atirar quando achasse necessário. Mas nunca mais precisei dele e, se agora me visse na situação de ter de dar uns tiros, já não sei mais onde foi parar.

Parece bobo o que acabo de descrever, mas esta tem sido a história de meu arrependimento. Sempre que penso que posso afastar das recordações alguma coisa, eu digo:

— Hoje vou esquecer disso ou daquilo.

Mas nada acontece do jeito que penso; aí vou correndo buscar no fundo do armário da memória todos os meus casos.

Houve um dia que tive a impressão de estar faltando um. Tinha a certeza de que eram dezoito os processos. Então, a memória começava de novo a contagem. Quando chegava a dezessete, onde estava o outro? Comecei a suspeitar de que estava sendo perdoado, pois a rememoração só chegava a dezessete. Fiquei muito tempo relembrando, relembrando, até a exasperação. Aí me informei de que eram dezessete mesmo. Foi quando o décimo oitavo apareceu inteirinho. Eu não havia esquecido, senão momentaneamente. Parecia que fora castigado, pois justamente a recordação de repente daquele último assassinato me fez atormentar a cabeça com redobrada angústia. Mas não me arrependi. Antes, fiquei furioso em relação ao indivíduo que se constituíra em minha vítima e procurei despejar nele toda a minha ira.

Hoje estou bastante mais calmo. Isso reconheço e parece ter sido muito bom não ficar abespinhando-me à toa. Sei que meus casos são comuns e tenho visto por aí pessoas como eu dando tiros sem motivo algum. Eu mesmo tenho soprado no ouvido dessas pessoas como é que têm de fazer para matar, sem deixar rastro. Aí me divirto com a preocupação dos outros. Há os que choram porque perderam os parentes e eu rio a valer, pois bem que estou vendo o “cara” mesmo ali, muitas vezes se contorcendo em dores, embora não tenha mais corpo nenhum. Há os que atiraram e se viram, de repente, perseguidos e presos. Outro dia, um idiota se deixou pegar pela multidão. Era de ver todo o mundo embrutecido, dando pancadas no sujeito até que veio parar do lado de cá. Pensam que sossegou? Eu mesmo corri atrás dele dando alguns sopapos, para aprender a não cair nas armadilhas que lhe foram preparadas. Esse era um cara tão bobo, que dizia que queria voltar para a Terra para ficar no lugar daquele que havia assassinado, como se fora possível refazer o que havia sido desfeito.

É por isso que não vou aceitar comiseração de ninguém. Se vocês acham que minha maldade tem solução, basta fazer com que fique tranqüilo em algum canto, até que me dê vontade de fazer alguma coisa. Se não estiver bem vigiado, vou “cair na gandaia” e recomeçar tudo de novo, embora agora me sinta bem cansado dessas correrias.

Sem querer, deixei transparecer que foram dezoito os que matei. Mas agora não tem mais importância; vocês já viram que não sou boa gente. É por isso que não acredito em recuperação. Foi na prisão que aprendi as piores coisas.

Sabem que dificilmente vou concordar com vocês em que estou demonstrando saber o que é bom e o que é mau? O que é bom é o que nos dá satisfação; o que nos entristece é o que não presta. Se dou um tiro num sujeito que está cheio de dinheiro, vai ficar triste e isso é mau para ele; mas para mim vai ser bom, porque vou ficar com o dinheiro dele. Se me derem um tiro e levarem o dinheiro, não foi bom para mim, mas o sujeito que fez isso deve ter ficado muito feliz.

Não me arrependo de nada, porque logo vou receber o revólver, a faca ou a tesoura para poder fazer tudo de novo. Aí os crimes se acumulam e não há arrependimento que chegue. Outro dia foi interessante, porque me arrependi de ter provocado uma ânsia de vômito no sujeito que envenenei. Aí me apareceu na mão um vidro de arsênico, mas eu não sabia o que fazer com ele. Pensei que era para eu mesmo consumir, mas foi impossível porque não queria me “matar”. Era estranha essa sensação, porque estava bem morto, há muito tempo. Então, joguei fora o veneno; mas o arrependimento voltava e o vidrinho aparecia de novo na mão. Foi um inferno. Só me livrei do veneno quando consegui fazer um indivíduo vomitar um veneno que lhe haviam dado para morrer. Acabou morrendo mesmo assim, mas não mais vi o tal vidrinho.

Essa foi uma ação que posso dizer que foi boa para mim, pois eu mesmo me vi favorecido com ela, sem ter tentado prejudicar ninguém. Será que está aí o princípio da vontade e da recuperação?

Como é que não pensei nisso antes? Será que pensei e que não queria que fosse assim? Será que tive medo de ter de ajudar as outras pessoas? Será que pensei que iria ter de trabalhar muito pelos outros, para poder ficar sem a preocupação do arrependimento? Mas não sinto a consciência pesada. O que me leva a sofrer, a ter recaídas de dor, é justamente a impotência de superar o estado em que me encontro. Em toda a parte só vejo pessoas atirando, esfaqueando, envenenando, sofrendo, gritando, esperneando, estrebuchando; sangue por toda a parte, raiva, fúria, horror, massacres. Até no trânsito vi pessoas atirando, porque o carro ficou um pouquinho amassado. Até vi gente atirando porque nunca tinha feito isso e achava que, se não atirasse, não saberia a emoção que dá matar alguém. Isso verdadeiramente me eletrizou, me horrorizou.

Vejam que não sou totalmente mau, pois aí tive um pouco de sentimento, pois esse imbecil estava se entregando de graça na mão da malignidade. Ele não teve nenhuma vantagem. Ao contrário, depois que fez isso, a vida se desgraçou de vez. Aí a alegria de ter conseguido assassinar se transformou em feio fantasma a persegui-lo. Eu até que participei da encenação, quando estava dormindo.

Mas não vim aqui para me desnudar diante destes irmãos que parecem tirar a satisfação da existência do bem que possam fazer. Se não for com eles, aposto que vão ficar bem tristes, sem compreender como é que alguém possa passá-los para trás, apesar de ter entendido que há tanta bondade para se fazer.

Vou dizer mais uma coisa: se não fosse os que fazem tanto mal, como é que você iriam fazer para a “recuperação” deles? Acho que, se não houvesse criminosos, vocês perderiam o emprego. Era o que dizia para os carcereiros, só que eles eram piores que os assassinos. Aqueles lá, se não houvesse o crime, eles inventavam.

Mas não estou dizendo isso para ofender ninguém: é que estou fazendo hora, pois não tenho mais nada para fazer. Se conseguisse rasgar o papel que está aí pela frente, rasgava, porque, assim, não precisaria mais ficar escrevendo.

Tinha vinte e cinco anos quando parti da Terra para cá e agora estou com trinta que percorro a erraticidade. Não existe aí uma desproporção? Não parece que eu mesmo não tinha exata idéia do que estava fazendo? Não era caso de prender toda a gente que não soube me educar? Ah!, se minha mãe não me deixasse pegar a tesoura... Eu não rasgava a calça nova e não teria levado aquela surra. Essa foi a primeira.

Pensei que fosse receber na mão uma tesoura, pois acho que acabo de me arrepender. Ao invés disso, algumas lágrimas brotaram-me dos olhos. Será que é o remédio que está chegando? Como é que vocês conseguiram isso?

Não quero mais voltar a pensar nas coisas como antigamente. Haverá alguém que possa me ajudar nisso? Era só pensar em crime e já acontecia alguma coisa. Será que há outras coisas em que possa pensar? Coisas boas que me dêem sossego e prazer?

Evitei pensar em meus pais o tempo todo, pois tenho muito medo de que esteja aí a origem das desditas. Hoje estão bem velhos; já fui visitá-los e quase não os reconheci. A minha mãe ainda chora quando se lembra do dia em que me surrou. Até aquela calça está no armário. Um dia eu a encontrei bastante arrependida e um chinelo apareceu-lhe na mão. Aí começou a bater nela mesma. Pensei que fosse ilusão minha, mas a força das coisas estava bem ali. Era a minha mãe que se dava uma boa surra. Acho que, se pudesse, não me surraria mais. Mas a minha idéia na hora foi de sair correndo, com medo de que pudesse me dar outra surra e tivesse de se arrepender de novo.

Meus amigos, peço para me darem descanso. Acho que os atormentei demais e vejo que a paciência não tem limites. Se me fosse dado continuar escrevendo, iria ter de repetir tudo de novo ou ficaria contando, caso a caso, tudo o que se passou comigo.

Estou impedido de falar do médium, mas não tenho como deixar de me referir a ele, que fica o tempo todo à disposição, como se ele mesmo não existisse, mas fosse só máquina de repetição. É estranho que se disponha a tal serviço, quando se percebe que poderia ir fazer outra coisa. Admiro essa sua participação.

Mas não vou agradecer nada, não. Só vou prometer ficar um pouco mais tranqüilo e que não vou perturbar o ambiente. Como vocês dizem: “graças a Deus!”

Não querem que me vá deste modo e pedem-me para esclarecer por que não quero agradecer. É que acho que o trabalho realizado foi a alegria de todos, pois estou predispondo-me bem melhor. Se agradecer, corro o risco de ser considerado falso, por tanta maldade que demonstrei.

Se é hora de começar a ficar civilizado, se é o início da recuperação, então vou dizer “muito obrigado, irmãozinhos, por tudo que fizeram por mim”. Não sabia o que era ter vergonha e agora não sei onde enfiar a cara. Desculpem-me!


Comentário

O grupo não irá aduzir qualquer comentário, a não ser repetir o agradecimento do irmão sofredor à paciência e integral disposição do escrevente.

Gostaríamos de deixar bem enfatizado que o sistema que adotamos para a imantação é de meio sonambulismo, conforme deixamos assinalado na introdução. Este caso, especificamente, só nos foi possível apresentar em virtude de ter o médium agido de modo inteiramente passivo.

Não importa que não se obtenha texto publicável. O que nos interessa é o trabalho de auxílio que se logra através da atenção que se dá a seres que se consideram sempre muito mal recebidos, pois são vergastados pela “moral” superior dos doutrinadores. Muitos são renitentes, a ponto de resistirem às melhores argumentações, porque não suportam sentir-se tão inferiorizados. Há, entretanto, aqueles que tomam a paciência como subalternidade e desejam submeter os mediadores e doutrinadores à sua vontade. Mas estes vão ficar bem longe desta mesa.

Queremos reiterar os agradecimentos e solicitar que as preces sejam feitas com o máximo de compenetração, para que o serviço de revitalização se faça com real proveito.

Fique, amigo, na mão do Senhor!

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