Usina de Letras
Usina de Letras
135 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62145 )

Cartas ( 21334)

Contos (13260)

Cordel (10447)

Cronicas (22529)

Discursos (3238)

Ensaios - (10339)

Erótico (13566)

Frases (50551)

Humor (20021)

Infantil (5418)

Infanto Juvenil (4750)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140784)

Redação (3301)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1958)

Textos Religiosos/Sermões (6175)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Ensaios-->31. PENITENCIO-ME -- 27/06/2002 - 05:14 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Quando para aqui fui conduzida, não esperava receber tanto influxo de amor e consideração. Sempre me julguei superior aos demais e nunca admiti pertencer ao grupo dos infelizes. Até mesmo nas sombras, em meio a tanto sofrimento e dor, até ali, por entre as imundícies dos criminosos, sentia-me orgulhosamente acima dos demais, pronta para merecer, de um momento para outro, o influxo da benemerência divina.

Desde logo, é preciso que diga, pensei estar sendo injustiçada e, quanto mais demorava o momento desta redenção, mais afirmava, de mim para comigo mesma, que Deus era o protetor dos imbecis e dos bajuladores. Tal disposição moral me conservou por inúmeros anos junto às mais execráveis criaturas do báratro. Pelo menos era assim que via o fato de ter de aturar as inconveniências dos seres que comigo habitavam aquelas tenebrosas regiões.

Às vezes, eram pinçados alguns elementos e eu julgava, erroneamente, que nada tinham feito para produzirem reações de benemerência. E isso ainda mais me enchia de ódio e desesperação. Xingava, abertamente, a providência divina e fazia minha vociferação repercutir pelas escarpas mais elevadas das montanhas, de modo que o eco de minha voz atingisse e comovesse quem estivesse encarregado de conferir os desígnios do Senhor.

Tudo isto parece fabuloso, contado sem as luzes da intelectualidade abalizada dos literatos. Em outros tempos, até me atrevia a burilar o estilo, para aproveitar-me dos recursos que me estão à disposição; hoje, porém, fico feliz só com o fato de poder demonstrar o quão injusta fui para quem tudo me proporcionou.

Sabem como é que consegui ascender até aqui? Pois foi com a simples pronúncia de pequenina prece, dita no fundo da minha alma:

'Senhor, tende piedade de mim!'

No começo, dizia todas as orações conhecidas: o pai-nosso, a ave-maria, as ladainhas que acompanhava na igreja, vários responsórios consagrados a diversos santos, especialmente a Santo Antônio, a quem me consagrei durante a vida. Tudo, porém, era dito sem devoção, como a cumprir simples ritual capaz de atrair a atenção divina sobre mim. Orgulho puro de quem passou a vida a renegar ajuda a quem quer que fosse bater à minha porta.

Pode parecer, pelo espírito de revolta e pelo local a que fui atirada, que perpetrei os maiores crimes. Jamais! Eu até que cuidei com razoável boa vontade de minha família. É bem verdade que não me interessei muito pelo progresso de ninguém, sempre preferindo ficar batendo papo pelas esquinas a realizar as tarefas rotineiras dos trabalhos domésticos. Se podia fugir, fugia, deixando tudo sob o encargo das cunhadas, da sogra ou até das filhas, quando estava velha e “caducava”, de olho em que os meus “transes” terminassem quando tudo estivesse guardado nos devidos lugares.

Jovenzinha, gostava de ler as revistas em que se descreviam as vidas das personagens famosas da época, pessoas endinheiradas que podiam ostentar vantagens e poder. Eu era reles filha de pais pobres, que lograra casar-me com pessoa remediada, mas infeliz, porque me recusei a compartilhar dos serviços, querendo, antes, obter as regalias do bem-estar. Ainda assim, dei à luz a três belas garotas, que foram o amparo de minha velhice.

Naquele tempo, achava que cuidavam de mim para ficarem com as propriedades que, viúva, herdei de meu marido. Hoje, vejo que não tinham nada mais para fazer, pois as três permaneciam solteiras, acusando-me intimamente pela culpa de suas desditas, pois lhes interferi demais nas vidas, prendendo-as junto a mim, no intuito claro de ter quem me desse amparo, no desespero de ter de vir a trabalhar na velhice, o que jamais fizera durante toda a vida.

Realmente, fui mesquinha a esse ponto. Só após doze anos de martírio, contudo, é que percebi a maldade que se insinuara em meu ser. E aqui estou para receber esta bênção de amor e consideração. Prometo melhorar e permito a que me submetam a qualquer teste, para que me possam avaliar direito as intenções.

Pedem-me para contar a respeito do episódio da morte de meu marido. Eis o que mais temia, pois foi crime de sangue que ocorreu. Não puxei o gatilho da arma que lhe levou a vida, mas foi por minha influenciação que meu amante executou o infeliz, planejando imitar latrocínio. Bastou, no entanto, ter realizado o crime, para eu dar com a língua nos dentes, mandando-o para a cadeia. É que havia prometido dar-lhe parte das posses, mas era mentira; o que eu queria era ver tudo passado para o meu nome e das minhas filhas. Com isso, afastava os familiares de meu marido, pois tudo estava em seu nome e no meu, pois nos uníramos com comunhão de bens. Fiz tudo para parecer acidente, mas não deixei de apontar o autor dos disparos, fazendo-o acreditar que sua descoberta havia sido feita pela perícia policial. Fiz ainda mais: prometi ao pobre presidiário que cuidaria bem de tudo para dar-lhe quando saísse da cadeia.

Entrementes, passei nos cobres o que consegui do inventário, inclusive as posses que passariam para as meninas e me mudei de cidade, escondendo-me para sempre do criminoso, que jamais me encontrou.

Eis minha real história, já que, para efeito de atendimento, estou sendo levada a ser completamente sincera. Já muito sofri para deixar de atender aos reclamos da benemerência, só que acho que Deus não faria isso com os filhos pecadores. Esta exposição de minha maldade é, de fato, verdadeiro acinte em relação aos infelizes que comparecem para o ingresso no paraíso.

Estão a me dizer que não haveria necessidade alguma de contar os fatos; bastava demonstrar as intenções. Dizem-me para que reflita sobre o que disse acima, pois pode parecer que esteja sendo forçada a humilhar-me, quando o que se requer é simples compreensão para a necessidade da exemplificação dolorosa, para o alerta às pessoas que estão em vias de procedimento indigno e oneroso em relação à salvação.

Senti o sermão penetrar-me na alma, não tanto pelas palavras mas pelo sentimento que me veio de estar ainda com o velho hábito de acusar os outros pelos males que eu mesma realizei. Se não tivesse agido tão mal em relação às pessoas do meu convívio, por certo não teria passado por nenhuma situação constrangedora. Reconheço que, verdadeiramente, estou a merecer as recriminações e a exposição à execração pública. Se os amigos me tivessem poupado, com certeza eu mesma não me pouparia. É melhor assim.

Não estou dizendo isso da boca para fora para me livrar da vergonha pelo método da falsificação das reações, de molde a induzir ninguém a ter pena de mim, para me afastar logo deste local de torturas. É do que vem a seguir que tenho horror, pois, se relatar todo o mal que pratiquei na vida, aí sim terei a desconsideração de todos, pois me julgo monstro a...

Ainda bem que me fizeram desviar os pensamentos para outra linha de rememorações e considerações. É certo que estive bastante ligada à Igreja Católica, ao final da vida, e que contei tudo o que fiz ao padre, para receber o perdão de Deus. Dizia-me o confessor que deveria deixar de atormentar-me pelas maldades em relação à família de meu marido, que deveria estar bem no paraíso, que minhas filhas iriam herdar finalmente as propriedades, que a minha sogra e as minhas cunhadas estavam bem arranjadas com suas famílias, que eu só precisava rezar algumas preces — e foi aí que decorei os responsórios e demais ladainhas —, que precisava dar esmolas para a construção da igreja e para a manutenção dos sacerdotes, o que fiz, contando as quantias para não exagerar. O que pretendia era comprar o céu, que me foi prometido muitas vezes, até no momento da extrema-unção, quando estava bastante lúcida, com o terço na mão, fingindo agonia que, na realidade, nada tinha de desesperadora, pois as dores tinham desaparecido, mercê da morfina que o médico vinha aplicando há vários meses, porque o câncer me havia comido as vísceras e atacado todo o organismo.

Penso não ter mais nada para expor. Peço só que me perdoem as más palavras e que orem por mim, pois estou muito cansada de carregar tanto peso na consciência. Dizem que Deus só dá a carregar o fardo que o indivíduo é capaz de suportar. Mas exagerei e sobrecarreguei-me de culpas e quase não estou agüentando minha própria insensatez. O escrevente não quis escrever “imundície”, preferindo “insensatez”; mas não me perdôo e ficarei estancada até que veja o termo devidamente registrado.

Como se vê, estou totalmente descontrolada e não percebo, inclusive, exatamente o que se está escrevendo. Peço aos amigos permissão para me retirar, pois acredito ter-me penitenciado pelos males que provoquei.

Adeus, irmãos. Fiquem na paz do Senhor e não se esqueçam desta irmãzinha infeliz!


Comentário

Fizemos questão de trazer alguém extremamente machucado por dentro, pelos atropelos de alma que se tem proporcionado, por ter descoberto que se tratava de ser orgulhoso, pretensioso e despótico.

Está claro que a irmãzinha, em boa parte da vida, esteve navegando em águas tranqüilas, pois obteve inúmeras comodidades. Havemos, no entanto, que reconhecer que, a partir de certo momento, por invigilância, se deixou empolgar pelas facilidades que encontrou em obter prazer fora do convívio conjugal. Com certeza se viu obsidiada por espíritos maldosos, dado que sua guarda permaneceu abaixada. O que nos estranha é o fato de não ter percebido que deu acolhida a essas entidades maldosas, que persistiram acossando-a mesmo depois do desencarne.

Esse é o mistério que deverá desvendar para poder refazer os laços com a existência anterior, pois ainda mantém a lembrança única da derradeira encarnação. Haverá, portanto, de realizar longa caminhada, em função da recuperação da verdade e da recomposição da condição de esclarecimento moral para reavivar as diretrizes existenciais, no sentido de equilibrar-se para novo encarne regenerador, uma vez que este último só trouxe acréscimo de débitos.

Será caso de difícil solução, se não for a irmãzinha ajudada por algum companheiro que lhe dedique amor e consideração, pois o respeito perdeu completamente em relação a todos os que lhe compartilharam a companhia. Iremos avaliar as condições do marido, para verificar se está apto para o socorro íntimo. Mas esta é providência ulterior ao tratamento de urgência de que necessita para sanar os prejuízos maiores que causou ao perispírito.

Estejam os amigos leitores especialmente atentos para os diversos aspectos da malícia feminina que conduziram a assistida em sua vida de equívocos e perdoem-nos o atrevimento das observações.

Fiquemos todos nas mãos de Deus, rogando-lhe misericórdia para todos nós, sofredores.

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui