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Ensaios-->16. 9.o Relato — ONOFRE -- 26/12/2003 - 09:02 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Um dia de cão, assim poderíamos chamar esta dissertação, pois muito sofremos no momento em que percebemos estar do outro lado do túmulo.

Não sei me exprimir melhor, mas creio que era isso mesmo: tinha morrido. Agora não sabia o que fazer. Para todo lado que olhava, não via nada; meu corpo estava dilacerado, em frangalhos, jogado à beira da estrada. O que eu só conseguia fazer era olhar e sentir indefinível dor, zoeira nos ouvidos e quentura de sangue por toda parte. Não conseguia apalpar-me, pois parecia não ter outro tipo de contacto com as mãos a não ser a umidade viscosa de algo profundamente tépido. Eu só pude compreender o que se passara porque me via atirado por sobre os trilhos e não estava mais ali. O meu ângulo de visão era como se fosse de outra pessoa.

De início, não era grande o desespero: eu somente contemplava a mim mesmo. Sentia que havia mais gente por todo lado, mas não conseguia mais do que saber disso por indícios de sombras e sons ocos de batidas de coração. Diante do inesperado da situação, não me lamentava nem procurava socorro algum. Aos poucos, porém, a configuração da solidão foi atormentando-me. Daquele estado extático, passei a sentir profundamente as dores dos cortes e o meu tato começava a revelar profundas aberturas por todas as partes do corpo. Comecei a ficar aterrado, pois estava compreendendo que o corpo ferido que estava apalpando não era o que se esfrangalhara sob as rodas da locomotiva. Esse estava ali, espalhado pelo chão. O corpo que sentia ferido era outro e eu sabia qual era. Sabia que era o envoltório da alma, do espírito. Eu não era tão ignorante dessas coisas.

Como, então, tinha acontecido a tragédia? Como cheguei a tão aterradora situação? Que males cometera para ter o perispírito tão afetado? Eu simplesmente me atirei à frente da composição em alta velocidade e não dei chance para o maquinista sequer esboçar qualquer reação. E por que fiz isso? Até agora não cheguei a compreender exatamente.
Até que vivia bem. Tinha diversas propriedades e família com prole numerosa. Mas me envolvi com um rabo-de-saia, uma “franguinha” nova que me cativou. A partir daí, fui proporcionando a ela todas as regalias com que o homem enamorado gosta de galantear a sua eleita. Eu era cinqüentão. Ela não completara dezoito anos.

Os prazeres do relacionamento foram muitos, mas chegou o momento do infortúnio. Primeiro, minha esposa descobriu tudo, mas eu não fiz questão de deixá-la à própria sorte. Fui perseguido pelos advogados, mas, com lábia, consegui contornar os problemas mais sérios e logrei ficar com quase todas as posses. Foi essa a minha real perdição, pois a garota estava cercada por vários péssimos elementos e começou a fazer exigências e mais exigências. Queria que eu sustentasse toda a sua família. Enfim, para encurtar, descobri que, além de tudo, me enganava. A descoberta em si não me surpreendeu, mas o fato de meus filhos me acusarem me deixou bem abalado. A par disso, comecei a entregar-me à bebida. No começo, eram aperitivos; no fim, grandes doses de uísque, de batidas, de gim, do que servisse para me esquecer do quanto havia perdido, principalmente o respeito dos filhos.

Tive uma filha, que me visitava, às vezes, para me contar as novidades e para me reconfortar. Era o meu arrimo, até que um dia se casou e foi proibida de continuar a me procurar. Até hoje não entendi bem por quê. Diz-me a consciência que o marido temia o assédio de minha namorada.

Pois bem, um dia, cansado de tudo, arrumei um revólver e disparei três tiros na infeliz criatura. Em mim mesmo não tive coragem de atirar. Saí como louco pelas ruas e me joguei diante do trem que passava.

Essa foi a história de minha desdita.

Quando atinei com o drama que havia provocado, começou o real desespero. Gostaria de não relembrar a tormentosa estadia no mundo das trevas. Foram quinze amargurados anos do mais profundo horror. Coisas inimagináveis me aconteciam a cada momento. Realmente, sofro só em recapitular os lances trágicos que me surpreendiam a cada passo, a cada idéia, a cada sentimento. Devo esclarecer que a muito custo estou relatando esta fase de minha existência, por insistência dos amigos que me estão dando sustentação. Querem eles, evidentemente, prevenir possíveis leitores do pavor que os espera em caso de repetirem o meu insano gesto.

O que mais me impressionou durante esse amargo entrecho foi o fato de que meus clamores a Deus eram sempre respondidos com gargalhadas e grandes risos de mofa, com apupos e assobios ensurdecedores. Quando pensava que iria encontrar reconforto, mais cresciam as dores. Imaginei-me no inferno e as chamas crestaram-me todo. Quis refugiar-me no frescor do frio e encontrei-me preso nas neves geladas, transformadas em vaso de gelo, no qual me sentia encerrado. O sofrimento atroz reproduzia-se incessantemente na sensação de estar a receber três balázios e a me despedaçar sob as rodas do trem. E a constância dessa sensação era alucinante. Quando tentava refugiar-me na loucura, o espírito parecia aclarar-se totalmente, como nunca antes, e me via nitidamente, translucidamente, por meio de consciência imaculada e pura, com o cérebro desperto e absolutamente vigoroso. Aí tentava fugir de mim mesmo, correndo pelas trevas, para que o sofrimento físico pudesse fazer com que me livrasse dos tormentos morais. E o ciclo recomeçava e recomeçava, infernal, sufocante, indescritível.

Hoje penso que quinze anos foram tempo demasiado curto para o sofrimento que causei às demais pessoas, mas durante todo o transcurso no Umbral, a exata configuração mental era de que não existia tempo e que tudo permaneceria inalterável eternamente. Quero esclarecer que o termo “eternamente” acrescento agora para dar idéia do que comigo se passava. No instante da aflição, não havia noção alguma de que a misericórdia divina pudesse atingir-me por meio da cessação dos efeitos de meu criminoso procedimento.

Foi minha filha que conseguiu para mim o primeiro alívio. Esse, sim, foi dia inolvidável e absolutamente demarcado em minhas recordações. Lembro-me como se estivesse a ocorrer agora: após mais um brado de vociferação em que clamava a Deus que me perdoasse, ao mesmo tempo que exibia os molambos em que se transformara o corpo etéreo, de chofre se iluminou uma criatura ao meu lado. Pensei que fosse alguma ilusão e me encolhi mais ainda no fundo da caverna, mas o ser se aproximou de mim, tomou-me pela mão e disse (maravilhosa melodia):

— Vem, que tua filha te manda chamar.

As primeiras lágrimas rolaram-me pela face. Eu, que não conseguia dar qualquer passo sem que fosse preciso recompor minhas vísceras para dentro, segurando firmemente a pele para que não escapassem, ergui-me retemperado e forte, pronto para a caminhada. Ao apalpar-me, descobri que as fendas maiores estavam fechadas e que grossas cicatrizes cruzavam-se em todas as direções. Mas isso era já a felicidade.

Com fortes dores mas com esperançosa alegria, vim atrás da luminosa figura e pude chegar à luz do dia, com a alma transbordante de fé em que estavam terminados os dias de terror.

Eis-me em condições de relatar as minhas desventuras. Muito teria a acrescentar a respeito da restauração em hospitais especializados e dos longos períodos de treinamento evangélico.

Hoje vim por iniciativa própria, na esperança de que pudesse filiar-me como auxiliar no esquema socorrista deste grupo. Aqui encontrei o amigo que foi buscar-me nas trevas e a seu conselho acedi na manifestação que ora se encerra.

Espero que o exemplo sirva para ilustrar as palavras de advertência que certamente os humanos têm recebido desta turma abençoada, tão abnegada nas lides do socorrismo fraterno. Espero em Deus que eu mesmo possa um dia servir ao próximo, ocupando algum lugar neste grupo.

Deus nos abençoe a todos e faça descer sobre a humanidade as luzes da compreensão da peregrinação que todos devemos empreender em harmonia com suas leis, sob os auspícios dos ensinos de Jesus. Que cada pequenino leitor consiga espelhar-se no exemplo da cruz para não falsear a verdade profunda da vida, conseguindo atingir a pureza de alma capaz de propiciar-lhe volta tranqüila e em paz ao regaço do Senhor!

Fiquem com Deus e boa sorte!



Comentário

O relato de nosso Onofre fala por si mesmo. Pouco teríamos a acrescentar ao quadro de horrores em que se transformou o seu pós-túmulo. Certamente, a história de sua vida, configurada cada uma de suas ações e conseqüentes reações, daria para preencher todo um livro. Se acrescida de observações e comentários, o compêndio transformar-se-ia em coleção. Vamos, por isso, deixar que o caro leitor fique com a impressão da dor, do desespero e da desarmonia que o suicídio provoca, ainda mais quando acrescido de homicídio e demais desatinos.

O que gostaríamos de enfatizar é o fato de o amigo ter pertencido à chamada classe média, ter tido propriedades, família e alguma cultura. Não era delinqüente comum, criminoso vulgar. Até o momento do desvario amoroso, conseguira arrebanhar em torno de si muitas pessoas de boa postura moral, como a esposa, filhos e vários amigos.

Estranha o fato da perturbação? Então, é preciso volver os olhos mais além, para pregressa encarnação, para débitos anteriores, para compromissos não saldados, para crises antigas.

Havia plano redentor para a derradeira passagem pela Terra; isto é evidente. Mas o bom amigo não soube comportar-se diante da prova a que se expunha. Interessante relatar que tal conjuntura foi montada pelos parceiros, com total anuência do interessado, mas, na hora em que mais precisava demonstrar segurança, falhou. Por que teria sucumbido? Porque sua vida elegeu por norma de conduta valores puramente materiais.

Tivera ensejo de conhecer as doutrinas evangélicas; passara por diversas religiões por força das contingências do destino (mãe católica; esposa protestante), mas não viu nessas congregações mais do que meios para conseguir estabilidade social e familiar. Nunca buscou adentrar a religiosidade pelo lado místico, teológico. Encontrou até amigo espírita com quem debatia temas em acaloradas discussões; mas falava sem convicção, apenas para ir levando o tempo em agradável tertúlia, sob os efeitos dos eflúvios alcoólicos. Foi como teve notícia do corpo espiritual e de diversas teorias, sem, contudo, se deixar levar por qualquer sentimento de adesão.

Isso foi o que fez despertar-lhe a consciência para a extensão dos crimes que perpetrou. Se não fosse essa pequena luzinha, talvez ainda estivesse estirado ao lado de um suposto cadáver. Não teria sido tão intenso o sofrimento, mas, com certeza, a recuperação teria sido muito mais demorada.

Quanto à participação da filha em sua reconstituição perispiritual, foi decisiva. A pobre criatura sofreu deveras com o trespasse do pai e buscou lenitivo na crença espírita, na expectativa de tomar conhecimento de seu estado e dos meios de livrá-lo dos tormentos. A par disso, sofreu a desdita de ter lar infeliz, o que mais lhe acentuou o interesse pela doutrina. A partir desse ponto, não foi difícil configurar a exata situação do pai, de molde a programar rigoroso projeto de auxílio. Foi assim que logrou a felicidade de conseguir a almejada intercessão.

Hoje seu lar está refeito e engalanado para receber mais uma alma para convivência e educação. Não é o espírito do amigo Onofre, que muito terá de esperar para que se lhe possa ser ofertada outra oportunidade. Trata-se da figura daquela que foi sua amante e que passaria a ser hoje sua bisneta. Sua filha vai ser avó, na esperança de recebê-lo como neto, pois sua imaginação espírita é fértil. Não desconfia dos misteriosos laços que o destino proporciona. Tanto melhor para a entidade que irá ser recebida com muito amor e carinho.

Eis como se conta essa história de trágico início e de alvissareiro desfecho. Como nas novelas, resta-nos perguntar:

— Como reagirá o espírito da esposa de nosso companheiro quando souber da integração na família daquele ser que lhe trouxe tanto tormento? Que assistência prestará o nosso confrade à pequenina, em sua nova vestimenta carnal? Que intuição de amor poderá ser insuflada na mente da progenitora, para encaminhar a filha nas sendas das virtudes evangélicas? Que papel terá o anjo tutelar encarregado de vigiar os passos desta família?

São capítulos desta história ainda por escrever. É a vida que dá curso ao entendimento para a vitória final do amor, em busca do infinito...

Augusto (pela equipe).

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