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Ensaios-->20. 12.o Relato — LIGAÇÕES DE AMOR -- 30/12/2003 - 07:40 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Desde ontem, persegue-me a visão de certa cozinha, de certa faca larga e cortante, com afiada ponta perigosa. Não sei por que me vem à mente essa idéia de apanhar a faca para perpetrar algum ato violento, como o de enterrá-la fundo no flanco de alguém. Se pudesse entender o que significa essa sensação desagradável, talvez percebesse algo que se tenha passado em algum encarne de terror e malícia.

E ali fico eu, faca na mão, a cismar absorto, tendo ao derredor tosca mesa e cadeiras, pratos grossos de cerâmica branca, canecas de lata, amassadas e escuras. E eu ali, em meio daqueles apetrechos todos bem arrumados, vetusto fogão apagado, lenhas empilhadas no canto, panelas dependuradas em grossas cordas descaídas dos caibros elevados e fuliginosos. E eu ali, desvairado, diante de inúmeras peças de metal e de madeira, pás, colheres, pinças, escumadeiras e grandes conchas, em destaque grosso facão e poderoso machado. E eu ali, faca apertada na mão, a gotejar lágrimas e a escorrer sangue.

No chão, linho alvo manchado em vermelho, mão largada semicerrada, rosto convulso de mulher jovem, olhar perdido na distância, cabelos presos em touca desalinhada. Os pés, calçados de sandálias fechadas, estremecem em pequenas convulsões, atos reflexos talvez da dor maior da ferida aberta ao peito.

Eis que, de súbito, a visão se mostra clara e insofismável. Eu matara alguém. E não se trata agora de disfarçar o crime, senão de burilar a fantasia. E essa visão fatídica, aperfeiçoada por anos a fio de imaginoso aparato criativo, vai tornando-se cada vez mais nítida. E o pensamento, ativado por processo de defesa compreensível, vai cedendo lugar à emoção de se saber inferior na escala humana, pois, ferida de morte a criatura amada, não restava sequer a sombra da orgulhosa criatura que eu fora.

E aquela faca na mão e aquela cozinha luzidia e limpa e aquela jovem agonizante e, em seguida, morta, agonizante e morta...

E as lágrimas quentes começaram a jorrar um dia e caíam da face e escorriam pelo chão e se mesclavam ao sangue sempre vivo e o tornava cada vez mais rosa, cada vez mais líqüido.

Não sei quanto tempo permaneci ali, faca na mão, a revirar o ódio e a sufocar a dor, a me mirar no amor que aprendera e a refletir na dor que provocara. E o sofrimento me atenazava a alma.

Um dia, apertei com força o cabo da faca e feri-me em espinho de rosa. Ergui o braço para entender o significado daquela nova prova e vi que a faca se transformara em rosa de suave perfume. Não havia mais sangue em minha mão, não havia mais jovem caída, não havia mais água rosada. Só as lágrimas persistiam em rolar e rolar, agora aliviadas do pesar e do sofrimento, edulcoradas de amor e esperança.

As peças da cozinha persistiam intactas. A vetustez tinha cedido lugar a algo mais atual, mais próximo do que hoje concebemos: móveis de laqueados artificiais, fogão elétrico e modernos utensílios mecanizados. Ao derredor, a paisagem modificara-se e eu, faca na mão, apoiada em tábua desgastada pelo uso, só fatiava algumas batatas, na voz, modinha da época a exaltar as virtudes do bom amante. Lá fora, vozerio alegre de crianças. Aqui dentro, a voz tranqüila de homem maduro a comentar os fatos do dia. Eis que me transfigurara e o meu momento de vitória estava por chegar.

Lembro-me de vozes aflitas ao redor, pedidos de socorro, odor acre de vinagre e algumas doces lágrimas sobre a face. O coração, finalmente, se cansara de bater; coração afetado por congênita moléstia, coração fadado a sustar seu trabalho exatamente naquela circunstância.

Quando despertei para a outra vida, tinha a consciência tranqüila. Parecia-me ter descarregado fardo pesado que carregava há largo tempo. Estava, enfim, livre dos compromissos comigo mesma, mas definitivamente presa àquelas criaturas com quem me ligara tão profundamente por intensos laços de amor e de gratidão.

Tal tinha sido minha prova: proporcionar aos queridos amigos a possibilidade de reencontro com a criatura de cuja companhia os havia alijado na encarnação anterior. Mas a pena iria prosseguir mais além, pois estava indissoluvelmente atada à destinação cármica de todos, necessitando, por obrigação e por espontânea vontade, acompanhá-los durante todo o trajeto de suas vidas, esforçando-me por torná-los merecedores da divina graça da obtenção do progresso possível em suas encarnações.

E é isto mesmo que tenho feito nestes últimos anos. Verdade é que tenho obtido ajuda destes amigos que me acompanham “pari passu” em todas as tarefas, principalmente nos momentos de desalento e de aflição, quando venho solícita recorrer à sua bondade e devotamento.

Meus parentes não são más criaturas, mas suas imperfeições não são visíveis, a não ser por aqueles que têm a possibilidade de privar com a luz dos espíritos guardiães encarregados de fornecer o anteparo das verdades evangélicas que estão sendo maculadas por suas atitudes. E esse desespero contido, na ânsia de executar o melhor serviço, é que se constitui agora na minha prova mais pungente.

Como gostaria de sacudir cada um deles e dizer-lhe:

— Não faça mais isso; não sobrecarregue seu espírito de preocupações e de insanidades. Pare de fumar, de beber. Leia os bons autores espíritas. Ilumine-se com a luz do evangelho. Coloque Jesus no coração. Pense na vida de modo mais coerente com as verdades eternas. Não fuja de seu destino de amor, de justiça, de caridade. Olhe pelo seu irmão sofrido. Não caia em tentações. Evite as tendências maldosamente sutis de sua consciência abafada pelos valores sociais e materiais. Abstenha-se de concordar perenemente com o erro. Instale-se no alto trono das virtudes e paute a vida pela régia atitude de quem lhe conhece o verdadeiro sentido. Arme-se da coragem que as atitudes mais corretas lhe prodigalizarão e enfrente as adversidades. Aceite a dor como benefício e a morte como libertação. Não creia tudo poder mas, humildemente, atenha-se a meditar a respeito de si mesmo, para poder aperfeiçoar o modo de sentir e de pensar. Ligue-se a Deus, por meio do sacrifício pessoal do Cristo, e faça de tudo para merecer o influxo de luz e de bênçãos que dos céus descaem sobre todos nós. Ore pelo restabelecimento de sua projeção espiritual neste árduo pelejar de hoje e agradeça a Deus o benefício desta oportunidade de reconquista dos valores perdidos e de acrescentamentos de méritos para a definitiva ascensão aos páramos do Senhor.

Era assim que gostaria de exortar cada um de meus amigos e, se hoje estou aqui a executar esta tarefa, que me parece muito acima de minha capacitação, é porque nutro a esperança de que alguém, ao ler estas palavras, possa reconhecer em mim espírito socorrista de intenções puras e possa acatar de coração a pregação que fiz, espelhando-se no meu exemplo de vida, auxiliando-se a ultrapassar os limites de sua própria incompreensão. Resta, finalmente, a esperança de que um de meus assistidos possa vislumbrar na figura que descrevi aquela mesma criatura que partiu tão inesperadamente do seu convívio e que retorna em espírito para tentar indicar o caminho da salvação.

Romeu—Ernestina (membro da “Equipe da Luz”, designado para este ato de profundo amor e de humilde reverência ao Senhor).

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