Diário de um pseudônimo (017) (2004/05/16)
Penfield Espinosa
16/05/2004
Hoje uma experiência cotidiana me fez pensar em algo místico da Bíblia -- dos Evangelhos, para ser preciso.
Por mais que pareça blasfemo, eu não tenho a intenção de sê-lo. Fica o leitor avisado.
A passagem bíblica é uma na qual Jesus Cristo, deslocando-se no meio de uma multidão, sente o toque de uma pessoa. Na verdade, uma mulher aparentemente hemofílica, toca as roupas de Jesus Cristo e é curada.
Jesus Cristo reclama então que alguém o tocou, e retirou dele uma graça. Os apóstolos, tão pé-no-chão como Sancho Pança, ficam incrédulos: como, no meio desse aperto, nessa multidão, você pode sentir o toque de alguém?
Jesus insiste e a mulher acaba se revelando. Jesus diz então o clássico: vai, filha, tua fé te salvou.
Este trecho mostra a diferença entre toques. Apesar de várias pessoas estarem tocando nele e em suas roupas, Jesus Cristo é capaz de perceber um toque de uma pessoa com mais fé.
Muito mais modesta e moderadamente, posso citar o episódio que ocorreu comigo ontem.
Um amigo vai casar na igreja e me convidou para ser padrinho. Uma das madrinhas é minha amiga há algum tempo e decidimos parecer um casal sobre o altar ao lado dos noivos. Para isso -- ela é atenta a elegância, etiqueta, moda -- vamos nos apresentar em roupas que combinem.
Ela já tem seu vestido social elegante, mas eu não tenho o terno que combine com ele.
Para comprá-lo, pedi a ajuda dela, que então chamou seu pai e sua mãe, mais experientes em moda tradicional para casamentos.
Cheguei ao shopping e à loja onde iria comprar o terno no horário combinado, mas eles não -- depois dizem que os baianos se atrasam etc.
Para ganhar tempo, deixei avisado no caixa que estaria provando roupas, e fui provar vários ternos que a vendedora me ajudou a pré-selecionar. A vendedora, gentil mas distante, levou esses ternos para o vestiário e depois de cada prova dizia algo protocolar: ficou bonito, caiu bem, esse ficou melhor do que o anterior...
Para que o terno ficasse melhor vestido, ela me aplicava toques absolutamente frios -- eu me sentia como um objeto, um manequim sob as mãos objetais da vendedora.
Alguns minutos depois, chegaram minha amiga e seus pais. Foram até o vestiário me procurar e fizeram vários gracejos amistosos.
Neste ponto, a experiência quase blasfema: parecia que o toque da vendeuse sobre as roupas tinha se alterado: em vez do toque frio, ausente, objetal, sentia um outro toque, muito mais afetuoso, amistoso.
Sendo ela bonita e eu imodesto, cri ver algo de sensual e erógeno no toque dela.
No entanto, não houve nenhuma variação objetiva: nem ela passou as mãos em partes onde não houvesse passado antes, nem seu toque foi mais forte ou prolongado.
Mistérios do toque, da troca de energia e da sensibilidade imaginosa.
S. Paulo, 16 de maio de 2004
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