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Ensaios-->DOM CASMURRO - UMA NARRATIVA EXEMPLAR -- 03/02/2007 - 11:14 (João Ferreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
DOM CASMURRO - UMA NARRATIVA EXEMPLAR
João Ferreira
13 de dezembro de 2005

Considerado como a obra-prima de Machado de Assis e uma das maiores obras de ficção em língua portuguesa, o romance Dom Casmurro foi publicado pela Editora Garnier em 1899, em Paris. Sua divulgação no Brasil, porém, só se deu em 1900.
A NARRATIVA E O LEITOR
Chama a atenção nesta obra a forma cuidadosa como o narrador se relaciona com o leitor. Pela freqüência e variedade de modos com que o faz, leva-nos a lembrar que antes da universalização da teoria da recepção que modernamente defende a participação do leitor na decodificação da obra literária, Machado de Assis já nos dava um exemplar diálogo do narrador com o leitor soando isto, em certa medida, como uma comparticipação e concriatividade estética da obra. Dá a impressão que o leitor é declaradamente um amigo, um companheiro, um assistente da narração. Há vezes em que o narrador deseja que o leitor se associe a seus amores, a suas emoções e pensamentos. E em seu diálogo explícito, estranha se, hipoteticamente, quando o leitor não entende o nível de experiência que o narrador está passando para ele ou quando não se coloca no nível de compreensão dos fatos. Isso acontece por exemplo, na hora em que Bentinho, ainda adolescente, penteia e alisa os cabelos de Capitu. Quando ocorrem tais situações, o narrador é severo e usa expressões fortes como se censurasse a alienação ou a incompreensão. “Desgraçado leitor” é por exemplo a fórmula utilizada pelo narrador para interpelar o que não está à altura de entender a sensação de prazer que Bentinho diz experimentar ao pentear repetidamente os cabelos de Capitu. Um prazer que desejaria se repetisse por todos os séculos dos séculos. Por outro lado, registra-se sabedoria na forma de dialogar com a “castíssima leitora” quando a matéria da narrativa é de natureza torpe ou choca com a honestidade da linguagem social. Normalmente, Machado dirige-se ao interlocutor como “leitor amigo”, ou simplesmente como “leitor”. Isso equivale a dizer que ele vê o leitor como parceiro necessário ao seu diálogo e como ouvinte de seu discurso. Ou também que o considera como pessoa que por ser familiar e paciente se tornou amiga. Mas ao decidir contar sua história, Bentinho, já cinquentão solitário, quer sobretudo reviver, tentando atar as duas pontas da vida e “restaurar na velhice a adolescência”. Bentinho admite a natural hipótese de ter “leitores precoces” ou seja, jovens. Na variedade dos leitores, sempre haverá a hipótese de aparecer um “leitor obtuso” , ou seja um leitor que mostra pouca facilidade em compreender as coisas, e que obriga o narrador a expor com detalhes a matéria narrativa. Na escala de tipos de leitores pressupostos por Machado, há também o “leitor das minhas entranhas” que iremos encontrar num trecho narrativo de profunda densidade psicológica e narrativa. E, finalmente, a “dona leitora” chamada a dialogar sobre problemas que envolvem a natureza feminina. Tratando-se de um texto do arguto e omnímodo Machado de Assis, não é tudo ainda. Além do “leitor amigo” e das demais categorias interlocutoras, Machado busca mais especificamente a “alma do leitor’, quando apela para a necessidade profunda de incutir conceitos importantes na alma do leitor.
ROMANCE AUTOBIOGRÁFICO
Há leitores e críticos que acreditam que pelo fato de Dom Casmurro ser uma obra escrita em primeira pessoa, a narrativa é, por isso mesmo, subjetiva, não deixando margem para o teste da objetividade.Isto, particularmente, quando a intenção de Bentinho é escrever sobre os próprios amores ou sobre seu desencanto dramático com Capitu. O que há a observar é que em qualquer sentido que seja feita a objeção ela é destituída de fundamentos críticos. Em primeiro lugar, porque é uma avaliação superficial do romance autobiográfico. Segundo, porque o romance autobiográfico está representado por algumas das maiores obras de ficção em todas as literaturas do mundo e nem por isso deixa de valer como obra literária representativa. Além de Dom Casmurro de Machado de Assis, temos, na literatura brasileira, o S. Bernardo de Graciliano Ramos, entre muitos outros, e, na literatura Portuguesa, A Selva de Ferreira de Castro, a Manhã Submersa e a Aparição de Vergílio Ferreira. O que caracteriza o romance autobiográfico é a utilização de testemunhos e vivências pessoais dos próprios autores ou narradores. É fundamental porém que não se confunda romance autobiográfico situado no espaço da ficcionalidade com a biografia situada na área da história. É justo lembrar que ninguém garante que um romance de fatos narrado em terceira pessoa seja, por si só, um fator de verdade e de objetividade, ou que literariamente tenha vantagem sobre o romance autobiográfico. O que nunca podemos esquecer é que o romance é fundamentalmente uma textualidade ficcional, seja ele em primeira ou em terceira pessoa. Enquanto romance é simplesmente matéria de ficção. À ficção cabe criar e inventar situações. Sendo assim, é seu ofício recompor,decorar e cobrir, através de um bem urdido artesanato verba, situações da vida real, tornando-as verossímeis ou possíveis. Isto tem de ficar claro para o leitor de ficção. Quem lê Dom Casmurro, por mais entusiasmado que fique com a história, tem de ter isto em mente. Está lendo ficção. E a ficção tem suas regras, seus espaços, sua noção de estratégia e de verdade. A verdade de um romance está contida, primeiramente, nos pressupostos do estatuto romanesco e, em segundo lugar, na dinâmica ficcional que lhe deu o autor. Dentro desta verdade está a chamada intencionalidade estética que é fundamentalmente o projeto da escrita elaborado pelo autor. No âmbito da verdade literária situa-se todo o jogo ficcional, que se torna mais profundo quando o autor é da estatura de Machado de Assis. A organização do discurso ficcional é a base que o leitor tem à disposição para sua leitura. Assim, é bem natural que o narrador monte seu discurso com a liberdade que lhe dá a imaginação criadora, incluindo o lado da ambigüidade explorado pelos autores com o intuito de tornar o texto mais fantasioso, mais amplo, mais rico e mais apto para balançar o senso de análise, a percepção, a intuição, a memória e a fantasia do leitor. Na ambigüidade do discurso latejam vários lados da realidade. A ficção desenha poliedros infinitos. Assim, pode acontecer que, ao lado da construção do perfil de um personagem, fiquem arestas que a leitura analítica e hermenêutica irão discutir depois. Bentinho se esforça por narrar e mostrar, por exemplo, vários indícios que colocam Capitu ambiguamente em contato com Escobar. Parecem suficientes, em sua simples enunciação, para o leitor desconfiar e pensar que o filho Ezequiel não é filho de Bentinho. Mas, ao mesmo tempo, há momentos em que se dá margem à possível falência subjetiva. Ou seja, há alusões textuais em que se pode levantar a hipótese de que Bentinho estava apenas narrando movido pelas forças do ciúme. Mesmo que os dois lados balancem a mobilidade do discurso ficcional, o leitor mais preparado para trabalhar com a técnica da leitura do texto, tende a ficar de preferência com os indícios como indicação de rumo hermenêutico, mas nem por isso deixará de entender aqueles leitores que se inclinam sumariamente a pensar que a suspeita sobre Capitu é emocionalmente construída em cima de ciúmes, pelo muito que Bentinho lhe queria. Por outro lado, há pessoas que não distinguem entre a metodologia de leitura de um romance e a de uma biografia histórica. A confusão se dá quando pensam que estão diante de uma história real ou de uma biografia cuja característica é a fidelidade às fontes históricas. E por isso cobram a coerência histórica como se de história real se tratasse. Não é o caso de Dom Casmurro. Ao lê-lo, o leitor tem diante de si um romance. Para entendê-lo e avaliá-lo literariamente, terá de o considerar como obra ficcional.
CONTEXTO SOCIAL, CULTURAL E POLÍTICO
A leitura de Dom Casmurro, entre outras coisas, permite-nos uma idéia do que seria o Brasil urbano e a cidade do Rio de Janeiro nos fins do século XIX, no tempo da escrita, bem no fim da década de 90 e no tempo da história, que vai de 1857 a 1872. Os pontos mais em destaque são a organização familiar, o comércio informal, a escravatura, a relação social entre classes, o amor, as relações entre casais, o casamento, a medicina popular, os transportes.
Sobre a organização familiar a casa da viúva D. Glória pode ser tomada como exemplo. Além de D. Glória e do filho Bentinho, moravam aí o Padre Cosme, a Prima Justina, e o agregado José Dias, além de vários escravos. O agregado é uma figura que aparece no contexto da sociedade brasileira do século XIX. Trata-se de um homem pobre e livre que vive sob a dependência do dono da casa, prestando seus serviços como contrapartida, que variavam de acordo com o tipo de pessoa.Além do agregado verificamos que havia também os pajens, uma espécie de acompanhante de segurança que acompanhava as pessoas na rua.
A Medicina tem referências especiais. O narrador fala de andaço de febres, de alopatia, de alopatas, de homeopatia e de médicos homeopatas. Na pessoa de José Dias, a homeopatia recebe um elogio de glória. Quando Bentinho diz que poderia estudar medicina mesmo no Brasil, José Dias atalhou:”Não duvidaria aprovar a idéia se na Escola de Medicina não se ensinasse exclusivamente, a podridão alopata. A alopatia é o erro dos séculos e vai morrer; é o assassinato, é a ilusão”. Há outras passagens: “Mandei chamar um médico homeopata”. –“Não Bentinho, disse ele; basta um alopata; em todas as escolas se morre. Demais, foram idéias da mocidade, que o tempo levou; converto-me à fé de meus pais. A alopatia é o catolicismo da medicina” .
A instrumentação cultural que mostra Machado de Assis neste romance é elevada. Diríamos que ele tem uma informação ampla dos principais temas que a cultura de seu tempo exigia. Fala de capitalismo; fala da guerra da Criméia disputada entre Rússia e Turquia; cita Montaigne, pensador francês autor de “Essais” [Ensaios], internacionalmente conhecidos; cita João de Barros historiador da Língua e autor de uma Gramática Portuguesa, no século XVI; fala do cendal de Camões, um véu referido pelo épico nos Lusíadas, canto II, 37; refere a boceta ou caixa de Pandora, um mito clássico grego, onde se conta que Zeus enviou Pandora como presente a Epimeteu cujo nome significa 'aquele que pensa depois' ou 'o que reflete tardiamente'. Apesar de avisado por Prometeu para não aceitar nenhum presente dos deuses, Epimeteu, encantado com Pandora, desconsidera as recomendações do irmão. Pandora chega trazendo em suas mãos um grande vaso (pithos = jarro) fechado, que trouxera do Olimpo, como presente de casamento, ao marido. Pandora abre-o diante dele e de dentro, como nuvens negras, escapam todas as maldições e pragas que assolam o planeta. Desgraças que até hoje atormentam a humanidade. Pandora ainda tenta fechar a ânfora divina, mas era tarde demais: ela estava vazia, com uma exceção: ainda tinha dentro a 'esperança', que permaneceu presa junto à borda da caixa. A esperança ficara como única forma de o homem não sucumbir às dores e aos sofrimentos da vida. Assim, essa narração mítica explica a origem do males, trazidos com a perspicácia e a astúcia “daquela que possui todos os dons”. Machado de Assis fala da patrícia romana Lucrécia, violada pelo filho do rei Tarquínio e que se suicidou para lavar a afronta ; fala de filósofos, de direitos autorais, de satanistas, de metafísica. Fala de música, de calundus, de óperas, e de comprimários. Fala da ópera Otelo de Giuseppe Verdi, apresentada no Brasil. Enaltece o compositor e a obra e joga-o na dinamização da ação narrativa dos amores de Bentinho e Capitu. Apalpa a grandeza dramática de uma história que Shakespeare consegue converter em drama de grandeza universal, ao destacar o poder destrutivo do ciúme. Fala da cavatina em uso nas grandes rodas sociais! Fala de Tácito e das éguas iberas que concebiam pelo vento. Fala da moda, da saia-balão, de babados. Fala de petrechos de costura, de penteados, de bandós, de xales, de libré, de camisola escura, de chinelas e de chapéu ( “peguei do chapéu e saí”). Toda essa cultura como instrumentação cultural para pintar costumes, caracterizar personagens. Só para caracterizar o seminarista Bentinho, Machado foi saber de tudo o que havia sobre seminário e sobre padres, sobre vocação, sobre dignidades eclesiásticas, sobre protonotário, sobre cúria, sobre cônegos, sobre monsenhores, bispos, núncios e internúncios. Mas não só. Ele descreve e narra alguns dos vícios e dos jogos preferidos pela socialite: fala da cincada, do voltarete, que tinha no dr. João Costa, um parceiro viciado, e do solo. Mostra estar ao corrente do sistema do funcionalismo público quando fala do velho Pádua, que foi administrador interino no Ministério da Guerra! Gosta de referir-se à loteria e à sorte grande. Tem um capítulo sobre o Passeio Público no Rio, cita chácaras, pregões de quitanda e pregões de vendedores de cocada, na rua. Dá demorada atenção ao Panegírico de Santa Mônica, um livrinho muito lido por Bentinho.
No Dom Casmurro captamos também algumas informações sobre o clima social que se vivia no Rio de Janeiro nos meados do século XIX, pelo que se capta da descrição da procissão do Santíssimo, e da alusão às francesas da rua do Ouvidor. O romance mostra detalhes de crônica quando relata a queda de uma senhora na rua, com meias muito lavadas e ligas de seda, senhora que caminhava à francesa, tique-tique, tique-tique... Mostra-nos também a organização familiar dentro da casa de Bentinho, na rua Matacavalos. Já se fala da xícara de café e, em certos ambientes, os bons livros na cultura de uma pessoa são apresentados como uma espécie de “cocaína moral”.
Informação interessante para os leitores do século XXI é a linguagem empregada por Machado de Assis no que diz respeito aos transportes públicos da cidade do Rio de Janeiro no século XIX. Além de nos mostrar especificamente a utilização do sege, que era um coche de duas rodas e um só assento, fechado com cortinas na parte dianteira, e do tílburi, que era um carro de duas rodas e dois assentos, sem boleia e com capote, tirado por um só animal, aparece o coche imperial destinado a transportar sua Majestade, o Imperador, e pessoas da corte que com ele viajavam, assim como outros tipos de transporte como o ônibus (o termo já é usado por Machado!), e os carros de praça, que não estamos em condições de definir ou detalhar. Como curiosidade, entretanto, sempre é bom conferir as expressões empregadas pela narrativa que nos lembram a linguagem atual pela homonímia dos termos: “o ônibus em que íamos, parou”; “até entrarmos no ônibus”. “Uma só destas visitas tinha carro à porta e cocheiro de libré”. “No Catete mandei parar um carro”. “parece que vai sair o Santíssimo, disse alguém no ônibus” . “O recebedor de passagens puxou a correia que ia ter ao braço do cocheiro, o ônibus parou e o homem desceu”.Etc.
Em relação ao comércio informal, sentimos a voz da rua no pregão do preto vendedor de cocada, com a reprodução da linguagem crioulizante do vendedor carioca e da forma como se dirigia a seus clientes: “Chora, menina, chora/ chora porque não tem/ vintém”. “Sinhazinha qué cocada hoje”?
No tempo da história ainda estava presente a escravatura. As famílias do romance, expoentes da burguesia média carioca, têm escravos. Na casa de Glória há escravos, na casa de Sancha há escravos, que fazem os serviços e os recados.
INTRIGA E PERSONAGENS
Para começar, seria importante conhecer um pouco da intriga e dos personagens do romance que ditaram os caminhos da construção da narrativa. O protagonismo da história narrada é assumido por um quadrângulo amoroso constituído por Bentinho, Capitu, Escobar e Sancha. Mais importantes e fundamentais são os três primeiros. Ao lado deles, têm papel importante D. Glória, mãe de Bentinho, o agregado José Dias, Sancha, mulher de Escobar, Ezequiel filho de Capitu, Tio Cosme, Prima Justina, Padre Cabral e Pádua, pai de Capitu. Na sombra circulam ainda pequenos personagens como um velho tenor italiano, Manduca, D. Fortunata, mãe de Capitu, um preto vendedor de Cocada, Gurgel, pai de Sancha, etc.
Na história amorosa do livro, Bentinho é um amigo adolescente, que se apaixona pelos olhos de ressaca de Capitu, sua vizinha. O núcleo da história é o amor mútuo dos dois adolescentes e a luta de parte a parte para manter e garantir este amor. Bentinho é apaixonado por Capitu e faz tudo para conquistá-la e por manter seu amor. “Vivia tão nela, dela e para ela que...(...), que fez todas as tentativas para se livrar do seminário, só para ter o amor de Capitu. “Tinha por ela um amor puro” ...“Oh minha doce companheira da meninice, eu era puro e puro fiquei e puro entrei na aula de S. José, a buscar de aparência a investidura sacerdotal, e antes dela, a vocação. Mas a vocação eras tu, a investidura eras tu “.
Assim, para a composição da intriga, Machado de Assis escolheu Capitu e Bentinho, que além de amigos, passaram a amar-se apaixonadamente. A adolescência de Bentinho foi marcada por uma promessa que sua mãe fez quando ele nasceu. A promessa consistia em colocá-lo mais tarde no seminário para ser padre. A primeira parte da narrativa passa-se toda em torno desta promessa e dos dois amantes que discutem a maneira de evitar que ela seja cumprida. Obedecendo a uma idéia encontrada por Escobar, D. Glória aceita a sugestão de colocar, a título de permuta, no lugar de Bentinho, um órfão patrocinado por D. Glória que quisesse ser padre e pudesse representar o cumprimento da promessa. Bentinho entra no seminário mas depois de algum tempo consegue sair graças à proposta de substituição do seminarista órfão, podendo assim voltar a assumir o amor de Capitu. Quando volta do seminário já está com dezessete anos e pouco. Logo a seguir, ausenta-se por cinco anos para se tornar bacharel em Direito. Regressa à rua de Matacavalos diplomado. Na volta, confessa que “tudo mudara em volta de mim”, deixando algumas hipóteses ao leitor, mas, ao mesmo tempo, confirma que “a separação não nos esfriou”, sem nos dizer porém, se ainda havia paixão. Casa por fim com Capitu e durante o casamento acontecem coisas que mudam todo o panorama do antigo amor. O casal tem uma intensa amizade com o casal amigo Escobar-Sancha. Há uma fase intensa de visitas mútuas. Há inclusive, na cabeça de Escobar, um plano familiar a quatro, que incluía uma viagem dos dois casais à Europa. Bentinho tem ciúmes. Sempre os teve, desde a adolescência. Mas a crônica das relações entre Escobar e Capitu mostra que há fatos novos que vão além da simples crise de ciúmes de Bentinho. Depois de dois anos e meio de casados, salvo o desgosto grande de não ter um filho, Bentinho diz que “tudo corria bem”. Rapidamente as coisas se alteram após a história das dez libras esterlinas em ouro. Em circunstâncias não sabidas, Capitu concebe um filho a que é posto o nome de Ezequiel. Após o nascimento de Ezequiel, os vários capítulos da narrativa vão mostrando não só as estreitas ligações amorosas de Capitu com Escobar, que baralham a cabeça de Bentinho. Aos poucos Bentinho vai tentando entender esta relação em sua complexidade. A crise é manifesta. O crescimento de Ezequiel e as semelhanças que vão aparecendo com o defunto Escobar, leva o amor de Capitu e Bentinho a se dissolver em lances dramáticos, terminando numa separação silenciosa, precedida de vários tensões e hipóteses negativas que Bentinho pensou em executar. Entre vários sentimentos incluía-se o de suicídio, assim como o de vingança e violência assassina. Refletindo melhor, o apaixonado Bentinho resolve separar-se pacificamente. Capitu vai morar na Suíça com o filho. Escreve cartas para Bentinho e quando mais tarde morre em terras helvéticas, o filho Ezequiel volta ao Brasil. Este visita Bentinho e projeta uma viagem científica à Grécia e ao Egito, onde morre após sete meses, vítima de uma febre tifóide.
Bentinho e Capitu foram vizinhos e amigos de infância: “Quando as bonecas de Capitu adoeciam, o médico era eu”, confessa Bentinho. No capítulo 37 o narrador fala de sua timidez, dos primeiros beijos e agarramentos com Capitu. Depois no capítulo 38 mostra como Capitu tinha perdido o medo: “Mas se conto aqui, tais quais, os dois lances de há quarenta anos, é para mostrar que Capitu não se dominava só em presença da mãe; o pai não lhe meteu mais medo. No meio duma situação que me atava a língua, usava da palavra com a maior ingenuidade deste mundo. A minha persuasão é que o coração não lhe batia mais nem menos. Alegou susto e deu à cara um ar meio enfiado, mas eu que sabia tudo, vi que era mentira e fiquei com inveja”. No capítulo 39, Capitu mostra que é tática e diplomática . Ela percebia que enquanto Bentinho se debatia e discutia com sua entourage familiar o problema de sua ida para o seminário, convinha comportar-se dentro de aparências que não comprometessem as conversas e os sentimentos que tinha com Bentinho. É elucidativo este texto: “Capitu, cosida às saias de minha mãe, não atendia aos olhos ansiosos que eu lhe mandava; também não parecia escutar a conversação sobre o seminário e suas consequências, e, aliás, decorou o principal, como vim a saber depois. Duas vezes fui à janela, esperando que ela fosse também(...) mas Capitu não me apareceu”. Capitu agia já com uma maturidade prudente. Mas não gostou nada da maneira como Bentinho tratou do problema da ida para o seminário com sua mãe: “Ficamos sós na sala (...) também eu contei o que se dera comigo, a entrevista com minha mãe, as minhas súplicas, as lágrimas dela(...) Que faríamos agora? Capitu ouvia-me com atenção sôfrega, depois sombria; quando acabei, respirava a custo, como prestes a estalar de cólera, mas conteve-se. Há tanto tempo que isto sucedeu que não posso dizer com segurança se chorou deveras ou se somente enxugou os olhos; cuido que os enxugou somente. Vendo-lhe o gesto, peguei-lhe na mão para animá-la”. (...). “Caímos no canapé e ficamos a olhar para o ar. Minto; ela olhava para o chão. Fiz o mesmo, logo que a vi assim...”(...) “Capitu refletia,refletia, refletia(...) (Cap. 42).. De repente, cessando a reflexão, fitou em mim os olhos de ressaca e perguntou-me se tinha medo. Medo? Sim, pergunto se você tem medo.”(Cap.43). Tensa, agitada com a idéia de Bentinho ir para o seminário, com a quase certa separação(cap.43). Possessiva, pergunta a Bentinho: “Se você tivesse de escolher entre mim e sua mãe, a quem é que escolhia”? (cap.44). Era fortemente irônica quando estavam nervosos como aconteceu quando discutiam a próxima ida de Bentinho para o seminário: -“Olhe, prometo outra coisa; prometo que há de batizar o meu primeiro filho.” (cap.42). A prima Justina definia-a como “ um pouco trêfega, olha por baixo”, (cap.22)). José Dias dava sua opinião para Bentinho: “Capitu, apesar daqueles olhos que o diabo lhe deu...Você reparou nos olhos dela? São assim de cigana oblíqua e dissimulada. Pois, apesar deles, poderia passar, se não fosse a vaidade e a adulação” (cap.25). Bentinho: “Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais mulher do que eu era homem. Se ainda o não disse, aí fica. Se disse, fica também. Há conceitos que se devem incutir na alma do leitor, à força de repetição”(cap.31). Capitu tinha ambições pela riqueza e admiração pelo fausto: “Capitu não achava bonito o perfil de César mas as ações citadas por José Dias davam-lhe gestos de admiração. Ficou muito tempo com a cara virada para ele. Um homem que podia tudo! Que fazia tudo! Um homem que dava a uma senhora uma pérola do valor de seis milhões de sestércios”! “A jóia de César acendia os olhos de Capitu” (cap.31). Mulher curiosa: “Tudo era matéria às curiosidades de Capitu” .
OS INSTRUMENTOS DA LINGUAGEM
O caminho da linguagem que o autor coloca na boca do narrador para este se insinuar junto do leitor, tem formas que importa lembrar. O texto de Machado mostra como já no final do século dezenove o português do Brasil ia tomando formas específicas. Num texto construído essencialmente na base do português clássico e fundamental, comum ao Brasil e a Portugal, Machado consegue tornar a linguagem mais próxima do leitor brasileiro ao introduzir termos, expressões e idiomatismos de teor tipicamente regional. Há sintaxes como, por exemplo, “As ruas que eu andava”, o emprego italianizante do advérbio “justo” no sentido de justamente, ou “senta, aqui, é melhor”, que mostram a maneira mais típica de apresentar o português que se usava na sociedade carioca do século XIX.
No léxico, dá-se o mesmo. Muitas palavras eram de uso comum no português da época, nas duas pátrias, Brasil e Portugal. Mas a cor local expressiva mostra as diferenças. Assim, os termos papai, mamãe, você, truz, casa de sapé, assobradado, bandós, sege, cocadas, sinhazinha, ônibus, taquara, babados, calundu, vigairaria, chácara, cocaína, nhonhô, agregado, nhá Glória, pregão da quitanda e tílburi são registros tipicamente brasileiros que Machado oferece aos lingüistas para o estudo da evolução do português do Brasil. As expressões “era justo levar a saúde à casa de sapé do pobre”, “um rapaz, que ali no beco empina um papagaio de papel”, “Amai rapazes...amai moças lindas e graciosas”, “a mocinha de sempre”, “passagem de um ônibus”, “Manda-se lá um preto dizer que o senhor janta aqui e irá depois”, “não faz moratórias”, “o trem da Central”, “os morros palejavam”, “o preto que a tinha levado à cocheira”, “disse-lhe meu pai que fosse ver a nossa escravatura”, ”casa do engenho novo”, “no quintal a aroeira e a pintangueira, o poço e a caçamba velha...nada sabia de mim”, “A casuarina era a mesma”, “você já viu o meu gaturamo?”, e outras, não precisam de tirar passaporte para mostrar sua identidade. Mas há mais. Encontramos registros de linguagens populares brasileiras explícitas: “Sinhazinha qué cocada hoje?”, “cocadinha tá boa” ; “Para ir lá...sinhô nadando...sinhô morrendo”, linguagem usada por um escravo da casa de Sancha, chamando Bentinho para acudir a Escobar que se afogava. Ao mesmo tempo, Machado de Assis ainda recolhe linguagens clássicas do português lusitanizante como “estou que aprenderia facilmente”, “minha mãe ficava muita vez a olhar para mim como alma perdida”, “não me lembra”, “lembra-me que ela chorou muito”. “no fim lembrou-me que a Igreja”, “o pai enfiava-lhe uma camisola escura”, “escanchou-me em cima da besta”, bulha, rapagão, etc. O avontade com a linguagem é uma prerrogativa de Machado. Ele não se coloca na posição de forçar o uso de neologismos. Mas tem o senso da conveniência de modernização da linguagem. É fundamentalmente um seguidor da tradição lingüística. Nessa condição, se atém ao uso erudito dos termos na composição e na dinamização de seu discurso. Chega a parecer que termos como sobretarde, pilhérico, descostume, simpleza , descor, sequidão, tílburi (do inglês tilbury), cavatina (do it. cavattina), comborço, artinha, desazo , turvação, sestro, estrelas centelhantes, e influição, são criação sua. Não temos dados para afirmar isso. Mas seria interessante uma pesquisa da história destas palavras para determinar a época em que entraram em uso na língua portuguesa. Muitas delas já Machado as empregou em obras anteriores.Os termos estão dicionarizados hoje. Muitos deles com a comprovação de textos de Machado de Assis. Tanto pode estar utilizando termos já dicionarizados, e que pegou na corrente da tradição erudita, como pode estar lançando termos de sua própria criação, como no caso do verbo dessorrir, que parece ser termo de composição machadiana.
ESTRATÉGIA NARRATIVA
A narrativa é de uma textura tipicamente machadiana. Uma das estratégias originais é a maneira como dialoga e interpela o outro, seja ele uma pessoa, um ser animado ou um ser inanimado. Neste sentido, seus interlocutores tornam a narrativa mais interessante, pela variedade. Com essa estratégia, o mundo da ficção todo ele toma parte ativa. Os seres, de qualquer categoria que sejam, não são tomados passivamente. As coisas são animadas para mostrarem sua voz, para falarem ou para responderem a uma interpelação. Temos exemplos. Discorrendo sobre o Panegírico de Santa Mônica, Machado animiza o próprio livreto, dirigindo-lhe a palavra como se aquele estivesse ouvindo e disposto ao diálogo: “Querido opúsculo, tu não prestavas para nada”. Machado estrutura uma dinâmica própria na narração ao fazer da irmanação do mundo um todo onde a linguagem se cria e se mantém, a rondar as fronteiras do diálogo semiótico:: “Antes de concluir este capítulo, fui à janela indagar da noite por que razão os sonhos hão de ser assim tão tênues que se esgarçam ao menor abrir de olhos ou voltar de corpo e não continuam mais. A noite não me respondeu logo. Estava deliciosamente bela, os morros palejavam de luar e o espaço morria de silêncio”.
Quando fala das promessas que fazia a Deus sem as cumprir, diz: “Padre que me lês, perdoa este recurso”. O modo machadiano de ficcionalizar e de narrar é singularíssimo. Todo o trabalho é feito em torno de um fato ou de uma circunstância. Tendo fixado o fato ou a circunstância, todo o trabalho agora vai ser o de o revestir de fantasia. Para inculcar no espírito do leitor esta mesma fantasia, utiliza a ficção profunda descarregando sobre a sintaxe da narrativa, as hipóteses de mistura com as ambiguidades, com a intensidade em vários graus, com a argúcia e com os contrastes, permitindo ao leitor, refazer com ele, isotopicamente, as viagens criativas, tanto da imaginação quanto da memória. Associando a descrição à narração, destaca a via dos sonhos e da memória do personagem. Machado inverte os modos e o tempo. Partindo do tempo ou do espaço, dá movimento à linguagem, torna-a psicológica, interioriza-a, personaliza-a fazendo com o personagem uma coisa só: o ser literário da obra. Vejamos um pouco: “A imagem de Capitu ia comigo, e a minha imaginação, assim como lhe atribuíra lágrimas, assim lhe encheu a boca de riso agora, via-a escrever no muro, falar-me, andar à volta, com os braços no ar, ouvi distintamente o meu nome, de uma doçura que me embriagou e a voz dela”. Trabalha com a fantasia do personagem e o resultado é a aproximação com o leitor pela singularização imediata que dá aos personagens. Desdobra por vezes autor e narrador, junta-os e prossegue. Machado utiliza um narrador em primeira pessoa, de um modo geral, mas não descura a narração em terceira pessoa, à mistura, como o capítulo 30, por exemplo, quando fala da procissão do Santíssimo. Dialoga em segunda (“senta aqui, é melhor”; “como vês, Capitu aos quatorze anos, tinha já idéias atrevidas”; “padre, que me lês, perdoa este recurso”; “não chore assim”[...]
Na efabulação, utiliza a experiência pessoal e o conhecimento direto. Falando de opúsculos de seminário e de pregões da rua, o narrador define bem as fronteiras: “é preciso que a gente os tenha conhecido e padecido no tempo, sem o que tudo é calado e incolor”.
TÉCNICA NARRATIVA
O monólogo interior
Para intimizar a linguagem, Machado utiliza o processo do monólogo interior como uma técnica narrativa que viabiliza o fluxo da consciência do personagem, levando-o a pensar, a sentir e a se emocionar, através de um discurso pensado ou sentido mas não pronunciado, tomando conta da consciência como se de uma vivência real ao vivo se tratasse! Um exemplo desse monólogo interior encontramo-lo no cap. 100, quando Bentinho, regressado de seu bacharelado em Direito, ia desfazendo a mala e pensando na felicidade e na glória. O fluxo da consciência do personagem vem à tona, e expande com espontaneidade o que lhe vai na alma, sem discurso explicitamente pronunciado independentemente de qualquer intervenção organizadora por parte do narrador: “Via o casamento e a carreira ilustre, enquanto José Dias me ajudava, calado e zeloso.Uma fada invisível desceu ali e me disse em voz igualmente macia e cálida: “Tu serás feliz, Bentinho, tu vais ser feliz”. Outro texto aparece no cap. 120. É a descrição de um estado de espírito reconstruído através dos lances proporcionados por um monólogo interior: “ Na manhã seguinte acordei livre das abominações da véspera, chamei-lhes alucinações, tomei café, percorri os jornais e fui estudar uns autos. Capitu e Prima Justina saíram para a missa das nove na Lapa. A figura de Sancha desapareceu inteiramente no meio das alegações da parte adversa, que eu ia lendo nos autos, alegações falsas, inadmissíveis, sem apoio na lei nem nas praxes. Vi que era fácil ganhar a demanda; consultei Dalloz, Pereira e Sousa...”.
Isotopias temáticas e figurativas
No jogo dos contrastes e das aproximações, Machado utiliza também com mágica sabedoria as isotopias temáticas e figurativas ajudando a perceber a coerência e a força contrastiva de certas temáticas e figurações no coração do texto. Uma delas é o sintagma defunto presente no cap.85 e outros. Outra é a do pregão do preto que apregoava as cocadas quando os personagens eram adolescentes e a alusão ao pregão novamente em Rasgos de Infância (cap.110) e quando Capitu e Bentinho já eram casal e viviam uma crise de casamento. O cap. 9 “A ópera” e o cap. 230 “Otelo” correspondem-se como isotopias. Outra isotopia está contida em dois textos: um mostra a D. Glória achando que Bentinho era a cara do pai : “veja se não é a cara do meu defunto”; o outro mostra as parecenças de Ezequiel com os modos e o corpo de Escobar (cap.116): tinha os olhos de Escobar, “a semelhança era a volta de Escobar”. Mais operacionais porém são as passagens sobre os olhos de ressaca de Capitu no cap. 32 “Olhos de ressaca” e no cap. 123, de novo “Olhos de Ressaca”. A dissimulação do cap. 65 bate com a dissimulação de Capitu durante o livro todo.Os ciúmes do mar do cap. 107 batem com os ciúmes do cap. 62. Isto são isotopias que mexem com a organização da intriga e da ficcionalidade da obra.
Intertextualidade
A intertextualidade é outro meio de que Machado se serve com mestria e parcimônia neste romance. A narrativa cruza-se sempre com a informação cultural do autor ou da sociedade que plasma o espaço e o tempo das ações. Uma pesquisa detalhada poderia mostrar os autores da preferência de Machado, seus conhecimentos musicais, suas estratégias de citações, sua utilização de empréstimos tirados de outras línguas para compor e adornar a narração ou descrição de Dom Casmurro. Frequentemente o narrador fala da sorte grande, outras vezes de um vigésimo de loteria. Fala do Imperador que um dia vinha da Escola de Medicina no Rio: “Em caminho, encontramos o Imperador, que vinha da Escola de Medicina. O ônibus em que íamos parou, como todos os veículos, os passageiros desceram à rua e tiraram o chapéu, até que o coche imperial passasse”. Os vários textos e as várias informações que se cruzam tornam o intertexto mais rico. Ao falar da alopatia e da homeopatia cruza a cultura intertextual do século XIX com a cultura social do nosso tempo. Ao apresentar um preto cantando o pregão das cocadas nas velhas tardes do Rio, no bairro em que viviam Bentinho e Capitu quando eram crianças: “Chora menina, chora/Chora, porque não tem/Vintém”, Machado de Assis pratica a apresentação de uma explícita intertextualidade. Ou quando o mesmo preto, ao apregoar as cocadas, se colocava a jeito e perguntava: “Sinhazinha qué cocada hoje?” dá-nos outro lócus intertextual. Um fragmento intertextual explícito usado por Machado é o Panegírico de Santa Mônica, um opúsculo de 29 páginas escrito por um ex-seminarista colega de Bentinho (118), onde eram descritos em verso pensamentos de auto-estima e de luta pela vida. A citação de Tácito que dizia que as éguas ibéricas concebiam pelo vento, forma no texto uma bela instância intertextual. Por sua vez, o capítulo 135 sobre Otelo mostra quando Bentinho vai ver a representação da Otelo que não tinha visto nunca, mas que o impressionara profundamente e que viera acender em sua cabeça as semelhanças da intriga da peça com seu caso familiar que o atingia a ele, a Capitu e a Escobar. É uma forma de integrar núcleos importantes da narrativa na atmosfera cultural que envolve os personagens e a mentalidade cultural da época(230). A linguagem erudita e clássica é reforçada por alguns empréstimos do latim, do francês e do italiano. Há ocasiões em que um pensamento vem agilizar a narrativa pelo empréstimo, como este, em francês: “voilà mes gestes, voilà mon essence”. Traduzindo, “os gestos manifestam o que uma pessoa é em sua essência”. Ao associar os empréstimos linguísticos à sua narrativa, Machado enriquece seu texto com uma cultura que eleva o personagem e prestigia o autor. Quando narra as aulas de latim recebidas por Bentinho sob as ordens de Padre Cabral, Machado, mostra Bentinho e Capitu brincando de missa, citando frases latinas como “Dominus non sum dignus” (49). Falando do imperador Júlio César lembra a famosa frase “Tu quoque Brute” (82). Cita os Ensaios de Montaigne onde o pensador francês dizia: “ce ne sont pas mes gestes que j’écris, c’est moi, c’est mon essence”(143). Não são meus gestos o que eu escrevo. Sou eu, é a minha essência o que eu escrevo! Já no final do livro, o narrador usa a expressão latina “calcante pede” para dizer que algumas de suas amigas quando o visitavam vinham ou iam a pé.
A PERSONIFICAÇÃO DA PROSOPOPÉIA
Em destaque deve ser colocado o uso da personificação dos elementos da natureza na narrativa. Quando falamos de personificação, falamos de animização ou de prosopopéia. Trata-se de uma figura de estilo ou de linguagem que procura dar características humanas, como é o dom da fala, a animais ou a seres inanimados. É uma figura que quadra perfeitamente na ficção, na narrativa mítica e nos escritos que narram histórias maravilhosas. Ao adotar a personificação, Machado reveste sua narrativa de poder maravilhoso e de realismo mágico, retornando ao maravilhoso das fábulas antigas, quando os animais falavam.Exemplo típico do uso desta figura está na personificação do canapé da casa de Sancha, onde Bentinho e Capitu se encontraram. Texto: “Deles só o canapé pareceu haver compreendido a nossa situação moral, visto que nos ofereceu os serviços da sua palhinha, com tal insistência que os aceitamos e nos sentamos. Ele faz aliar a intimidade e o decoro e mostra a casa sem sair da sala(...)Seremos felizes! Repeti estas palavras, com os simples dedos, apertando os dela. O canapé, quer visse ou não, continuou a prestar os seus serviços às nossas mãos presas e às nossas cabeças juntas ou quase juntas” (161). “De resto se elas ouviram algo, nada entenderam, nem elas nem os móveis, que estavam tão tristes como o dono”(160). Para ilustração do uso da personificação, nada melhor que o texto do capítulo 17 sobre os vermes: “Catei os próprios vermes dos livros para que me dissessem o que havia nos textos roídos por eles. – Meu senhor, respondeu-me um longo verme gordo, nós não sabemos absolutamente nada dos textos que roemos, nem escolhemos o que roemos, nem amamos ou detestamos o que roemos, nós roemos” (59). Este texto mostra como é fantástico o desdobramento de um curto discurso direto informativo numa rica parábola com voz e som, representando a animação da escritura. É sem dúvida um artifício eloqüente da criatividade da efabulação e da linguagem, o que contribui para a dinamização da narrativa em qualquer escala.

A ANÁLISE PSICOLÓGICA E TOM REALISTA DA OBRA
Parece ser interessante antes de mais nada lembrar como os dois amigos cresceram e se relacionaram e saber um pouco do caráter e do perfil temperamental e psicológico de cada um. Antes de mais nada, ajuda saber do perfil que a narrativa nos dá sobre a infância e adolescência de Bentinho e Capitu. Eram vizinhos e amigos de infância, como já sabemos. Tão amigos, que eles próprios criavam o tipo de brincadeira que faziam:“Quando as bonecas de Capitu adoeciam, o médico era eu”, confessa Bentinho. A narrativa vai mostrando a timidez de Bentinho, os primeiros beijos e agarramentos com Capitu, a maneira como Capitu foi perdendo o medo, a dissimulação de Capitu. No capítulo 39, Capitu mostra-se tática e diplomática . Ela percebia que enquanto Bentinho se debatia e discutia com seu grupo familiar o problema de sua ida para o seminário, convinha comportar-se dentro de aparências que não comprometessem as conversas e os sentimentos que tinha com Bentinho. Capitu ouvia-me com atenção sôfrega, depois sombria; quando acabei, respirava a custo, como prestes a estalar de cólera, mas conteve-se. Há tanto tempo que isto sucedeu que não posso dizer com segurança se chorou deveras ou se somente enxugou os olhos; cuido que os enxugou somente. Vendo-lhe o gesto, peguei-lhe na mão para animá-la”. (...). “Caímos no canapé e ficamos a olhar para o ar. Minto; ela olhava para o chão. Fiz o mesmo, logo que a vi assim...”(...) “Capitu refletia,refletia, refletia(...) (Cap. 42).. De repente, cessando a reflexão, fitou em mim os olhos de ressaca e perguntou-me se tinha medo. Medo? Sim, pergunto se você tem medo.”(Cap.43). Tensa, agitada com a idéia de Bentinho ir para o seminário, com a quase certa separação(cap.43). Possessiva, pergunta a Bentinho: “Se você tivesse de escolher entre mim e sua mãe, a quem é que escolhia”? (cap.44). Era fortemente irônica quando estavam nervosos como aconteceu quando discutiam a próxima ida de Bentinho para o seminário: -“Olhe, prometo outra coisa; prometo que há de batizar o meu primeiro filho.” (cap,42). A prima Justina definia-a como “ um pouco trêfega, olha por baixo”, (cap.22)). José Dias dava sua opinião para Bentinho: “Capitu, apesar daqueles olhos que o diabo lhe deu...Você reparou nos olhos dela? São assim de cigana oblíqua e dissimulada. Pois, apesar deles, poderia passar, se não fosse a vaidade e a adulação” (cap.25). Bentinho: “Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais mulher do que eu era homem. Se ainda o não disse, aí fica. Se disse, fica também. Há conceitos que se devem incutir na alma do leitor, à força de repetição”(cap.31). Capitu tinha ambições pela riqueza e admiração pelo fausto: “Capitu não achava bonito o perfil de César mas as ações citadas por José Dias davam-lhe gestos de admiração. Ficou muito tempo com a cara virada para ele. Um homem que podia tudo! Que fazia tudo! Um homem que dava a uma senhora uma pérola do valor de seis milhões de sestércios”! “A jóia de César acendia os olhos de Capitu” (cap.31). Mulher curiosa: “Tudo era matéria às curiosidades de Capitu”
PONTOS DE VISTA
Há muitos pontos de vista nascidos da leitura de milhares de leitores comuns e estudiosos que já passaram pela obra. Neste momento, pretendemos, apenas apresentar nossa leitura, comentando o Dom Casmurro apenas do ponto de vista de obra ficcional.
Partindo deste princípio, nosso objetivo é analisá-la como um sistema, onde a unidade ficcional do conjunto ganha força em suas partes de composição de tal maneira que são elas que têm o encargo de mobilizar a atenção do leitor, possibilitando-lhe a criação de um ponto de vista próprio. No caminho da leitura, encontraremos fundamentalmente: a história do enredo, as malhas da ficção e os caminhos da verdade e também da dissimulação. A dissimulação torna-se um importante elemento ficcional e pode converter-se num dos caminhos da verdade literária pretendida pelo autor.
Quando entendemos a leitura como um processo geral de decodificação, percebemos que o romance se abre em lances profundamente significativos que nos mostram as próprias estruturas da efabulação. A leitura é o percurso solitário por entre florestas de signos que vão se mostrando e abrindo em discurso capazes de nos levarem a entender as principais linhas da narração e da ação. O Dom Casmurro é em si uma rota complexa que nos mostra o nascimento, a construção e a evolução de uma paixão profunda entre dois adolescentes cariocas na segunda metade do século XIX. A narrativa mostra-nos claramente o obstáculo que ameaçava esta paixão e todos os movimentos e medidas que os adolescentes e seus aliados fizeram para anular a força de uma promessa que destinava Bentinho a entrar no seminário para assumir a vida de padre. Há a mobilização geral para que abortasse a ida e a permanência de Bentinho no seminário.
Há duas figuras que se destacam nesse trabalho diplomático e amigo para dissuadir D. Glória de manter a promessa. São o agregado José Dias, na casa da rua de Matacavalos e o amigo seminarista Escobar, que descobre uma forma de convencer D. Glória a liberar Bentinho do seminário. Bentinho passa um tempo no Seminário. É a primeira separação entre Bentinho e Capitu, e também entre Bentinho e sua mãe.
A segunda separação ocorre quando Bentinho sai do Seminário já com dezessete anos e pouco. Deixando o seminário, Bentinho vai ausentar-se novamente, mas desta vez pelo período de cinco anos para se bacharelar em Direito na Europa. Em relação a esta segunda separação é interessante que os leitores de Dom Casmurro avaliem rigorosamente o que podem significar estes cinco anos de separação entre Bentinho e Capitu. Convém sobretudo refletir sobre o peso que esse tempo pode ter tido na formação emocional de Capitu. Parece que a crítica não costuma relevar este aspecto. A paixão que unia Bentinho e Capitu é tida como algo inquebrantável, estável, imutável e explicitamente confiável. Todavia é de bom alvitre passar a reler o cap. 98 e ponderar o que na realidade são cinco anos longe um do outro, onde as cartas são o único elo de ligação e de nutrição para manter a paixão. Bentinho tinha a idade de dezoito anos quando partiu e regressou quando tinha 22, já Bacharel em Direito. Neste ínterim, diz Bentinho, “tudo mudara em volta de mim”. A mãe de Bentinho envelhecera, a mãe de Capitu tinha morrido, o pai se aposentara. Embora o narrador tenha o cuidado de dizer que esta separação de cinco anos não esfriou as relações entre Bentinho e Capitu, os fatos mostram que a crise que mais tarde se instalara nas relações do casal não foi apenas de incompatibilidades. Para darmos alguma lógica a estas observações, acrescentaremos mais um detalhe pouco comentado pelos pesquisadores que deve ser colocado em foco. Esse detalhe, textualmente certificado, é o de que no decurso destes cinco anos as relações entre Capitu e Escobar se estreitaram. Vejamos o texto: “as relações que [ Escobar]travou com o pai de Sancha estreitaram as que já trazia com Capitu” (cap.98). A ligação entre eles incluía já o nível de confidência. Tão confidentes que Escobar se transformou num amigo especial de Capitu, em alguém que fazia seus recados. Era a ele que Capitu entregava as cartas quando escrevia para Bentinho no Exterior. Tanto se aproximaram que ele veio a casar com Sancha, a amiga de Capitu, quase irmã, tão próxima que Escobar numa carta a Bentinho a chamou de “ sua cunhadinha”.
A impressão que dá é que os olhos de Capitu já tinham baixado sobre Escobar, talvez desde o dia em que Escobar seminarista visitou Bentinho (cap. 71), quando a moça de olhos oblíquos e dissimulados os espiou de dentro da veneziana. Bentinho tinha contado a Escobar o segredo de que estava enamorado. E prometeu-lhe que lhe apresentaria a moça que tanto elogiava (cap.78) Estas observações mostram que a aproximação entre Capitu e Escobar durante a ausência de Bentinho na Europa é um dado real e representa algo de muito especial a ter em conta para analisarmos o posterior e provável romance entre os dois que tanta turvação e desespero provocou em Bentinho. Esse dado e outros semelhantes dispersos pela narrativa podem, num contexto global, representar efetivamente o começo de uma mudança de rumos nos sentimentos de Capitu. Outro detalhe importante é que o narrador consagra um capítulo especial para falar do regresso de Bentinho já bacharel e da alegria de D. Glória, mãe de Bentinho, que “quase estalou de felicidade” ao ver o seu filho novamente junto dela, beijando-o “com uma ternura que não sei escrever”(cap.99). Intencionalmente ou não, a verdade é que o narrador não fala das emoções de Capitu após o reencontro. Não há nada sobre o reencontro. Não há manifestações por parte de Capitu. Mas há manifestações por parte de Bentinho: “No quarto desfazendo a mala e tirando a carta de bacharel de dentro da lata, ia pensando na felicidade e na glória” (cap. 100). Não há a presença de Capitu a mostrar-se feliz ou coisa parecida, no regresso de Bentinho. Há silêncios estranhos no narrador ainda antes de o bacharel decidir casar. Não é registrado nem o entusiasmo de Bentinho nem o de Capitu. Todo o discurso corre por via indireta, com Bentinho silencioso, sem se referir a Capitu, ouvindo apenas José Dias que toma a iniciativa de falar dela, chamando Capitu de “anjo”, de “anjíssima”, em superlativo. E depois o mesmo José Dias faz-lhe o panegírico tentando romper o silêncio de Bentinho, relatando-lhe o retrato que dela fez a sua mãe. “Disse-lhe que não podia desejar melhor nora para si, boa discreta, prendada, amiga da gente...”(cap.100). Mas há uma contenção visível na narrativa, por parte de Bentinho, isso há. Pela variação do discurso, é interessante também atentar na maneira como Bentinho continua a narração, depois que a mãe profetizou: “Tu serás feliz, meu filho”. Por parte de Bentinho, nunca houve dúvida. Sempre foi um apaixonado por Capitu. Até no tempo em que já, casado, o atravessavam as dúvidas do relacionamento entre Capitu e Escobar, sua declaração era taxativa: “ Naquele tempo, por mais mulheres bonitas que achasse, nenhuma receberia a mínima parte do amor que tinha a Capitu. À minha própria mãe não caberia mais que metade. Capitu era tudo e mais que tudo; não vivia nem trabalhava que não fosse pensando nela”(cap.113). Este testemunho é importante para desfazer dúvidas. Mas não atenua, por si só, os silêncios e espaços vazios da narrativa nos intervalos que se situam entre a vinda do bacharel e a decisão de casar.
O clima de confiança entre os dois parece mudado realmente já antes do casamento. Começando pela análise do relato sobre a cerimônia de núpcias, parece exígua, modesta e breve a referência à cerimônia de casamento. Dá a impressão que o narrador se limita a pinçar alguma mensagem destinada a realçar o espírito ambicioso, vaidoso e social de Capitu, deixando de lado o aparato externo da festa, como se entre as vivências de Bentinho nada restasse a não ser o latim e os rituais dessa tarde março de 1865, quando no alto da Tijuca, e num dia de chuva se enlaçou com Capitu. De todo o conjunto, a narrativa de Bentinho privilegia a mensagem nupcial da primeira epístola de S.Pedro onde se exorta a submissão da mulher a seu marido: “As mulheres sejam sujeitas a seus maridos...Não seja o adorno delas o enfeite dos cabelos eriçados ou as rendas de ouro, mas o homem que está escondido no coração...” (cap.101). São palavras que o narrador registra como recado direto para ambições de Capitu, deslumbrada com o triunfal aspecto exterior da cerimônia e das benesses materiais de seu casamento. O comentário de Bentinho deve ser registrado: “Ao cabo pode ser que tudo fosse um sonho, nada mais natural a um ex-seminarista ouvir por toda a parte latim e Escritura”. Da parte de Capitu, o narrador diverte-se em lembrar que, de todo o ritual, a companheira de Bentinho só recordava as palavras: “Sentei-me à sombra daquele que tanto havia desejado”. Quanto ao conteúdo dos termos extraídos da primeira epístola de S.Pedro, Capitu diria no dia seguinte “que estava por tudo”, e que Bentinho “era a única renda e o único enfeite que jamais poria em si”!!! Estranho comentário que exclui metaforicamente a validade de considerar como relíquia apensa ao coração a emoção de ter Bentinho como marido. Apesar da estranha referência de Capitu, Bentinho não se descompõe e consegue replicar em grande estilo dizendo que sua esposa teria “ sempre as mais finas rendas do mundo”. Neste clima de valores, de gostos, e nesta troca de galhardetes metafóricos, não fica dúvida de que o casamento já nasce com uma diferença enorme de mentalidades e de posições, ficando claro que Capitu está inclinada a preferir as rendas de ouro à pessoa do marido, em si. Esta tendência de Capitu antepor os bens materiais aos valores do amor e da amizade é confirmada no capítulo consagrado à lua de mel (vap.102). Nesse capítulo Capitu mostra sua impaciência em sair para a rua, mostrar-se, exibir-se, colher os louros da vaidade: “A alegria com que pôs o chapéu de casada, e o ar de casada com que me deu a mão para entrar e sair do carro e o braço para andar na rua, tudo me mostrou que a causa da impaciÊncia de Capitu eram os sinais exteriores do novo estado. Não lhe bastava ser casada entre quatro paredes e algumas árvores; precisava do resto do mundo, também. E quando eu me vi embaixo, pisando as ruas com ela, parando, olhando, falando, senti a mesma coisa. Inventava passeios para que me vissem, me confirmassem e me invejassem. Na rua, muitos voltavam a cabeça, curiosos, outros passavam, outros perguntavam: “Quem são”? e um sabido explicava: “Este é o dr. Santiago, que casou há dias com aquela moça, D. Capitolina, depois de uma longa paixão de crianças; moram na Glória, as famílias residem em Matacavalos. E ambos os dois: “É uma mocetona” (cap.102). Por outro lado, o amor de Bentinho parecia indefectível: “Ao fim de dois nos de casado, salvo o desgosto grande de não ter um filho, tudo corria bem” (cap.104).
A ANÁLISE PSICOLÓGICA E O TOM REALISTA DA OBRA
Há uma tendência do leitor acadêmico em relacionar uma obra literária não apenas com o seu tempo, mas sobretudo com o estilo de época ou com a estética dominante e com a ideologia de um determinado período histórico. Sempre defendemos que escritores de talento não são bons alunos de escola. Sua intencionalidade estética é criada a partir de sua própria inventividade literária. Aplica-se a Machado de Assis. Isto não quer dizer que Machado tenha escrito o Dom Casmurro inteiramente fora das tendências estéticas da época. Em verdade, o ano 1999 não era mais um ano de estética realista. Nestes anos, no Brasil e em Portugal, era época de simbolismo. Mas Machado, tinha feito uma tremenda crítica ao realismo de “O Primo Basílio” de Eça de Queiroz em 1878, quando ainda era adepto da estética romântica. E agora achava-se fadado a lançar mão da modernidade que para ele consistia em escrever uma história com todos os lances crus que a realidade lhe oferecia. Se, como Eça de Queiroz defendeu em sua conferência no Cassino Lisbonense, o Realismo é a análise de caracteres, abre-se a oportunidade de Machado mostrar a forma como absorveu os princípios realistas já bem presentes nas obras de Aluísio de Azevedo e de outros escritores brasileiros. Ao lermos a história de Bentinho e Capitu, verificamos que Machado de Assis quis apresentar em cores vivas a intimidade dos personagens, seus amores, suas trocas de amor, seus conflitos, suas alegrias e suas desgraças, seus ciúmes e seus terrores, suas vontades e suas raivas, seus delírios e idéias extremas de suicídio e de destruição. Todo o drama de Bentinho após o episódio das dez libras de ouro é narrar a realidade viva e crua. Ele procura perscrutar os meandros psicológicos do personagem, sua intimidade, sua psique, suas emoções íntimas. Aderindo aos princípios da estética realista Machado serve-se dos meandros sinuosos da alma do personagem aproveitando a riqueza da simulação e da ambigüidade da linguagem para colocar o leitor diante de vários ângulos de leitura. Acreditamos que a estratégia narrativa dá considerações favoráveis à análise das ações, que são, ora simples, ora complexas, ora ambíguas, ora surpreendentes. Em todo esse percurso o leitor se encontra por vezes com os avessos escuros da paixão e da traição, com a dissimulação dos modos e das atitudes, mostrando que nem sempre a intriga é linear e contínua. Machado narra e descrê as vicissitudes dos tempos, dos espaços e das relações. Entra neste novelinho a variação enorme de fatores psicológicos dos quais fazem parte a mudança, a metamorfose, o conflito, o ciúme, a perfídia, a traição, a infidelidade, a atração sedutora, o amor variante, a contenção e o silêncio. Tudo isto entra na alma de um personagem e tudo isto é matéria para um bom escritor pintar, descrever e mostrar. Na trajetória sentimental de Capitu e de Bentinho e, mais tarde, nas vias atravessadas de amores trocados entre o triângulo amoroso de Bentinho, Capitu e Escobar, há muito material de análise psicológica, uma característica essencial da estética realista. Mas numa boa pesquisa de campo, poderemos chegar até à conclusão que em vez de uma triangulação amorosa, havia uma quadrangulação, já que Sancha se fez para Bentinho e Bentinho chegou a pensar fortemente em Sancha, parecendo que a contenção em memória respeitosa do amigo, venceu a atração, que ameaçou entrar em linha de ação.
INDÍCIOS DA LIGAÇÃO SENTIMENTAL ENTRE CAPITU E ESCOBAR
É fora de dúvida que o problema maior que a narrativa carrega é o problema de Capitu, problema profundo que foi chamado pelos autores de enigma de Capitu. É fora de dúvida que a análise do final da história, sobretudo a partir do regresso de Bentinho ao Rio de Janeiro, para ser bem analisada, supõe o estudo detalhado do perfil psicológico e dos principais traços biográficos da Capitu. O romance pincela aqui e ali notas interessantes referentes à adolescente, à evolução emocional e sentimental, aos seus olhos, às suas ambições, deixando na primeira parte do livro, se assim podemos dizer, no plano do amor, uma paixão obsessiva e possessiva por Bentinho. Após o regresso de Bentinho do bacharelado, parece que luzem as manifestações de Bentinho e se apagam as manifestações amorosas de Capitu. Isto faz parte do grande enigma sentimental da co-protagonista do romance. Para discutirmos isto com mais profundidade, a leitura tem de ser analítica, e não pode perder nenhum aspecto importante que tenha o caráter de elucidativo. Para sermos mais objetivos, portanto, parece ser de ordem prioritária, a apresentação de alguns indícios inteiramente favoráveis às suspeitas levantadas por Bentinho e sobre as ligações amorosas entre Capitu a Escobar, que terminam por infernizar e dramatizar a vida de Bentinho e pôr fim à vida matrimonial e familiar do casal.
É costume da crítica organizar um debate de julgamento e por vezes até um tribunal para julgar as ações de Capitu, levantando a pergunta direta: Capitu é inocente ou culpada?
Cumpre dizer que num julgamento em tribunal, nem sempre há a confissão expressa do crime. Por outro lado, o réu não é obrigado a confessar o delito que cometeu. Pelo que se conhece Capitu nunca fez uma confissão expressa de sua culpa. Na lógica das ações de Dom Casmurro, o discurso ficcional leva-nos aos episódios finais onde uma série de suspeitas se constituem em outros tantos indícios referentes aos possíveis amores entre Capitu e Escobar. Tratando-se apenas de uma obra literária torna-se evidente que não cabe aquilo que chamamos de uma explícita apresentação de provas. No caso, provas sobre a infidelidade de Capitu. Cabe, sim, a análise de um discurso onde Bentinho é o principal ator de cena e Capitu a suposta referência que o silêncio ajuda na quase totalidade do discurso. São essas passagens, esses microtextos e esses fragmentos transformados em indícios que nos darão informações sobre alguns pontos que melhor podem explicitar as relações de Capitu com Escobar. Eis alguns dos indícios mais evidentes:
1. O primeiro indício refere-se ao relacionamento de Escobar com Capitu durante a ausência de Bentinho que se bacharelava em direito na Europa. Foram cinco anos, como sabemos através do capítulo 98. Durante esse período de cinco anos o narrador, num capítulo cheio de detalhes e de obscuras palavras reticentes, nos diz explicitamente que Escobar estreitou as relações que já tinha com Capitu, pela proximidade que o ligava a Sancha e ao pai desta. É um capítulo necessário ao esclarecimento do enigma das relações de Capitu com Escobar.
2. O segundo indício é a história das dez libras em ouro arrumadas pelo “corretor” e amigo Escobar, que tinha ido a casa de Capitu levar as libras, antes de Bentinho chegar. Capitu explicou para Bentinho que era um dinheiro que ela tinha poupado. –“Quem foi o corretor? – Seu amigo Escobar.-Como é que ele não me disse nada? – Foi hoje mesmo. - Ele esteve cá? –Pouco antes de você chegar; eu não disse nada para que você não desconfiasse.” (cap.106).
3. O terceiro indício é percebido pelo leitor quando a narrativa lhe mostra o que aconteceu no episódio que se conta no cap. 113. Capitu e Bentinho sempre iam ao teatro juntos. Porém naquele dia, havendo uma estréia de ópera, Capitu, que se declarara doente, quis por força que Bentinho fosse ao teatro. Bentinho regressara mais cedo receoso de Capitu, que estava doente. Ao chegar a casa, Bentinho encontrou Escobar à porta do corredor. Convidou-o para subir. Capitu estava melhor e até boa. “Confessou-me que apenas tivera uma dor de cabeça de nada, mas agravara o padecimento para que eu fosse divertir-me. Não falava alegre, o que me fez desconfiar que mentia. Para me não meter medo, mas jurou que era a verdade pura. Escobar sorriu e disse: -A cunhadinha está tão doente como você ou eu. “ (cap.113).
4. Um outro indício muito forte foi o comportamento de Capitu no enterro de Escobar, frente ao cadáver: Capitu mostrava-se com “o parecer abatido e estúpido” (cap.122). Na hora da encomendação, diz a narrativa, “Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fica e apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas” (cap.123). “Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta”(cap.123).
5. De alguma força insinuativa está o fato de o casal Sancha-Escobar ter escolhido o nome de Capituzinha para batizar a própria filha (196).
6. Bentinho acusa Capitu de que andava de cabeça no ar. O texto dá sinais disso:
“Uma noite perdeu-se a fitar o mar, com tal força e concentração, que me deu ciúmes. – Você não me ouve, Capitu. –Eu?Ouço perfeitamente. – O que é que eu dizia? - Você...você falava de Sírio. –Qual Sírio, Capitu. Há vinte minutos que eu falei de Sírio. – Falava de ...falava de Marte, emendou ela apressada” 193.
Em capítulo sobre “Ciúmes do mar”, Bentinho diz que “ se não fosse a astronomia não descobriria tão cedo as dez libras de Capitu” (...) “Venho explicar-te que tive tais ciúmes pelo que podia estar na cabeça de minha mulher, não fora ou acima dela

7. O filho de Capitu era para chamar-se Escobar, pois era idéia de Bentinho que o padrinho fosse seu amigo Escobar. Mas o tio Cosme quis ser o padrinho, e houve mudança: foi-lhe dado o nome de Ezequiel (198).
8. Depois da morte de Escobar, estando José Dias e Prima Justina de visita na sala, Capitu “saiu da sala para ver se o filho dormia. “Quando retornou trazia os olhos vermelhos” 222 Disse-nos que ao mirar o filhinho dormindo pensara na filhinha de Sancha e na aflição da viúva” 222. Isto foi na segunda-feira. “Na terça-feira foi aberto o testamento, que me nomeava segundo testamenteiro. O primeiro cabia á mulher. Não me deixava nada, mas as palavras que me escrevera em carta separada eram sublimes de amizade e de estima. Capitu desta vez chorou muito, mas compôs-se depressa” 223

DOM CASMURRO - UMA OBRA ABERTA
Entre os estudiosos da obra citam-se Afrânio Coutinho, Antônio Cândido e Flávio Loureiro Chaves.
No parecer do douto professor da USP não importaria muito se a convicção de Bento é verdadeira ou falsa. A conseqüência seria a mesma tanto no caso de o fato de ele estar convencido que Capitu traiu na realidade ou no caso de isso ser apenas uma imaginação. Segundo Antônio Cândido, quer a traição seja de fundo real ou imaginário, ela produziu o mesmo efeito sobre Bentinho. Destruiu sua vida familiar.
No caso de Flavio Loureiro Chaves, o romance Dom Casmurro é apelidado de “romance da dúvida”. Isto porque, apesar de Bentinho ter a convicção de que desvendou a trama de um crime, há tantas ambigüidades no texto, que ficam sobrando as incertezas e o caráter nebuloso do que realmente aconteceu.
Dom Casmurro, como também já foi observado, é uma obra aberta. Como obra aberta transforma-se em texto polissêmico, onde se escondem múltiplos sentidos, múltiplos rostos, múltiplas saídas hermenêuticas ou vozes diferenciadas, concorrendo para uma sinfonia, que dão o real perfil do livro.
À partida, perante essa riqueza de análise e de ciência hermenêutica, é aconselhável que o leitor estabeleça um critério insuspeito, dando ao texto a soberania que o faz resistir a parti-pris, a preconceitos ou pré-julgamentos. Dentro desta perspectiva, parece natural que sejam as regras hermenêuticas aquelas que devem reger a interpretação e os sentidos.
A soberania do texto abre caminhos de análise detalhada e circunstanciada e mostra, a par do macrotexto, a necessidade de analisar a narrativa em seus detalhes, em suas seqüências, em seus microtextos ou fragmentos. Essa metodologia abre os caminhos necessários e evita intromissões estranhas preconcebidas. No cerne desta metodologia podem ser estudados novamente não apenas os enigmas de Capitu, como os enigmas de Bentinho, de Ezequiel, os enigmas conjuntos de Capitu e Escobar e outros. Será a leitura detalhada, na figuração da lupa, centrada sobre o texto que se deterá sobre as passagens, e os fragmentos especificamente significativos para analisar e interpretar.
Escolhido este caminho, fica descartada em primeiro lugar a chamada hermenêutica corporativa. Quando se lê para buscar a verdade, a lógica imperativa do texto dá-nos uma luz centrada sobre a objetividade. As prioridades em virtude do gênero, estabelecidas pela hermenêutica corporativa são prioridades estabelecidas pela emoção, pelos interesses do grupo e pelo prejulgamento. Capitu não será inocente ou culpada porque é mulher. Nem Bentinho será condenado ou absolvido só porque é homem. É o texto e a interpretação crítica que devem encarregar-se dos sentidos acima da consideração do gênero ou da opinião corporativista.
Por outro lado é a dinâmica do texto que deve orientar a leitura também. Longe das teses de uma hermenêutica estática e desgastada, é possível buscar fontes, passagens nucleares e fragmentos que nos coloquem no coração do texto.
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