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Ensaios-->Literatura popular da Guiné-Bissau -- 18/07/2007 - 20:23 (João Ferreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


LITERATURA POPULAR DA GUINÉ-BISSAU
João Ferreira
Texto redigido em 1979

No clima cultural da Guiné atual, com mais verdade nos meios urbanos, a tônica da expressão literária é engajada e ideologicamente comprometida. Não há autores independentes nem editoração privada. Os escritores, quase exclusivamente reduzidos a poetas, jornalistas e professores, vêm de uma campanha e de uma luta nacional, onde o engajamento místico-revolucionário e ideológico se tornou característica absorvente. A concepção de Literatura no contexto de produção e de consumo ainda pressupõe uma vinculação revolucionária com a realidade. A Literatura foi produzida na fase da revolução como uma arma de combate e, após a independência, como chama de consolidação revolucionária, sob controle dos órgãos do Estado, especialmente pelo Conselho Nacional de Cultura de Bissau. São prova disso os livros Mantenhas para quem luta- A nova Poesia da Guiné-Bissau (1977), Antologia dos novos Poetas da Guiné-Bissau (1978) e o disco Djiu de Galinha, de José Carlos Schwartz.
O processo de desenvolvimento da Guiné-Bissau pressupõe as bases de uma revolução cultural. E não há dúvida de que o sistema implantado pelo PAIGC partiu de uma cultura revolucionária inspirada nos preceitos de Almícar Cabral e transmitidos e absorvidos por artistas e escritores dentro do próprio sistema global da revolução.
O presente trabalho se apoia numa metodologia convergente que analisa simultaneamente o dado cultural e o clima sócio-cultural do contexto.Dará por isso uma atenção especial ao estudo das expressões culturais nativas tradicionais e simultaneamente se voltará para a análise das expressões culturais do período revolucionário, numa tentativa de apreensão conjunta de um fenômeno local em suas manifestações sincrônicas.
O corpus fático, fenomenal e textual é necessariamente limitado, por ser, nos termos em que se põe em seu conjunto, relativamente pioneiro.
Nossa recolha não é caracterizada pela sistematicidade abrangente de campos. Isto só seria possível através de uma demorada e adequada operação de recolha local. Na emergência, além de uma rara e quase inexistente bibliografia e das poucas informações veiculadas pelos periódicos, dispomos de fontes colhidas de narradores com formação de segundo grau e universitária. Esses narradores nativos da Guiné-Bissau selecionaram de sua antiga memória infantil determinadas histórias populares que ouviram da boca da mãe, da avó, da tia, dos irmãos ou dos “grandes” da tribo. Trata-se de narrativas populares orais, vivas, sonoras, alimentadas pelas fontes perpétuas da imaginação. Literatura, afinal, forjada pela história étnica local, pela história da revolução em contraste dialético com a história da colonização.
Em seu conjunto, a literatura popular da Guiné-Bissau visa a expressão através dos mitos, fábulas, contos, tradições, danças, canções e provérbios. Em sua tônica tradicional e em sua conexão com a alma coletiva e com a caracterização grupal, a literatura popular não tem autor individual enquanto tal. Mesmo que o tenha tido em sua fase original, a partir do momento em que a comunidade se apropriou da narrativa e a adotou, refundido-a, variando-a ou adaptando-a, tornou-a popular, despersonalizou-a, tornou-a intemporal e a-espacial.
A literatura oral dos povos da Guiné substitui o texto literário artesanal escrito. A dinâmica cultural viva alimenta-se de narrativas orais do tipo das que vamos apresentar. Nesta perspectiva, a literatura popular ganha maior identidade no confronto com a literatura culta, escrita e artesanal. E é exatamente no confronto dialético que melhor sobressaem suas características. E enquanto popular, tradicional, anônima, persistente e oralizada, ela entra na memória coletiva e, portanto, no folclore, mesmo que contemporânea (1).

1. Formas da literatura popular guineense

Num quadro de agrupamentos étnicos variados que abrange as raças litorâneas quase totalmente animistas (balantas, baiotes e felupes, manjacos, papéis e mancanhas, bijagós, nalus e beafadas) e as raças de origem neo-sudanesa, localizadas mais no interior do território (mandingas: saracolés, sossos, jaloncas- e fulas: forros, fulas pretos e futajaloncos) e ainda os descendentes de caboverdeanos, de colonos europeus e sírio-libaneses, a expressão etnográfica, folclórica e popular é, como pode presumir-se, rica e variada.
Limitados metodologicamente à literatura popular, reduziremos a expressão desta às narrativas orais, sob a forma a nós acessível de contos e fábulas, de provérbios e canções, procurando em nossa exposição uma interpretação da alma popular dos povos da Guiné-Bissau.

1.1 Os contos populares

Nesta categoria englobamos os contos populares comuns, os fabulários ou histórias de animais ou apólogos, de profundo intuito moralizante e também as narrativas de mitos cosmogônicos. Não temos informações textuais sobre contos mágicos de fundo animista, que são preservados dentro da memória animista, fechados a sete chaves pelos grandes e pelos pais dos meninos que recebem iniciação tribal na cerimônia do fanado.
Não possuimos pronunciamentos de estudiosos sobre a natureza, estrutura e dimensão dos contos maravilhosos e de encantamento escondidos no círculo fechado dos clãs e vedados a estranhos.
Os contos narrando a aventura do homem no espaço mítico dos irãs, uma espécie de demiurgos ou intermediários benéficos e maléficos que supervisionam o curso dos acontecimentos do mundo em relação aos homens- serão imprescindíveis, no devido tempo, para compreensão correta da expressão cultural dos povos da Guiné.
Na falta de um espaço total da narrativa popular guineense vamos cingir-nos a algumas categorias protótipas.

1.1.1 Contos de fundo antropocosmogônico

Chamamos de contos antropocosmogônicos aqueles que envolvem na relação do homem com o universo. Em nossa limitada coleta junto de narradores orais, recolhemos uma narrativa que circula entre os papéis da ilha de Bissau intitulada “O Nascimento do dia”.

1.1.2 Contos de animais

Identificam-se em parte com o gênero das fábulas clássicas, onde os animais assumem o exemplo, o comportamento e a linguagem dos homens. Todas as histórias de animais têm intencionalidade educacional. A estrutura narrativa desenvolve uma linha de sabedoria sutil e maneirosa. Nela, os entes humildes e fracos conseguem, pela esperteza e pela astúcia ou pela inteligência, defender-se dos fortes, arrogantes e dominadores.
No índice do corpus textual, ainda inédito por nós recolhidos, temos os seguintes contos de animais: 1. a cabra e a onça; 2. a lebre fardada; 3. a lebre e a choca; 4. o camaleão; 5. a história do frintambá.
Todas estas narrativas se colocam no plano da fábula educativa, exaltando a astúcia e a malícia como formas de equilíbrio para a vitória do fraco sobre o forte. A vitória legitima tudo, embora normalmente a esperteza seja apenas mental, sem recurso à violência. Vale a pena ler e analisar o texto da lebre fardada para avaliação dos recursos da imaginação africana.

1.2 Os Djidius de tradição muçulmana

Se todos os povos antigos têm seu Cancioneiro caracterizado e seus trovadores e menestréis como compositores e divulgadores da canção popular, a Guiné-Bissau tem o djidiu que mereceu recentemente um estudo de Ondina Ferreira, professora do Liceu do Sal, em Cabo Verde.
O Djidiu pertence à estrutura cultural tradicional de uma parte significativa da Guiné, que são as comunidades islamizadas. Ele é um divulgador da literatura oral e pode ser caracterizado como um trovador andarilho, apátrida, que anda de terra em terra, exercendo sua missão de poeta e de cantor.
Dentro das tradições dos povos islamizados da África do Norte, atua nos países limítrofes da Guiné desde a Mauritânia até a Gâmbia, Senegal, Mali e Guiné-Konakry. Figura tradicional entre esses povos nas cortes dos régulos, antes mesmo da colonização européia, o djidiu, apesar de apátrida por ofício tem exercido um certo dirigismo e serviço ideológico em sua expressão trovadoresca. Assumiu funções de épico cantando as qualidades do verdadeiro lutador e de moralista denunciando a covardia, a fraqueza e a traição.
Segundo as tradições mandigas, cada rei tinha um djidiu para cantar, elogiar, moralizar e aconselhar. Na tribo, por suas funções constituía um grupo social aparte com uma preparação iniciática feita pelo próprio pai. Histórias contadas pelo progenitor deveriam ser musicadas pelo candidato a djidiu e cantadas depois na casa da família ou no ambiente a que se refere a história para consagração profissional e garantia de sobrevivência. As narrativas levam na boca do djidiu uma intencionalidade ética procurando gerar normas de comportamento moral. O djidiu não deixa de ter, portanto, conforme já acentuou Ondina Ferreira (2), uma dimensão pedagógica. Portador da linguagem mítica e simbólica, ele entra no social cantando lendas e sendo um referencial mítico-profético das exaltações e das calamidades públicas (fome, guerra, devastação, inundações).
“A estruturação da narrativa destinada a recordar uma catástrofe não obedece, regra geral, a um esquema cronológico rigoroso. Contam um episódio importante ocorrido durante esse período com a finalidade de fazer viver a catástrofe na história.
O djidiu discorre sempre em código poético e através de uma linguagem recheada de provérbios e de máximas sentenciosas” (3).
Largamente atuante antes e durante a colonização, passou a exercer seu papel nas áreas rurais em festividades típicas (noivados, casamentos e mortes). Como instrumento musical típico do djidiu serve o korá, espécie de viola muçulmana, mas também são usados o nhanhero (tipo de violino) ou a viola de três cordas, constituída, na parte cava, de oco de cabaça. Nas festas pode haver acompanhamento de tambor e o djidiu pode ser ajudado por coro de moças ou de meninas.
Não há dúvida de que a existência destes poetas trovadores e contadores de histórias musicadas, que às vezes assumem o papel de violeiros repentistas e de maestros e orientadores da programação festiva, dão ao ambiente cultural da Guiné uma característica tradicional que faz lembrar a um tempo os trovadores provençais e galaico-portugueses dos séculos XII, XIII e XIV e por outro lado os trovadores árabes atuantes no sul da Espanha em plena Idade Média (4).

2. O Cancioneiro popular da Guiné-Bissau

Não está feito o levantamento do Cancioneiro Geral da Guiné-Bissau. Mas o pluralismo cultural de seus povos e a úbere tradição cultural que os distingue tem um acervo inédito que dá para os etnógrafos e antropólogos estudiosos da literatura popular.
De momento, apesar da carência de coletâneas e de estudos específicos, acreditamos que teremos a seu tempo abundante material de cantigas sociais, ritmos, canções de louvor e de exaltação, acalantos, cantos sacros usados nas reuniões do fanado, letras usadas nos rituais dos choros, nas consultas aos irãs nas balobas e nas festas e os cantos guerreiros testemunhados pela tradição.

2.1 Cantos populares épicos e cantos guerrilheiros

As tradições tribais do território guineense têm vasto repertório de cantos populares abrangendo as vivências quotidianas e a luta pela sobrevivência das tribos.
Pela forma intensiva e programada como entraram na alma inter-tribal dos guineenses, constituindo-se em vivência profunda e recente, os cantos populares heróicos foram compostos e cantados na frente de luta, nas florestas, nos casamentos e nas bolanhas das áreas libertadas pelos guerrilheiros. Cantos oralizados que passaram a constituir um patrimônio coletivo de consumo geral. São cantos veiculados em língua crioula, com um índice de espontaneidade coloquial muito grande, transmitindo a realidade da guerra, o motivo da luta e a esperança da libertação.
Após a vitória, muitos desses cantos se popularizaram e entraram no repertório festivo da população.
Como amostragem, apresentamos o texto colhido de um narrador oral de Bissau. É o canto de um guerreiro balanta (5):

Crioulo Português
Quim que
Quim cu tem terra? De quem é a terra?
- A nós cu tem terra. - A terra é nossa.
Quim cu na labra? Quem é que está lavrando?
-A nós cu labra. - Nós é que lavramos.
Quim cu na luta? Quem é que luta?
- A nós cu na luta. - Nós é que lutamos.
Luta cusa di quê? Lutar por que?
- Cusa di nó terra. - Lutar pela nossa terra.

Na estrutura expressiva e conteudística, este canto já absorvido pelo consumo de massa, valorizado portanto, é semelhante à amostragem apresentada por Mário de Andrade em 1969 sobre os cantos dos guerrilheiros da Guiné-Bissau em seu livro La poésie africaine d’expression portugaise (6). Entre populares e popularizantes, devemos incluir os cantos guerreiros do poeta José Carlos Schwartz. Suas principais canções estão hoje reunidas no disco “Djiu di Galinha”. Ele é poeta, compositor, cantor e acompanhador de violão. São cantos carregados de chama que tornaram mito jovem seu autor, transformando-se em sensação nas cidades da Guiné. O segredo de José Carlos, conforme ele próprio explicou numa entrevista, está no fato de terem sido utilizados provérbios da linguagem popular acessíveis à compreensão do povo. Suas canções, conservando em parte a mística da luta e da revolução, voltam-se após a independência para as realidades quotidianas dentro de um processo político-cultural que dominava experiencialmente. “Aipili”, “Minino de criação”, “Djiu di Galinha”, “Porque chora o menino”, “É só saudade” e “Dgenabu” são canções imorredoiras com letras, música, voz e acompanhamento sintonizados numa Guiné pervadida por uma realidade central: a travessia da libertação e a sensação de alegria misturada com a expressão vital do amor, do carinho, da saudade, do sofrimento e da fraternidade.

2.2 Canções religiosas

A Guiné-Bissau é uma nação com larga plataforma animista (64%), seguida pela ideologia religiosa islamita que domina cerca de 35% da população. É fácil de entender o volume de cerimônias e de rituais com cânticos religiosos como pano de fundo. Enquanto o Islam celebra suas festas próprias com posturas, leituras e cânticos, o animismo é caracterizado pelo culto aos irãs das florestas e por largas concentrações por ocasião do fanado, do choro, do cansaré, assim como nas festas das sementeiras e das safras e outras. Há pois um cancioneiro e até uma hinódia religiosa, mágica, funérea e agrária muito significativa.

Devido ao caráter fechado da tribo que não permite divulgação de seus segredos mágicos a elementos estranhos, não possuimos amostragem de canções usadas no fanado, nas consultas aos irãs e em festas religiosas iniciáticas típicas.

2.3 Canções tradicionais comuns

Sem possibilidade de analisar todas as vivências intensas dos últimos vinte anos relativas ao processo de autodeterminação e excluído o cancioneiro feiticista e animista de carácter religioso, pelas razões expostas, resta-nos finalmente considerar as canções tradicionais comuns.
As populações da Guiné são alegres e expansivas e a poesia e a música são para elas o recurso de consumo representativo. Em ajuntamentos populares, nos funerais ou no choro, assim como por ocasião de aniversários, casamentos e em festas tradicionais, agrícolas ou comemorativas, a música surge em solos ou em corais, em coreografia ou não, acompanhada normalmente de tambor, de bombolom ou de outros instrumentos conforme a etnia ou a região, mantendo ao vivo um repertório de cancioneiro que merece ser profundamente estudado e conhecido (7).

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NOTAS

(1)São importantes as palavras de Émile Dominique Nourry/ P. Santyves citadas por Luis da Câmara Cascudo em Literatura oral no Brasil, Rio de Janeiro, Livr. José Olympio, 2ª ed. 1978, p. 30: “O Folclore estuda a vida popular, mas na vida civilizada. Não há folclore nos povos onde não se pode distinguir duas culturas, a da classe instruída e a da classe popular”. – Nos povos onde domina apenas o sistema tribal teria lugar a Etnografia, não o Folclore ou demopsicologia.
(2) Ferreira, Ondina, o.c., p. 264b
(3) IDEM, ib. P. 264b – 265ª
(4) Ondina Ferreira salienta a importância do papel dos djidius durante a guerra da independência nas áreas libertadas. Ib. o.c. 267b
(5) Cantado e narrado pelo guineense Macário Marques Perdigão Júnior, estudante do Instituto Rio Branco, em Brasília, 1979.
(6) Os dois cantos aí publicados levam os nomes “Aux Portugais” e “La Résistance” e foram identificados por Macário M. Perdigão Júnior como cantos difundidos em crioulo nas áreas libertadas do tschom nalu, acompanhados por tamborim, ao sul da Guiné.
(7) Entre os balantas, quando um homem, mercê da doença ou da idade se aproxima do dim, reúne os parente e amigos e narra para eles todas as suas façanhas, seus roubos de gado e de canoas, todas as suas valentias em conseguir tudo isso. Em seguida, todos os circunstantes, parentes e amigos da morança fazem um ritual de despedida em que cantam todos coletivamente cantos da própria tribo.
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