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Ensaios-->O LEITOR NA OBRA DE MACHADO DE ASSIS -- 07/09/2007 - 01:05 (João Ferreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

O IMPORTANTE PAPEL DO LEITOR NA CONSTRUÇÃO DA FICÇÃO EM MACHADO DE ASSIS(1839-1908)

João Ferreira
6 de setembro de 2007

Propomo-nos falar hoje da modernidade da técnica narrativa de Machado de Assis. Achamos que a forma mais explícita de a conhecermos é a de conduzirmos uma pesquisa sobre o papel do leitor na dinâmica da construção narrativa, de Machado, verificando em que medida cabe falar de uma antecipação formal prática do escritor brasileiro em relação à moderna estética da recepção. É o que vamos tentar fazer.

1. A Estética da recepção ou a teoria da principalidade do leitor na recepção da obra literária

Se bem lembramos, a estética da recepção (Rezeptionaesthetik) é uma teoria que nasceu na Alemanha, mais propriamente na Universidade de Constanz, junto ao Bodensee, pelos fins da década de 1960 e que passou posteriormente a ser muito cultivada nos Estados Unidos com o nome de Reader-response criticism (resposta crítica do leitor). Essa estética passou a ser conhecida na universidade brasileira no final dos anos 70. Seus autores originais são os alemães Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser. A estética da recepção, em sua essência, defende que “qualquer obra de arte literária só será efetiva, re-criada ou “concretizada”, quando o leitor a legitimar como tal, relegando para plano secundário o trabalho do autor e o próprio texto criado. Para isso, é necessário descobrir, segundo os teóricos, qual o “horizonte de expectativas” que envolve essa obra, pois todos os leitores investem certas expectativas nos textos que lêem em virtude de estarem condicionados por outras leituras já realizadas, sobretudo se pertencerem ao mesmo gênero literário”(Carlos Ceia, Dicionário de Termos Literários).
A julgar por esta súmula doutrinal e crítica, a estética da recepção defende que a obra literária”só será efetiva quando for recriada e concretizada pelo ato de leitura. Pertence portanto ao leitor legitimar o texto através da própria leitura. A obra e o autor passam para segunda linha. Há em cada obra um horizonte de expectativas criadas pelo leitor. Este princípio da estética de recepção fica muito mais claro nas palavras de Stanley Fish, um dos principais representantes do Reader-response criticism nos Estados Unidos: “a literatura é o produto de um modo de ler, de um acordo comunitário acerca daquilo que deverá contar como literatura, que leva os membros da comunidade a prestar um certo tipo de atenção a criarem literatura.” (Is There a Text in This Class?, 1980).
Poderemos nos aperceber, a partir dos pontos básicos desta estética da recepção, que há nela uma relação importante com a dinâmica da narrativa em Machado de Assis. Trata-se de uma relação estreita de autor e de narrador com o leitor. Nesta relação, o leitor aparece como se fosse um personagem vivo a quem são dadas funções de criação, de animação, de narração e de parceria na construção do discurso literário.

2 - O Leitor aparece explicitamente como um parceiro na construção e na dinamização da ficção machadiana

Machado de Assis parece ter percebido com muita antecipação, já no século XIX, que o texto literário só se efetiva de verdade quando é recriado e concretizado ao vivo pelo ato de leitura. Partindo desta perspectiva, sua Literatura passa a ser vista em primeiro plano como “produto de uma forma de leitura”, tal como anunciaram os enunciadores da estética de recepção.
Uma busca cuidadosa em algumas das suas mais famosas obras nos dará a base de que precisamos para entender isto.
Os textos de Dom Casmurro, de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Quincas Borba, de Esaú e Jacó e os Contos Fluminenses serão o corpus textual escolhido para termos uma noção da parceria de Machado com seus leitores.
Para início de conversa, importaria dizer que Machado de Assis utiliza o leitor como parceiro na montagem da estratégia narrativa de sua ficção. Diríamos também que sua parceria consiste em dar funções literárias, discursivas e comportamentais ao leitor. Estas funções são as mais variadas. O leitor é amigo. Consultor. Interlocutor. Convidado. Ajudante. Colaborador. Machado também o interpela e caustica. Faz dele um convidado. Associa-o e instala-o na conversa entre narrador, protagonista ou personagem.
Para entendermos objetivamente a variedade de aspectos desta parceria vale a pena entrar em alguns detalhes. Estes serão encontrados onde a enunciação literária mostra o leitor envolvido em múltiplos lances de diálogo e interpelação. No conjunto, Machado tenta trabalhar a psique do leitor com habilidade, carinho e amizade.
No seu relacionamento com a figura projetada do leitor, Machado ora o escolhe como um interlocutor formal ora o carrega de qualificativos quando quer aprofundar ou colorir o tom da intriga, da descrição, do debate ou do ponto de vista que sustenta sua narrativa. Nas várias situações da cena, ele usa ou o simples nome de leitor, ou então qualifica o interlocutor de “caro leitor”, de “leitora que é minha amiga”, de 'leitora castíssima', 'leitora minha devota', 'fino leitor' (DC 86), etc. Machado sabe fazê-lo com talento, conseguindo regular a aproximação e a qualificação.
Quando quer apelar para a necessidade de reflexão, tenta mover a inteligência e a decisão do leitor. Em tais casos, emprega expressões como “leitor curioso”, “curioso leitor', ou então abre diretamente o jogo e deixa a solução nas mãos do próprio leitor: “Veja o leitor a comparação que melhor lhe quadrar, veja-a e não esteja daí a torcer-me o nariz só porque ainda não chegamos à parte narrativa destas memórias. Lá iremos. Creio que prefere a anedota à reflexão, como os outros leitores, seus confrades e acho que faz muito bem. Pois lá iremos[...]” MPBC, IV. Há ocasiões em que deixa a intriga correr e deixa a batata quente estourar na mão do leitor. É quando, em tom definitivo, conclui a narrativa de um episódio e diz: “decida o leitor.' (MPBC, II). Ou quando oferece o tempo para amadurecimento da metodologia de busca: “deixemos ao leitor o tempo de decifrar este mistério” MPBC LXXXVI.
Como bom artista, mostra que sabe conter a intempestiva curiosidade de leitores quando se dirige à “impaciente leitora”no Quincas Borba(Quincas Borba CXXXVIII). Sabe dar uma resposta adequada ao “ curioso leitor”( MPBC LXX) e ao “leitor curioso” (Quincas XXXI). Sabe dirigir-se ao “leitor conspícuo”, pessoa importante que zela a moral social (Miss Dollar, CF 16). Para o leitor apressadinho que está querendo dar ao livro o ritmo de sua pressa, tem uma sentença bem racional. A ele confidencia que “O maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer e o livro anda devagar.” MPBC LXXI.

Em Miss Dollar, conto fluminense, a um “Leitor que se julga mais esperto' (MD/CF 04), Machado doma a pretensão da esperteza, mostrando ao espertalhão os variados caminhos que há para decifrar uma proposição. À pergunta sobre quem é Miss Dollar, diz: “ A Miss Dollar do romance não é a menina romântica, nem a mulher robusta, nem a velha literata, nem a brasileira rica. Falha desta vez a proverbial perspicácia dos leitores. Miss Dollar é uma cadelinha galga” (MD/CF, 04). Na escolha de soluções de enredo, Machado ausculta por vezes o possível sentimento ou a opinião de um determinado leitor, como nesta passagem: “Algum leitor conspícuo desejaria antes que Mendonça não fosse tão assíduo na casa de uma senhora exposta às calúnias do mundo. Pensou nisso o médico e consolou a consciência com a presença de um indivíduo, até aqui não nomeado por motivo de sua nulidade e que era nada menos que o filho da senhora D. Antônia”[...]” MD/CF 16/17.
O narrador se apresenta como uma omnímoda consciência atenta ao discurso, aos pensamentos secretos, às objeções e aos murmúrios do pensamento e da moral social. Uma consciência de tal maneira aguda que escuta as mais simples objeções dos leitores.”Ouço aqui uma objeção do leitor” MPBC XLIX
Mas há no meio de tudo um jogo mútuo que se inclina ora para um lado ora para o outro, ora consegue até o equilíbrio de uma beleza estética que interessa a todos. Há ocasiões em que o narrador prepara surpresas na história que são hipóteses que o leitor menos espera (MPBC LV). Isto demonstra o enorme leque de alternativas que o autor Machado de Assis oferece na ficção ao caracterizar personagens ou narrar ações nem sempre pensadas ou perspectivadas pelo leitor. Na ficção machadiana, o narrador também se encarrega de surpreender o leitor com a maneira franca com que por vezes expõe atributos do protagonista, como se vê nesta passagem de Memórias Póstumas: “Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade;advirta que a franqueza é a primeira virtude de um defunto” MPBC XXIV.
Pelas páginas de Machado há uma galeria de criaturas diferentes e circulantes pelo espaço narrativo. De todos os tipos! Circulam “leitores pacatos” (MPBC XCIX), pacíficos, tranquilões sem maiores curiosidades. Mas há também 'leitores superficiais' (MD/CF 06) e “leitores obtusos” (MPBC XLIX; DC 199). Para os obtusos, o horizonte do entendimento nasceu fechado e não há muito o que abrir para eles: “mas há leitores tão obtusos, que nada entendem, se lhes não relata tudo e o resto” (DC cap.109). Não pode o narrador atrasar seu tempo narrativo pela obtusidade que insiste em estancar o fluxo da história. Machado os denuncia, dirigindo-se a eles, sem alterar o método da narração. Na galeria de tipos há leitoras que prezam naturalmente a escrita de Machado. São as leitoras “minhas devotas” (DC 55) e “minhas amigas” (DC 214), lembradas no Dom Casmurro e também as leitoras castíssimas (DC 125), aquelas a quem o narrador promete narrar a matéria vertente “em termos honestos de nossa língua, que – segundo Machado - é casta para os castos” DC 125. Também encontramos o tratamento cerimonioso nos termos de “dona leitora” em Dom Casmurro (DC 135): “Tudo isto é obscuro, dona leitora, mas a culpa é do vosso sexo, que perturbava a adolescência de um pobre seminarista” (DC cap. 63). Mais raro mas é encontrável também o trato formal com o leitor, quando Machado usa, no vocativo: “Senhores” (DC 123). Também há uma espécie de “vade retro, Satanás” para o leitor de maus augúrios, o “piloto de má morte” lembrado em Dom Casmurro (DC112). Os sentimentos do leitor são previstos ou são imaginados, como se depreende de muitas passagens. O narrador machadiano quer que a liberdade do leitor permaneça soberana no ato de leitura. Ele próprio incita o leitor à dúvida, ao protesto e até à rebeldia. “Abane a cabeça, leitor – diz no Dom Casmurro. Faça todos os gestos de incredulidade. Chegue a deitar fora este livro, se o tédio já não o obrigou a isso antes. Tudo é possível. Mas, se o não fez antes e só agora, fio que torne a pegar do livro e que o abra na mesma página, sem crer por isso na veracidade do autor. Todavia não há nada mais exato. Foi assim mesmo que Capitu falou, com tais palavras e maneiras. Falou do primeiro filho como se fosse a primeira boneca” (DC cap. 45). No que toca a sentimentos há outros textos que mostram a dinâmica do respeito do autor e do narrador para com o leitor. Como esta passagem de Memórias Póstumas : “Talvez aches esta frase incompreensível” (MPBC CXXXVIII). “Talvez espante ao leitor a franqueza como lhe exponho e realço a minha vida”(MPBC XXIV. “Sinto que o leitor estremeceu” (MPBC XCVII). Mas o lance mais extraordinário que nos mostra como o leitor é concriador e participante ativo nos destinos e nas linhas da narração é uma passagem do Dom Casmurro que aparece numa altura em que o clima dramático nas relações entre Betinho e Capitu estava chegando ao auge, na altura em que o pequeno Ezequiel já mostrava os traços físicos de Escobar. Machado no brevíssimo capítulo 119, que tem apenas três linhas e meia e que intitula: “Não faça isso, querida”, mostra abertamente a predominância dinâmica do leitor. Reproduzimos o texto por ser fundamental para alicerçar a tese da principalidade do leitor no desenho e progressão da narrativa, tese que estamos defendendo. Eis o texto: “A leitora que é minha amiga e abriu este livro com o fim de descansar da cavatina de ontem para a valsa de hoje, quer fechá-lo às pressas, ao ver que beiramos um abismo! Não faça isso, querida; eu mudo de rumo.” (DC 214). Faz parte de uma estratégia narrativa este tipo de lance, sabemos disso. Machado marca no leitor a consciência do momento dramático a que a narrativa chegou. Há tensões que beiram a dramaticidade de vários destinos dentro do triângulo amoroso Bentinho, Capitu, e Escobar. O narrador tem consciência disso e sabe que há leitores burgueses cujos sentimentos alienados não quadram com o mergulho numa situação dramática destas. Atento, Machado mostra que não precisa de fechar o livro ás pressas. Ele pode mudar de rumo”. Tal receita mostra como o sentimento ou o comportamento do leitor intervém na dinâmica do tempo da história e também no fluxo narrativo. Este texto reveste-se de importância fundamental. No mesmo plano está a passagem de Dom Casmurro quando aconselha Sancha a não ler este livro ou a interromper ali mesmo no capítulo 129, já depois de Escobar ter morrido afogado e quando as marcas de Escobar começam a ficar nítidas em Ezequiel e Capitu começa a dar sinais do que representava Escobar no coração dela: “Dona Sancha peço-lhe que não leia este livro; ou, se o houver lido até aqui, abandone o resto. Basta fechá-lo; melhor será queimá-lo, para lhe não tentação e abri-lo outra vez.”(DC cap.129, p.223). São intervenções do narrador sobre o comportamento e emoções do próprio leitor, tentando dar consciência sobre a natureza da história. É sensível ao possível cansaço do leitor na leitura da história e por isso toma providências para que isso não aconteça: “ “Pois sejamos felizes de uma vez, antes que o leitor pegue em si, morto de esperar e vá espairecer a outra parte. Casemo-nos” . DC cap. 101).


Não foi à toa, portanto, que Machado um dia se dirigiu à “alma do leitor”.
Quando se ocupa com a construção da psicologia de um personagem, Machado acha importante mostrar aos leitores que gosta de construir figuras dentro da normalidade: “O leitor superficial conclui daqui que o nosso Mendonça era um homem excêntrico. Não era. Mendonça era um homem como os outros; gostava de cães como outros gostavam de flores”(Miss Dollar, Contos Fluminenses, p.6).

3. Espaço ocupado pelo leitor na narrativa de Machado de Assis. Dados conclusivos


Pela análise textual tentada neste artigo, já poderemos ter uma idéia básica do papel do leitor na narrativa machadiana. Para Machado, o leitor é gente. É um ser com inteligência, emoções, dúvidas, vontade, temperamento, percepção. Perspicaz, Machado entendeu que associá-lo a sua tarefa narrativa seria um resolução que tornaria triunfante sua escrita. Na verdade, saber contar uma história com arte e habilidade associando e comprometendo a alma e as emoções do próprio leitor, era todo o ofício do escritor moderno. Foi o que fez. Só precisou de descobrir a alma do leitor. Daí em diante foi mais fácil: entrou em seu potencial leitor o caro leitor, o amado leitor, o curioso leitor, o obtuso leitor, o perspicaz leitor. Associou-os à escrita como companheiros e parceiros. Adivinhou que seus livros apenas seriam livros verdadeiros no próprio ato de leitura. Assim, com uma visão antecipativa, Machado de Assis praticou na escrita o que os teóricos da escola de Constança vieram sublinhar depois dos meados do século XX:
Que a estética da recepção é o nó central da análise da obra literária. Que o leitor é a alma da dinâmica ficcional, e também a alma da percepção da obra literária como fragmento social. E que é ele, leitor, que dá vida aos signos silenciosos e impressos que as editoras entregam ao público e que é ele o animador que recria esses signos em muitas direções.


João Ferreira
Brasília 6 de setembro de 200
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