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Contos-->Fome de amar -- 01/01/2003 - 22:19 (Lorde Kalidus) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O sol já começou a trabalhar com mais ardor, roubando parte da cena da primavera, como já é de se esperar que aconteça na terra que batizou. Deixando sua marca na noite que ainda boceja preguiçosa antes de se levantar, o astro-rei continua a manter dentro dos armários todos as vestimentas mais pesadas, sendo abençoado por uns e odiado por outros.
Daniel continua dividindo sua concentração entre o copo em sua mesa e o caderno, cujas linhas refletem um sangue que, embora não derramado de si, é diariamente bebido pela angústia e enfraquece a esperança mais batalhadora. A aula acabou mais cedo hoje, e ele logo irá para casa, terminar mais uma noite buscando amortecer os sentidos assistindo o lixo que respira dentro de um tubo de imagens e presenteia o povo com sua dose diária de alienação, sem a qual não poderiam viver.
Quando a caneta percorre o papel, sua mente é o palco onde o mal discursa e expressa toda sua fome. Políticos discursam sobre proteger as crianças que ajudam a matar, religião e preconceito geram guerras que ninguém pediu e impérios há muito caídos ressurgem na pele de civilizações atuais que se auto-nomeiam protetores do mundo. O lixo que recolhido pelos lixeiros volta a feder nos discursos dos líderes pagos por nós, é isso que o sangue de Daniel picha sobre o papel. Ele não lamenta as vítimas do desabamento daquele edifício que não era mais do que o símbolo daqueles que se alimentam da fome alheia, e segue seus dias rimando para mostrar aquilo que tomou sua mente como lar.
Ele se move para retirar a carteira do bolso, lembrando-se que a cerveja já foi paga, e fecha seu parceiro de idéias, carregando-o e desejando que fosse outro braço sob o seu. Atravessar as ruas, que são veias enrijecidas dentro do corpo moribundo que é a cidade, já se tornou uma rotina, assim como despistar os carros que o encaram com olhos de zumbi. Estes detalhes já não distraem sua mente sequer por um segundo e sempre a levam de encontro a solidão que encontrou um lar em seu peito. Ele respira fumaça enquanto seus pés castigam o asfalto da paulista, isto o faz lembrar que a lei desta selva é sempre a de morrer ao mesmo tempo em que se pisa em alguém. Embora já tenha aprendido que deve obedecer estes preceitos, isto ainda o deprime terrivelmente.
Felizmente, o veneno cuspido no ar pelos carros não o impede de ver as estrelas que sorriem milhões de quilômetros acima. Daniel se pergunta se elas não estariam sorrindo por estarem longe desta gente que não se respeita, do homem cuja inveja de Deus o obriga a destruir o mundo que já foi um paraíso e que foi entregue às pornografias infantis que o ser humano tenta disfarçar, mas que já transformou em parte do dia a dia de suas almas condenadas.
Ele caminha pela imensa avenida, que parece ser pequena para afastá-lo da dor que percorre cada centímetro de suas calçadas. O vento, fraco demais para levá-lo para longe, faz com que ele se lembre da Bíblia e das palavras de um amigo, que um dia pregou o amor ao homem e foi traído por ele. Soprando em seu rosto, ele pensa na longa estrada que deverá trilhar, entre arrependimento e redenção, até que possa finalmente ser libertado do inferno humano e encontrar aquele que é realmente justo e sábio. Antes que isso ocorra, o simples toque de alguém humano e que dividisse com ele os momentos temporários e eternos neste mundo seriam o bastante.
A mente de Daniel permanece alheia àquilo que ocorre ao seu redor, até a hora em que o mundo decide interromper seu momento de reflexão; a garrafa de cerveja não tem tempo de lamentar o veneno que seu interior carregava antes que a violência do arremesso e a parede decretem seu fim. Daniel, embora com os sentidos amortecidos, consegue evitar que seu rosto seja atingido e, logo em seguida, volta sua atenção para o que acontece ao redor, vendo a multidão enfurecida que, de repente, parece ter tido um ataque de sinceridade e começou a revelar sua natureza verdadeira e violenta.
As camisetas e gorros grotescos logo revelam o motivo da briga, que parece não se contentar simplesmente aos gramados e tem que, seja por falta de auto estima ou para disfarçar a própria impotência de quem a iniciou, leva-la a outros que não buscam problemas. Seja como for, o escritor não pode deixar de demonstrar seu desprezo pela cena, embora se reserve a mostrar isso com a expressão de seu rosto.
A destruição parece não ter alvo definido, logo atingindo também os pedestres que passam pela rua. Daniel permanece estático na esquina da Brigadeiro Luís Antônio, quando uma corrida pela aniquilação começa. Lojas gritam através de alarmes assim que tijolos e pedras as adentram sem permissão, e as pernas do escritor começam a trabalhar de acordo com o ritmo dos protagonistas da tragédia. A corrida prossegue, e o vento frio contém o suor em seu rosto, até a chegada da rua treze de maio, quando o ritmo finalmente diminui.
Os carros buzinam enquanto os torcedores furiosos atravessam a rua, alguns não conseguindo escapar de serem atingidos. Latas de lixo são agitadas e vomitam seus conteúdos sobre as ruas, enquanto paredes até então brancas são maculadas por tinta e inscrições ofensivas. Daniel finalmente se reserva um minuto para pensar no que fazer, sabendo que este tempo será limitado, pois os vândalos podem voltar sua atenção para ele a qualquer minuto. Sendo assim, ele volta os olhos para seu próprio cansaço e para uma casa abandonada na rua, usando um último resquício de fôlego para arrombar a porta e entrar, fechando-se como pode dentro do sobrado abandonado. Desta vez não há tempo para pensar em como aquela arquitetura apodrecida poderia estar sendo usada para abrigar outras famílias, tudo que Daniel pode fazer é se abrigar, e esperar até que a tempestade do lado de fora passe, para que ele possa sair e retornar a seu lar.
Logo, crendo em sua própria segurança e entregue ao cansaço, ele retira o sobretudo e se senta sobre o sofá, após remover parte de sua poeira, passando então a buscar o ar poluído e maravilhoso que seus pulmões tanto reclamam. Os olhos se fecham para a escuridão da casa, bem como para os móveis empoeirados e se abrem para a visão do senhor do sono, que logo reclama o corpo do jovem poeta e o arremessa em um vale de torpor e descanso.
As trevas reclamam durante horas a posse de Daniel, ate que passam a se afastar, debilitadas pela luz que anuncia sua chegada assim que ele abre os olhos. Tão logo estes se acostumem a claridade ele passa a notar a forma escultural que vestindo a camisola branca que se move e termina de colocar os pratos sobre a mesa. O cheiro de pão quente e manteiga também não passam despercebidos.
-Que bom, diz ela, já esta acordado. Eu não tinha certeza se devia te tirar do sono, mas agora que acordou, tudo fica mais fácil. – Ele ainda se pergunta o que aconteceu naquela casa em ruínas onde pensou ter entrado e como tudo pode ter mudado em tão pouco tempo, mas, face a lembrança do momento de pânico e correria, ele logo se esquece de tudo, lembrando ainda que pode ter sido levado para outra casa da vizinhança por um vizinho que possivelmente tivesse visto o ocorrido. O odor da comida também o ajuda a diminuir a curiosidade.
- Nossa, diz ele, se levantando, você viu o escândalo que tava ai fora? Pensei que aquela cambada fosse me matar, eu dei sorte de conseguir me esconder.
- Eu vi tudo... Mas, seja como for, fiquei feliz por te encontrar ai deitado no meu sofá, estava me sentindo muito sozinha. Esta com fome?
- Bom, eu dificilmente diria não pra uma mesa dessas, diz ele, sorrindo e se aproximando do banquete. Posso?
- A vontade. O meu nome e Juliete.
- Eu me chamo Daniel. Que casa bonita, não deu pra reparar direito quando entrei aqui. Olha, me desculpa por ter arrombado a porta. Eu tava precisando de um lugar pra me esconder, mas eu juro que pago tudo.
- Não se preocupe com a porta, esta tudo em ordem.
- Como, eu tive que... – Daniel quase engasga e fica sem voz ao olhar a porta, vendo que esta continua no lugar, com a fechadura intacta, como se jamais tivesse sido violada por alguém com seu porte físico.
- Caramba, tem algum chaveiro morando aqui?
- Como eu disse, você não tem que se preocupar com nada. Esta tudo bem.
- Bom, já que você me abrigou e ta me dando comida, me fala um pouco de você. O que você faz?
- Eu era artista plástica... Mas não mexo mais com arte. Na verdade, ando meio parada, não tenho trabalhado. Resolvi dar um tempo com tudo, estava deprimida, sozinha, embora a dor fosse a minha principal fonte de trabalho.
- Sei... Precisa sentir uma certa angustia pra trabalhar, não?
- As vezes acho que a angustia e a dor são duas lésbicas que se amam muito, e que formam o único relacionamento homossexual do qual pode nascer alguma coisa, que e a arte. Mas e diferente de um nascimento humano, pois não tem hora certa pra ocorrer.
- Eu gosto de escrever... Mas sempre achei que a angustia e a dor fossem uma coisa so, e que ambas fossem um demônio de mil caras.
- Talvez ambas as definições estejam certas. A verdade e que a dor tem sempre o mesmo efeito, independente de como se manifesta ou e vista por aqueles que a sentem.
- Então, você e solteira? Mora sozinha aqui?
- Não consegui encontrar um homem que tivesse a alma ou o rosto do amor, e então chegou um dia que resolvi pedir a conta, pois a vida era um emprego muito mau remunerado, no qual você praticamente pagava pra trabalhar. – Daniel se arrepia, estranhando o modo de falar da moça, sentindo-se como se acabasse de olhar dentro de uma sepultura, ao mesmo tempo em que seu caminho para o paraíso parecia estar sendo encontrado.
- O que você quer dizer com “pediu a conta”? Quer dizer que você desistiu de viver ou parou com seu trabalho? – Ela não responde, bebendo o café enquanto encara o escritor. Ele nota calor nos olhos verdes da moça, ao mesmo tempo que a sensação de momentos atrás parece voltar. Ela coloca a xícara na mesa, e, limpando a boca, torna a falar:
- Esta gostando da comida?
- Ta uma delicia... Gozado, você parece tão misteriosa, diferente... Sei la, tem alguma coisa no ar que eu nunca senti antes.
- Deve ser porque nos dois somos muito parecidos.
- Somos? Como assim? – Juliete coloca os cotovelos sobre a mesa, olhando fundo nos olhos de Daniel:
- Como e a sua vida, Daniel? Você tem passado bons momentos com quem você ama? Tem sentido braços calorosos em torno de você?
- Não entendi, diz ele, um pouco surpreso pela pergunta da moça.
- Você entendeu... Você, alma torturada, nunca ficou triste porque acordou no dia seguinte e não tinha ninguém do seu lado, ou por não ter nenhum número especial na sua agenda? – Daniel enche os pulmões de ar, sentindo um misto de espanto e contentamento:
- Cara, é difícil achar gente tão espontânea hoje em dia... Você pergunta as coisas com muita facilidade, se expressa sem problema nenhum... A maioria das pessoas simplesmente esconde o que sente, tem medo de se expor.
- Eu não tenho medo ou tempo de sentir algo assim... Você acredita que a vida pode acabar depressa, e que a gente tem que aproveitar cada momento com intensidade, por que nunca se sabe qual vai ser o último?
- Claro que sim...
- Eu também. Acho que em certos casos a vergonha não passa de um artifício do homem, usado por pessoas que têm medo de se entregar àquilo que realmente sentem para não serem feridas não por outros, mas por aquilo que têm dentro de si e têm medo que os outros também tenham.
- Sei... – O silêncio entra na sala sem bater na porta, tomando a atenção dos dois do barulho de um ou outro carro que passa pela rua. Juliete segura a mão de Daniel, com uma carícia que amaciaria uma pedra, e com um sorriso igualmente poderoso. Finalmente ela se levanta, e o silêncio é calado por um segundo, quando ela chama pelo escritor:
- Vem. – Três únicas letras que o obrigam a se erguer e segui-la, rumo aos quartos no andar superior. Juliete entra um dos quartos e a lua batiza a cama através da janela. Ela sorri, seguida por ele, e se aproxima, tocando seu peito e abraçando parcialmente seu corpo:
- Olha só a lua em cima da cama, parece tão convidativa... Parece até que quer nos mostrar que esse lugar foi feito pra nós, assim como o momento.
- Bom... Então por que a gente não aproveita, diz ele sorrindo. No mesmo instante, a lua se torna cúmplice do sol que nasce no rosto de Juliete, pouco antes dos dois livrarem um ao outro dos tecidos agora desconfortáveis que cobrem suas carcaças.
As horas que se passam são sentidas como minutos apressados para os dois; Daniel invade o corpo de sua amada sem perdão ou misericórdia, e ela o puxa de encontro a si com fome e desejo, cruzando as pernas em seu redor e gemendo seu prazer enquanto ele a fere. Amor e selvageria caminham lado a lado, dando luz ao fogo que arde sem cessar. Eles pouco se conhecem, exceto pelo pouco tempo em que dividiram a mesma mesa. Esse pensamento logo se extingue, assim como a noite, e o sono permanece afastado, esquecido pelos amantes.
- Incrível...
- O quê, pergunta ela.
- Eu já tive namoradas, amantes, mas é a primeira vez que uma noite minha acaba assim.
- Nunca acabou na cama com alguém que você mal conhecia?
- Claro que já, mas não desse jeito... Eu entrei na sua casa, e aí então...
- Tudo bem, isso não é importante. A noite foi boa, a gente teve tudo que queria, ninguém se machucou e todo mundo fica contente. É isso que conta.
- Cara, eu queria ter te encontrado alguns anos atrás... quem sabe a minha vida não fosse tão deprimente.
- Eu sei o que você quer dizer. – Súbito, Juliete se cala.
- O que foi, pergunta Daniel, notando o silêncio triste da moça.
- Eu tenho que te pedir uma coisa... Mas quero que você me prometa que não vai ficar brabo e que também não pense que eu to te descartando.
- Tudo bem, pode pedir.
- Sabia que você ia entender, diz ela sorrindo por um momento. Eu preciso que você vá embora exatamente às cinco da manhã. Tem algo que eu preciso fazer depois disso.
- O que é?
- É difícil de te explicar... Mas eu juro que um dia eu entro em contato com você. Quero muito te ver de novo. Eu te conto, mas não hoje. Tudo bem?
- Bom... Tudo bem. De alguma forma eu sinto que dá pra confiar em você.
- Eu sei, amor, você é um doce. – Os dois se abraçam e se beijam como se fosse a última vez, embora sintam que isto está longe de acontecer. Em seguida, Daniel volta a se vestir, descendo as escadas seguido por Juliete. Os lábios dos dois dançam juntos pela última vez antes que ele retorne à calçada:
- Tchau, amor, diz ela. A gente se vê.
- Quer meu telefone?
- Não precisa... Eu posso te achar.
- Ah, ta, ele responde, estranhando a afirmação da moça, mas concordando como se soubesse que há verdade em suas palavras. Tchau.
- Tchau, diz ela, acenando com um olhar quase infantil. Ele se afasta, logo dobrando a esquina e, tão logo o perde de vista, ela torna a entrar na casa. As trevas se tornam mais escuras e ela se senta ao sofá, enquanto a escuridão parece crescer ao seu redor. Ela então se deita, e seus olhos se fecham, sabendo que irá demorar até que tornem a se abrir.
- Do lado de fora, Daniel cumprimenta o sol preguiçoso, que se ergue aos poucos, mostrando sutilmente à cidade que nunca dorme que chegou o momento de se erguerem para um novo dia. Ele não nota o alvorecer, o brilho disposto do sol, que é um contraste com as ruas sujas e mortas, mantendo sua atenção na jovem que acabou de deixar e que promete marcar seus próximos dias.
- Dias nascem e morrem, e ele continua esperando, buscando nos afazeres costumeiros algo que desvie sua atenção da bem nutrida saudade. A caneta e o papel continuam a trabalhar arduamente, mas na sala de aula o professor se torna invisível. O sono custa a fazer seu trabalho quando as estrelas se tornam visíveis e, na janela, Daniel observa um certo lado da cidade, onde, dias atrás, pareceu ter visto o paraíso de perto.
- Ela voltaria, pensava ele. Não era o tipo de mulher a quem se dizia adeus quando o dia amanhecesse, isso também o levava a não voltar mais a sua casa, conforme ela havia pedido. Ele ainda não entende o significado de suas palavras quando os dois se despediram, mas isso parece soar de certa maneira irrelevante.
- O dia seguinte também não traz grandes novidade, exceto pelo fato de que seu coração e a saudade parecem ter finalmente chegado a um consenso, tendo o primeiro se conformado e a segunda se acalmado. À noite, o álcool e a cevada percorrem novamente a garganta do estudante, sendo novamente sua única companhia até poucos minutos depois do segundo copo.
- - Oi, esse lugar ta ocupado? – A voz é macia como veludo, tão macia quanto a que ouviu dias atrás, quando esteve entre os lençóis com aquela que jurou jamais esquecer enquanto entrasse ar em seus pulmões. E, ao erguer sua cabeça, ele percebe que não esperou em vão.
- - não, não é possível, você ta viva!
- - Eu disse que encontrava você, não disse? Olha eu aqui, diz ela, sorrindo e se sentando. Como você está?
- - Tava me perguntando quando ia te ver de novo. E aí, o que você anda fazendo?
- - Não muito. Trabalhando, como sempre, mas não como artista, numa chance de te ver de novo. E você?
- - O de sempre, estudo e trabalho. Sem grandes novidades.
- - E sempre escrevendo, não? São contos ou poemas?
- - um pouco de cada. Na verdade, acho que minha musa anda me traindo. Já faz tempo que eu não escrevo nada que preste. Sabe, acho que já cansei de ver meus sentimentos só no papel.
- - Como assim?
- - Eu falo sobre sentimentos, sobre política e religião, mas isso não muda nada. Muitas vezes crio estórias sobre como gostaria que a realidade fosse e não é, mas e daí? Eu continuo preso num mundo sujo sem saber se tem algo melhor me esperando quando eu sair daqui.
- - Acredite, pode haver coisa melhor depois da vida... Mas pode haver coisas horríveis também. Tudo depende de como você viver enquanto estiver aqui.
- - Você é religiosa? – Daniel sente algo se alterar na moça, embora suas feições permaneçam as mesmas, quando ela responde:
- - Digamos que eu já vi coisas muito estranhas e nada do que acontece nesse mundo me assusta. Existe coisa muito ruim do outro lado, bem além da vida, por isso é bom que a gente faça o melhor possível enquanto está aqui. Vai por mim, diz ela, em seguida tomando um gole.
- - Você não tem medo de beber a cerveja na garrafa? Vai saber o que pode ter passado por cima dela...
- - Não esquenta, seja o que for, não vai me fazer mal. Não tem mais como. Mas não foi pra falar da minha saúde que eu te procurei.
- - Na verdade, eu queria te perguntar uma coisa...
- - Pode falar.
- - Aquele dia que você me pediu pra sair cedo da sua casa... O que você ia fazer?
Ela bebe mais um gole, e então responde:
- Isso não é importante, gato... Assim como não é importante como te encontrei, que ia ser sua próxima pergunta.
- Caramba, você não perde uma. Eu não vou mentir, você me deixa confuso, ao mesmo tempo em que me fascina.
- Mesmo? Por quê?
- Porque você divide comigo tudo que você tem de mais íntimo, mas, ao mesmo tempo, parece estar escondendo alguma coisa de mim. O mais engraçado é que eu não consigo me irritar com isso.
- Claro que não... A gente tem coisa melhor pra fazer do que se irritar.
- É, temos, sim... Posso te convidar pra ir comigo até em casa?
- Claro, paga a sua cerveja e vamos lá. – Daniel sorri, acenando para o garçom, que vem logo em seguida. Em pouco tempo os dois estão caminhando em meio à névoa que divide a noite com as trevas.
- Cara,eu to cansado... O trabalho, o estudo, ta tudo tão maçante, eu não vejo a hora de terminar com isso.
- Não gosta do seu trabalho?
- Gosto, mas... A profissão de professor é muito ingrata. Quero ver se consigo entrar no funcionalismo público e conseguir transferência pra uma cidade no litoral. Já morei lá, e sinto falta. Vim pra Sp pra estudar e quero voltar pra lá antes que perca o pouco de sanidade que me sobrou.
- Não vai sentir falta da cidade grande?
- Falta do quê? Do ar poluído, dessa gente feia e massificada, do trânsito? Não mesmo, o que eu mais quero é sumir daqui.
- Eu entendo o que você quer dizer. Gosto muito de praia, interior, mas a cidade grande me deixa doente.
Eles caminham pela ponte sobre a avenida 23 de maio, não demorando a chegar ao começo da Paulista, onde avistam um prédio antigo, mas nem por isso confortável. Minutos depois, já estão entrando no elevador.
- Então você mora aqui? O aluguel é caro?
- Não pago aluguel, o apartamento é meu. Mas tive que economizar uma grana preta pra conseguir dar a entrada. Levou tempo pra eu conseguir comprar mas, pelo menos, to morando no que é meu.
- Isso é verdade. Mora sozinho?
- Com certeza, estou muito bem acompanhado por mim mesmo.
- Espero que não se importe que hoje eu te faça companhia, diz ela, sorrindo.
- De jeito nenhum. – Daniel responde, puxando-a de encontro a si. Ela não oferece qualquer resistência, e, nos minutos seguintes, a saudade encontra fim lento e doloroso, pisada pelas carícias dos dois.
Eles não notam o tempo morrer rapidamente enquanto chegam ao quarto e suas roupas parecem desaparecer por vontade própria em questão de momentos. Apenas a fome permanece, reforçando o desejo de ambos de dividir suor e saliva por horas tão curtas quanto eternas.
Os dias que passaram separados agora não passam de um sonho ruim. Daniel continua sem conhecer a mulher com quem divide o que tem de mais seu e sequer sabe o que o futuro reserva para os dois; tudo que sabe é que está diante daquilo que mais quer e que, provavelmente, é aquilo que ele sempre quis.
- Fim do primeiro tempo, pergunta ela, sorrindo, e ajeitando-se ao lado do amante.
- Pois é, por mais faminto que um homem seja ele não pode se fartar de uma vez só.
- Pelo modo como você fala, parece que você tem muita vontade de se fartar.
- Tenho... Isso porque minha alma passava fome antes de você aparecer.
- Como assim?
- Quando eu era adolescente, tive uns rolos, umas namoradas, mas nada que durasse muito ou que eu sentisse que pudesse gerar algo bom, durável. Acho que os contos e os poemas tiveram sua culpa.
- Como foi isso?
- As pessoas não entendem. Em especial as mulheres; parece que um cara que elogie e compare elas com o sol ou com as flores não é visto como algo bom; elas querem os caras que dêem trabalho, que as tratem mal... Parece que um cara não tem graça pra maioria das mulheres se ele não for do tipo que prefere sair com os amigos a ficar com ela. É uma coisa engraçada, parece que o ser humano prefere sempre aquilo que traz mais sofrimento.
- Como você chegou a essa conclusão?
- Eu sou muito religioso, diz ele, acariciando o cabelo de Juliette, com a cabeça dela de encontro a seu peito. Desde os primórdios, o ser humano sempre preferiu o caminho do mal ao do bem, ele nunca se satisfaz a menos que tenha causado algum tipo de problema. Sabe a história de Adão e Eva? Deus colocou os dois num paraíso e disse que eles poderiam comer de toda a fruta do jardim, mas eles escolheram justamente aquela que não podiam comer. Muita gente diz que a culpa foi do demônio, mas tudo que ele fez foi oferecer a maçã, eles podiam ter dito não.
- Foi a partir disso que você concluiu que o ser humano prefere fazer o mal?
- Veja bem; o demônio disse que Deus não queria que eles comessem da fruta porque, se o fizessem, iam passar a ter o poder de Deus. Hoje em dia tem muitos casos assim. O homem continua na busca por poder e, no meio do caminho, causa um desastre em cima do outro, porque não consegue resistir a tentação de ser um deus.
- Você tem um jeito legal de ver as coisas... Sempre foi assim?
- Nem tanto. Eu não tinha tanta visão quando era mais jovem, não questionava tanto, embora soubesse que alguma coisa estava fora da ordem. Então fui percebendo que precisava ler mais, me informar mais, e comecei a desenvolver meu próprio ponto de vista. Fiquei enojado com o ser humano, e hoje sou um cara completamente isolado do resto do mundo. Não tenho muitos amigos, deixei minha família quando comecei a trabalhar e passei um tempo procurando por alguém que me completasse, e que parece ser você.
- Eu posso dizer o mesmo de você, gato... Embora hajam coisas que você ainda não sabe sobre mim, e que eu também não sei como te contar.
- Quando você sentir que é hora, fique à vontade, diz ele, abraçando-a forte. O abraço logo se torna um beijo, o beijo toma proporções maiores e, logo, os dois tornam a explorar os corpos um do outro.
A madrugada logo chega, trazendo consigo a exaustão. Embora Daniel desejasse continuar resgatando os dias que perdeu afastado de sua musa, o sono passa a coagi-lo insistentemente, não demorando a tragá-lo. Juliete permanece desperta, saboreando o calor do ato recente encostada no peito do estudante, como se fosse a última vez.
Ela se senta sobre a cama e observa o amante adormecido, com o semblante triste iluminado pelo luar que entra pela janela. Ela respira fundo, embora tenha perdido a necessidade de fazê-lo há um certo tempo, e sorri leve e rapidamente, lutando contra uma lágrima que luta para nascer. Tocando o rosto de Daniel uma vez mais, ela se levanta da cama e sai do quarto, devagar, tentando não olhar para trás.
Chegando à sala de estar, ela caminha em direção à janela e a lua a ilumina uma vez mais. Olhando para o céu como se este a esperasse, ela abre a janela, sem se assustar ao ver a distância que a separa do chão. A visão a faz sorrir e lembrar que isso não precisa assustá-la mais. Então ela torna a olhar para cima, e uma neblina recém-surgida entra pela janela, não demorando a cobrir seu corpo nu. Ela engole seco e, mais uma vez, experimenta o medo como jamais experimentou antes ao olhar para o quarto e ver Daniel, vendo que ambos a distância entre os dois vai voltar a existir.
O sábado é apresentado às últimas horas da manhã quando Daniel desperta e volta a sentir o efeito do cansaço. Mas a sensação é quase esquecida quando ele se ergue e começa a caminhar em direção à sala de estar, não encontrando as roupas de Juliette, o que o leva a crer que ela se foi mais uma vez. Isso não lhe faria mal se ele conseguisse calar uma voz em sua mente que parece insistir em dizer que ela não vai mais voltar.
Ao mesmo tempo, ele caminha em direção à porta para trancá-la, amaldiçoando a amada por ter partido sem se despedir. Súbito, ao olhar a fechadura, ele se certifica que todas as trancas da porta ainda estão fechadas e que a chave ainda está no lugar, o que espanta o último sono de seus olhos. Como é possível, ele se pergunta, que Juliette tenha partido e trancado a porta por dentro?
O dia passa, mas a pergunta não evolui até se tornar resposta. Ele já não consegue mais pensar no gosto salgado do suor dela ou em como os dois se tornaram um só de corpo e alma uma vez mais. A única coisa em que Daniel pensa é em como ela saiu. A janela do apartamento é alta demais pra alguém pular e a entrada de serviço também estava trancada.
O que antes era paixão logo se torna dúvida, pra não dizer pavor. Ele antes não se preocupara em saber quem ela era, de onde veio e só porque ela se dispôs a contar descobriu com o que trabalhava. Agora ele começa a se perguntar quem dividiu sua cama com ele à noite passada e na outra, quando ele por acaso entrou na casa de Juliette. O sabor de sua boca vai logo se tornando uma visão distante, e a dúvida começa a trocar de lugar com o desejo de descobrir a verdade.
O almoço cai mal, quase despercebido. A comida desce de forma que ele mal sente o sabor, perdido entre dúvidas e temores. Uma alma que há pouco era uma praia ensolarada era agora uma floresta de espinhos, que ele precisava desmatar. Assim, Daniel se levanta da mesa, pegando o casaco e deixando o apartamento.
A curta caminhada até a Brigadeiro parece eterna. Ele ignora os parasitas humanos que encontra pelo caminho, suas vaidades infantis e cinismo doentio, e marcha decidido em direção à casa de Juliete. A maldita treze de maio nunca esteve tão longe, ele pensa, durante os minutos que leva para descer a avenida. Finalmente, ele chega. Ao avistar a casa, o estudante respira fundo e pede pra não estar acordado.
Janelas quebradas permitem que Daniel veja o interior decadente da casa, pouco antes que ele se aproxime da porta apodrecida que afasta com um simples empurrão. Ao entrar, ele se surpreende ao ver um sofá velho coberto com um plástico, exatamente como jurava ter visto a casa de Juliette na noite em que fugia dos torcedores. Ele fecha os olhos e respira, transpira, e sente necessidade de deixar o lugar.
Ao sair, ele agradece o ar poluído que respira, lembrando da sensação que sentiu em seu interior, e que o fez pensar em temores finalmente silenciados, uma dor que finalmente se calava e, por fim, no esquecimento. Como se a casa houvesse extravasado seus sentimentos, ele aos poucos se pergunta como pôde chegar a tais conclusões e, ao mesmo tempo, se pergunta porque podia jurar ouvir a voz de Juliete sussurrada no vento, chamando por ele.
Quando o raciocínio encontra uma brecha para voltar ao trabalho, Daniel caminha em direção à casa vizinha, batendo na porta duas vezes. Logo em seguida, uma senhora com avental responde ao chamado:
- Pois não?
- Boa tarde, senhora, desculpe incomodar... a senhora sabe me informar sobre a dona desta casa?
- Dona, a artista plástica?
- Isso, sabe me dizer se ela se mudou, o que aconteceu com a casa? – A vizinha sorri, surpresa
- Moço, isso aí ta vazio há mais de dez anos. Encontraram a moça morta na sala, parece que foi parada cardíaca.
Daniel engole seco, voltando a transpirar. Ele procura disfarçar a tremedeira e volta a se dirigir à vizinha:
- Morta? A senhora tem certeza?
- Absoluta, moço. Eu até tenho o jornal em que publicaram sobre a morte dela, o senhor quer entrar?
- Sim, por favor, diz ele, quase tropeçando no degrau. Ele entra pela porta da cozinha, a mulher fazendo sinal para que se sente, enquanto caminha até a sala.
- O senhor me desculpe a bagunça, viu, mas é que eu to preparando a janta... Minha filha vem com o marido pra jantar e daqui a pouco o meu Manoel vai vir lá do boteco... Eu já mostro o jornal pro senhor, ele deve ta aqui na sala. – De cotovelos na mesa, Daniel respira fundo, lembrando-se de Juliete e do sorriso que só ela tinha. Morta?
- Ta aqui, moço. Só um instante que eu vou servir um cafezinho pro senhor.
- Não, obrigado...
- Que é isso, acabei de passar, o senhor vai ver que delícia. Só um minutinho... – já não ouvindo as palavras da dona de casa, Daniel vê no jornal, datado de 1990, sobre a morte de uma artista plástica chamada Juliete Braga, que teria morrido por parada cardíaca em sua sala de estar, numa noite de sábado. O corpo foi encontrado pela vizinha, que tinha ido devolver uma batedeira e que descreveu a moça como sendo uma pessoa extremamente solitária e reclusa.
- Eu não costumo ler muito jornal, não, sabe... Mas como este falava aí da moça... Uma pessoa estranha, sim, senhor, falava pouco, não era de receber visita, mas não era ruim, não. Eu até que gostava dela... – Daniel interrompe, se levantando.
- Desculpe, eu preciso ir.
- Mas já? Não vai nem tomar um cafezinho?
- Não posso... Preciso mesmo sair correndo. Obrigado pelo jornal.
- Disponha. Tudo de bom pro senhor, se precisar de alguma coisa, tamos aí.
- Obrigado. – Ele sai pelo pequeno portão, caminhando novamente em direção à Brigadeiro. A subida para a Paulista passa quase despercebida, pois ele tem em sua alma agora fardo ainda mais pesado.
Morta, ele pensa. Por isso precisou que ele saísse da casa naquele dia, e foi assim que saiu do apartamento sem precisar abrir a porta. Um espírito solitário, como ele, que, sentindo a presença de outra alma na mesma situação, retornou ao mundo dos vivos para matar sua fome de amar. Ele não se preocupa com o fato de ter dormido com um espírito torturado, uma vez que outro parecido habita sua carcaça. A única coisa que Daniel vê à sua frente agora é uma interrogação, que o leva a se perguntar se algum dia verá novamente aquela que atravessou os portões da morte para saciar uma sede que ele também conhecia.

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