Sentindo-me à vontade, fiz a trova
Que trago agora diante do leitor.
Aqui não ponho idéia muito nova
Nem rima mui difícil de compor.
É que os alunos passam pela prova
Que devem cá mostrar, seja o que for,
Para que os bons amigos se aproveitem,
Embora quase nunca se deleitem.
Eu vou contar a história duma vida
Que se perdeu nas brumas da maldade,
Dum’alma que chegou arrependida
E que rogou a Deus, por caridade,
Que fosse inscrita para a rude lida
De pôr em verso a dor que um dia há-de
Oferecer à luz da mente humana
Motivos para ver como se engana.
Não fui ninguém que tenha sido preso,
Nem fui notado como alguém de fama.
Inteligente, me mantive aceso,
Iluminado pela frágil chama
Que sufocava a idéia de desprezo,
Mas sem vencer o tédio desse drama.
Quis respirar, comer e amar, também,
Sem perguntar o que seria o bem.
Introvertido, eu tive alguns problemas,
Dos quais fugi, deixando p’ra depois,
Mas não seriam sensações supremas:
Um desencontro a resolver-se a dois.
Eram vitais as dúvidas dos temas.;
Eu a dizer somente o “por-quem-sois”:
Deixei passar a hora mais bonita.
Fiquei sozinho. Ó decisão maldita!
Logo encontrei alguém que me quisesse
E pretendi dar fim ao compromisso.
O mal que a gente faz sempre aparece
E, se posso dizer, com novo viço.
Você plantou, quem é que colhe a messe?
Não queira dar a outro esse serviço.
Queria respirar, comer, amar:
Das três, duas eu fiz, até fartar.
Perdi a minha amada, aí no mundo:
Lhe soneguei carinho por bobagem.
Vivi mais de cem anos tão imundo
Que nem sei descrever tão forte imagem.
E o meu desprezo aqui foi tão profundo
Que perco, ao relembrar, a tal coragem
De dar ao meu leitor a idéia certa.;
Só vou deixar a porta meio aberta
E sabem o que fiz de tão errado,
A ponto de sofrer até agora?
Eu quis manter a moça noutro estado.;
Não desejei chamá-la de “Senhora”.
Levá-la pela rua do meu lado?
Foi quando ela, chorando, foi embora.
Discriminei-lhe a cor: tolo, covarde
E sinto que meu rosto ainda me arde.
Eu tive filhos, sim, que não amei,
Endividado eternamente a ela:
Caprichos de um amor que era de lei.
E como aquela fada era tão bela!
Por onde vai agora, eu já não sei:
No Céu, talvez, a olhar-me da janela,
Pois reconheço, sim, o quanto é duro
Romper o compromisso, ser perjuro.
Foi duplo o compromisso que rompi,
Pois fiz alarde que daria amor
E segurança, ao partir daqui,
E repeti a jura, ao lhe propor
Vivermos juntos, mas fui quem parti,
Porque tinha na pele uma outra cor.
Os anos que passei atormentado
Mais quisera esquecidos deste lado.
Mas foi aqui que tive de curtir
O sofrimento, à vista da consciência.
É duro a gente não ter devenir
E sobre o tempo não ter influência,
Ser uma haste sem poder florir,
Porque conhece a lei da conseqüência:
Faltando a seiva, as folhas e as raízes,
É ver o bem, sem ter as diretrizes.
Arrazoei ao modo que me veio:
Fiz o que pude p’ra compor a rima.
A minha dor gerou o titubeio
De evidenciar aqui o rude clima.
Por ser meu crime por demais de feio,
Não é assim que se demonstra estima.
Peço perdão, portanto, pela trova:
Bem disse acima que não era nova.
O bom Jesus me deu tranqüilidade.;
A minha amada já me perdoou.
Devo-lhe ainda a tal felicidade,
Mas me preocupa aquilo que hoje sou,
Que é muito o medo que minh’alma invade.
O que era tolo um pouco melhorou.
Dou-te um abraço amigo, bom leitor,
E volto para o estudo, com amor.
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