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Contos-->A ÓRFÃ -- 13/04/2003 - 21:17 (PAULO FONTENELLE DE ARAUJO) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

            Shirley conta dois medos na vida: medo de que o pai morra e medo de que ele seja infectado por um amor extraconjugal e saia de casa.

            Essas apreensões chegaram sem avisar.

            Até o mês passado, Shirley estudava na sexta série do primeiro grau da Escola João XXIII. Gostava de Ciências. Ganhou dez na matéria sobre os estados da água.

            Mas, na precipitação de um domingo, temeu pela morte do pai. Insuportável morte sobre a cama. O pai derretendo velas. Morte através de inaceitáveis transformações: o corpo do pai se liquefazendo: cubo de gelo. E depois se solidificando: armadura do caixão.

            E a precipitação estragou ainda mais o domingo quando Shirley imaginou a traição do pai, a infidelidade do pai no casamento. Se ele chutasse a mãe, o passo seguinte seria esquecer a filha.

            As filhas deslembradas... A amnésia ocorre sempre na cabeça dos pais, inoculados pelo veneno das amantes. Esquecem até os filhos. Nem em flashback.

            Shirley enumera dois pedidos em sua vida de ginasiana: o pai não pode morrer e não pode trair. Nunca.

            Hoje é quinta-feira. Shirley acorda cedo, abre a porta do quarto principal e acha a respiração do pai sob os lençóis. Ele está vivo.

            Ela vai à cozinha tomar café. Come bolo de fubá com manteiga. A manhã está quase ganha, e a família prossegue viva. Aviões passam longe. Na rua ouve-se o som de britadeiras. O leite está quente demais. Queima a língua. A dor faz lembrar o pai.

            Ele precisa acordar. Paradas respiratórias são um segundo.

            O pai surge de paletó na cozinha. Prepara o café. Nem repara na aflição de quem o ama. Senta, acende o cigarro, abre o jornal e tosse.

             A menina apavora-se. A qualquer momento, ele cairá sobre a mesa vitimado por um aneurisma. Shirley nem respira, aguarda o fim da tosse.

             O pai volta ao normal. Procura o lenço. A empregada chega. O pai sorri para a mulher. Seu nome é Aparecida e tem bunda. Sem nenhuma educação, os homens se dirigem às mulheres. “Tem bunda...”.

             Muitas vezes aconteceu de o pai ser apanhado, admirando o corpo daquela bunda. Falta de respeito. Ele até parou de tossir. A doméstica carrega três vassouras e um balde. O homem ri e comenta:

           – Que faxina, Aparecida!

            A filha não gosta da expressão e avisa à mãe:

            – Ele sorriu, mamãe.

            A mulher inventa uma indignação para satisfazer a cria. Não admitirá liberdades com as empregadas. O pai ri e novamente tosse. A menina esquece a traição diante da provável síncope do pai. 

            O homem termina o café, pega o paletó, despede-se da mãe e sai. A filha espreme os olhos. O dono da casa continua vivo, embora tenha que desaparecer para trabalhar. Vai de carro.

            O Corcel vermelho ano 74 é seguro. O pai é dono de uma firma de contabilidade. Sua sócia, Dona Laís, ficou magra e velha. Só entende de razonetes. Coitada da Dona Laís. Ninguém é amante de mulheres que usam razonetes.

            O pai saiu há quinze minutos. Shirley deve terminar a lição de Ciências. Dez perguntas sobre a massa e o volume dos corpos.

            A professora de Ciências é adorável. Hoje tem aula de Ciências. Na ida para a escola, Shirley desviará quase dois quilômetros para verificar o escritório de contabilidade do pai, onde encontrará tudo bem instalado.  O pai estará vivo no trabalho e Dona Laís ali, ainda magra e velha.

            A menina passa parte da tarde na escola. Concentra-se na aula. A professora explica que a água e o óleo não se misturam. Formam uma solução heterogênea. As soluções homogêneas, ao contrário, combinam os elementos. São princípios básicos de Química.

            Depois do curso, Shirley volta para casa, toma banho e distingue a água quente do vapor. “Morrer é como evaporar. Se papai evaporar, eu nunca mais tomo banho.” 

            Shirley janta e pensa em visitar a  melhor amiga. A homogênea Cristina. Conversar sobre a novela das oito.                

            São dezenove horas. A colega tem as mesmas dúvidas de Shirley.  Como o homem pode enfiar o pênis na vagina da mulher?  O certo é “pênis”. A “pica”, o “pau” são palavras sujas. Os meninos falam “pica”, e “pau”, e “cacete”.  Falam “porra”. Toda hora, “vão se foder”. Debaixo da árvore, no meio do jogo de futebol. “Ah! Que se foda!”

             Mas o que é “porra”, afinal? É igual a esperma? O pênis pulsa na hora que solta o esperma? São tortos os pênis?

            As duas não reparam o quanto os assuntos se repetem. O mesmo chiclete todos os dias. “Eu escutei. Os meninos inventam apelidos para os seus ‘paus’. Um moleque da sétima série chamou o seu pênis de Elvis”.

            As meninas acham graça. Elvis Presley. Aquele que morreu.

            Shirley avisa: “Só aceito o sexo se for para algo maior. Ter dois filhos. Como fizeram os meus pais. Duas vezes”.

            As meninas concordam sobre as regras do mundo. Shirley sai satisfeita. Volta para casa. Ela mora no final da rua, na subida. Ali os carros passam em segunda marcha. O pai voltará às nove horas. Estamos no mês do Imposto de Renda. Nesse mês ele demora.

            Shirley sobe a rua. Cinco quadras. Devia ter prendido o cabelo. “Agora vou ter que lavar.” Separar a roupa para amanhã. Tem o trabalho de Português. Não queria telefonar para a Carolina e a Ana Virgínia. Aquela ruiva não tinha como ser mais piranha. Sempre se esfregando nos meninos.

            De súbito, vislumbra o Corcel do pai. No banco do passageiro, vê a cabeleira loira. O pai carrega a amante loira. Ela volta correndo e explode a descoberta na cara da mãe.

            – Era o carro dele. Eu tenho certeza!

           A filha não aguenta. Espera o traidor para interrogá-lo. O pai chega e nega. Ela insiste. Ele novamente nega e irrita-se. Ela insiste, e a mãe, que até ali fora a solução neutra, entra no meio e pergunta:

           – Afinal, era você ou não?

            O pai ri.

          – Anda dando carona para loiras?  

          – Não... Foi um amigo meu que usa chapéu branco.  No escuro, parece peruca loira.

           A filha fica aliviada com a resposta. As coisas estão sob controle. A família jantará. Depois assistirão à tevê.  Após o programa humorístico vem a novela das dez, o noticiário. Às onze e cinqüenta estarão dormindo.

            Shirley acorda às duas horas da manhã. Ouve ruídos que vêm do quarto dos pais. Eles conversam, e a mãe ri. É bom vê-la feliz.

            Pensa no amigo do pai de chapéu claro. Um senhor de idade, com certeza... Nem se usa chapéu hoje em dia! Aquilo não foi chapéu! Chapéu loiro platinado. O pai mentiu. Era a amante dentro do carro. Mulherzinha loira. Veio para separá-lo da família.  “Como fui estúpida! Eu deveria ajeitar o maior escândalo no corredor. Acabar com a piada... Mas papai precisa dormir. O tumulto pode lhe fazer mal.”   

            A menina decide dormir.

            Pensa no Elvis e ri. “Menino estúpido”.

 

 



E-mail do autor: phcfontenelleph@gmail.com
 

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