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Textos_Religiosos-->TESTEMUNHOS DE DOR -- 26/02/2005 - 06:02 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
WLADIMIR OLIVIER







TESTEMUNHOS
DE
DOR



EQUIPE SOCORRISMO ATIVO








Edição da CASA DO MÉDIUM

Rua Cinco de Julho, 1184
Indaiatuba — SP



ÍNDICE


Nota explicativa ......................................
Preparação ............................................
1. Primeiro dia ..........................................
2. Um tapa na mão ........................................
3. Tremores ..............................................
4. Inferno moral .........................................
5. Os penates ............................................
6. Dupla recordação ......................................
7. A hora de a onça beber água ...........................
8. Despertar .............................................
9. Caso comum ............................................
10. Um intelectual falido .................................
11. Gorda e balofa ........................................
12. Teatro da vida ........................................
13. Luta interna ..........................................
14. Um sujeito desavisado .................................
15. Pobre sofredor ........................................
16. Onda de amor ..........................................
17. Meu arrependimento ....................................
18. Frustração ............................................
19. Males arraigados ......................................
20. Embusteiro ............................................
21. Luz interior ..........................................
22. Um caso de amor .......................................
23. Confissão espontânea ..................................
24. Eis-me aqui ...........................................
25. Sacrifício inútil .....................................
26. O meu grito de guerra .................................
27. De general a soldado raso .............................
28. Os primos pobres ......................................
29. Grata frustração ......................................
30. À sombra do outro .....................................
31. Penitencio-me .........................................
32. Desafogo ..............................................
33. O crime não compensa ..................................
34. Pequenos-grandes débitos ..............................
35. De olho no cardinalato ................................
Encerramento ..........................................



NOTA EXPLICATIVA


O objetivo do grupo, com este compêndio, é o de reforçar a demonstração de que os amigos do plano espiritual assistem aos irmãos sofredores. Em função da psicografia, ficam registrados aspectos psíquicos bem característicos do humano proceder, o que consigna ao trabalho o valor da exemplificação.
Ressalte-se, contudo, que a orientação estabelecida pelos mentores da Escolinha de Evangelização para a Equipe Socorrismo Ativo não atribui prioridade a esta divulgação, mas ao aprendizado das técnicas de mediunização aplicadas ao aludido programa assistencial.
Não tendo desenvolvido a habilidade no campo da evangelização, circunscrevemo-nos ao atendimento de espíritos em vias de despertar para a verdade cristã, competindo-nos servir de simples alavanca intelectual ou emocional e de esteio moral, para que se predisponham os assistidos a receber tratamento psiquiátrico, em instituições especializadas.
Por conseguinte, limitamos os comentários a meras reflexões, com o intuito de não perder as oportunidades para o exercício de algum ministério de amor, conforme a pregação de Jesus. Abrimo-nos, porém, às críticas e sugestões dos amigos leitores, bastando, para isso, que emitam vibrações em favor do grupo. Ficaremos no aguardo de tais manifestações.
Deixemo-nos ficar nas mãos de Deus, rogando-lhe que minore os sofrimentos da humanidade, com o inspirar-nos para a compreensão de suas sacratíssimas leis.


Cumpre ao escrevente assinalar que o período das transmissões se estendeu de 30.10 a 19.l2.91, tendo sido conservados os depoimentos em ordem cronológica.
Que esta iniciativa editorial possa merecer as bênçãos do Senhor!







PREPARAÇÃO





A Equipe Socorrismo Ativo da Escolinha de Evangelização amplia a possibilidade mediúnica do escrevente, no sentido de deixá-lo absolutamente pronto para o ditado em condições de meio sonambulismo. Expliquemo-nos.
Ao se apresentar para o trabalho, pedimos que leia trechos de diversas obras de notável moralidade espírita e, após as preces de abertura, solicitamos que durma, tempo em que irá receber, em estado sonambúlico, os eflúvios e as recomendações concernentes à manifestação do dia. Ao ser acordado por algum meio ao nosso dispor, põe-se a escrever, sonolento ainda, mas disposto mentalmente, de sorte que é bem capaz de imprimir ao texto a exata noção que lhe é passada.
Este artifício é necessário para poder permanecer na companhia dos atendidos por período longo de tempo, pronto para o registro das vibrações, muitas vezes desencontradas, de modo lúcido e bem próximo da intenção do espírito. Esta introdução, estamos transmitindo por essa forma de trabalho, de maneira a dar ao mediador inteira liberdade de escolha terminológica, sem, contudo, permitir-lhe qualquer participação na formulação dos pensamentos.
Queremos que fique claro que é o instrumento bem capaz de exercer o livre-arbítrio, de modo que o sistema se diferencia do sonambulismo puro nesse aspecto. O que nos é importante é fazer com que o médium obedeça aos impulsos eletromagnéticos com pleno poder intuitivo, embora ainda não tenha readquirido total domínio das circunstâncias da realidade, o que o tornaria consciente.
Quanto ao teor dos textos, corre por conta da espiritualidade dos socorridos, podendo haver quem tenha condição plena de preparo intelectual, bem como quem esteja tão perturbado que seja incapaz de qualquer raciocínio lógico, por conta própria. Sendo assim, ficam nas mãos dos instrutores, que participam das comunicações de modo direto, ao tempo em que o grupo exerce seu papel na doutrinação.
Por isso, rogamos aos leitores que não considerem os aspectos doutrinais como os mais importantes, mas a exemplificação dos raciocínios humanos postos em ação na esfera terrestre e examinados pela consciência na erraticidade, com o escopo de avaliar da justeza das atividades e do resultado moral da aplicação das leis psíquicas que enformam o cérebro humano e que correm vigentes entre os encarnados. Se lhes servirem os modelos, ficaremos satisfeitos por termos dado ao escrevente tanto trabalho. Se nenhum fruto os leitores puderem colher desta modesta plantação, pelo menos fique a certeza de que o trabalho de assistência teve o proveito visado.
Por nós, não acresceríamos nenhum comentário relativo às condições específicas de cada mensageiro ou das respectivas manifestações, mas é impossível deixar de informar, muitas vezes, algum tópico para melhor compreensão do resultado das atividades. Por isso, vão-se ler algumas apreciações rapidíssimas, à guisa de simples anotações.
Façam-nos acreditar que este trabalho merece o apoio dos encarnados, ajudando-nos, durante a leitura, com preces em favor dos amigos em tratamento ou em transe de dor pelas muitas contravenções cármicas, eis que iremos buscá-los nos locais em que jazem, à beira da falência moral. Por isso, não fiquem espantados se muitos não lograrem obter maior ajuda, mas acreditem que a só colocação dessas entidades em contacto com a possibilidade de auto-análise lhes dá relativo consolo e lhes abre a perspectiva de cura.
Muito obrigado, irmãos, pela benévola atenção que emprestarem às narrativas, mas saibam enxergar para além delas, na procura da própria redenção.
Fiquem com Deus!







1

PRIMEIRO DIA





Oi, Amigo!
Aqui estamos para fornecer pista a respeito do que iremos fazer nos próximos dias. Se achar que não estamos senão aproveitando-nos da oportunidade, não faremos questão de voltar amanhã.
Pois bem, continuemos, então.
Eis que de nós se espera trabalho de fôlego, tanto que nossa disposição é bem grande. Sentimo-nos, todavia, um tanto estranhos, por ser esta a primeira vez que contatamos o plano da realidade densa. Não se trata, evidentemente, de surpresa total, mas o pouco que sabíamos a respeito desta possibilidade não nos favorecia transmissão de ditado com tamanha precisão.
A par desta parte admirativa, temos para deixar-nos estupefatos a distribuição vocabular, em frases absolutamente organizadas e claramente formuladas, com inteira concatenação sintática, apesar da vibração ser carente de estímulos particulares.
Diante de tão seguro apanhado do pensamento, sentimo-nos envergonhado por vir tentar o amigo. Queira desculpar-nos o atrevimento.
Vamos deixar algum pensamento superior, para nossa pequena dimensão, e iremos embora:
"Amem-se uns aos outros e não façam jamais aquilo que gostariam que não lhes fosse feito."
Estamos conduzindo o braço do irmão, de forma que possa suspeitar tratar-se de movimento anímico, pois a contextura moral de que somos dotados não o autoriza a considerar-nos aptos a caminhar com as próprias pernas. Se bem que seja possível estimular-lhe os centros da percepção, na verdade, somos nós que estamos realizando a tarefa, estando presentes alguns amigos da espiritualidade, que nos estão como que obrigando-nos a permanecer com a pena na mão. Mas é tão suave tal jugo que não nos sentimos mal. Ao contrário, a sensação é de que algo agradável ocorre conosco, como de há muito tempo não tínhamos a mesma impressão.
Graças a Deus, a tentativa teve tão interessante desfecho, pois a intenção primeira era a de aproveitar a disposição do amigo, para peloticar-lhe um gracejo, que só iria fazê-lo desandar, e nada mais.
Do jeito que fomos apanhados, eis-nos a estender-nos pela segunda lauda, sem possibilidade de afastar-nos, para as correrias a que estamos habituados.
Querem saber o que achamos da experiência e se não gostaríamos de tentar freqüentar a Escolinha que representam, na qualidade de aluno de primeiras letras, especialmente no que se refere à aprendizagem das virtudes evangélicas.
Devemos dizer que a oferta é tentadora, mas que nos sabemos profundamente vingativo, para que não nos venha logo à idéia faltar-lhes com o respeito, no sentido de pregar-lhes alguma peça, por revide desse esforço que nos estão impingindo.
Quando escrevíamos o parágrafo anterior, verificamos que não estávamos mais sendo forçados ao ditado, o que o médium bem percebeu, devido à notação do titubeio, já que a frase não adquiria a mesma fluidez que vinha conseguindo. Como agora mesmo, quando desejamos alterar o rumo dos pensamentos, para imprimir ao texto certa elegância terminológica, o que alcançamos com propriedade.
Estamos deslumbrando-nos com a facilidade com que o amigo encontra o vocabulário e a seqüência que dá às idéias, de modo que o que pretendíamos
que se estabelecesse como mero animismo da parte dele, quer parecer-nos, se transformou em automatismo da nossa parte, tanto é capaz o escrevente de sugar de nosso intelecto e de nossa sensibilidade, o que vai registrando, com tanta presteza.
O que parecia exercício lúdico, agradável e benfazejo, vai transformando-se em martírio emocional, pois não vemos como encerrar este trágico momento, que nos faz envergonhado e pronto para o pedido de perdão, o que ensaiáramos antes, sem convicção.
Não sabíamos como expressar estes últimos pensamentos mas o amigo conduziu-nos facilmente, de sorte que tudo agora nos parece estar ganhando nova dimensão de seriedade e de obrigação; seriedade, no sentido de nos vermos compromissados com os companheiros e com os leitores, uma vez que tudo ganha envergadura de fôlego, o que não nos parecia possível; obrigação, no que concerne ao fato de termos adquirido débito moral difícil de deixar de ressarcir, dada a veemência do amor que percebemos estar a nos envolver, pelos fluidos bondosos com que nos mantêm lúcido para a escrita.
Eis que a vida se nos abre como possibilidade de progresso, nós que estagiávamos há bastante tempo, desde que nos frustramos no derradeiro encarne.
Graças a Deus, bons amigos, estamos recebendo o seu influxo socorrista, de tal forma poderoso que nos revitalizou e nos anunciou que vale a pena prosseguir ao seu lado, pois a ventura desta restauração nos alertou para as maravilhas do perdão e do amor.
Neste sentido, tememos que o escrevente terá pouco que extrair deste pobre sofredor. Embora as palavras todas se contenham no fundo da consciência, os sentimentos correspondentes não se acham; ao contrário, o que existe é muito temor em que nos vejamos desnudados pelo fato de termos baixado a guarda, por força de tanta consideração.
No fundo, no fundo, até que gostaríamos de ver definitivamente resolvidos os problemas, mas tememos que a hora não nos seja oportuna, nem nossos fluidos estão dispostos, no sentido de nos possibilitar acesso fácil a todos os dramas que nos sobrecarregam a mente.
Acenam-nos com a possibilidade de tratamento junto a instituição especializada. Não vamos perder tal oportunidade.
Agradecemos ao escrevente todo o tempo dedicado a este amigo das trevas e propomo-nos a auxiliá-lo na busca da compreensão de algumas idéias que lhe vinham à cabeça, por influência que lhe dirigíamos, na ânsia de concretizar alguma obsessão, pois nos julgávamos aptos a isso. Pura inveja, bom irmão, que nos fazia atormentá-lo às vezes, posto que as suas defesas estavam atentas para resguardá-lo dos perigos.
Pedimos-lhe humildes desculpas e aceite-nos, daqui para frente, na qualidade de amigo.
Fique com Deus e saiba ver nestas páginas a sua própria desenvoltura e a inteligência bondosa dos amigos que nos surpreenderam.
Renato, nome sugestivo que adotamos agora, para não revelar a identidade.




Explicação



Bom amigo, eis a tarefa que se abre à nossa frente. Iremos trabalhar com os irmãos em estágio na erraticidade. Esteja atento para receber o influxo de vibrações que poderão até vir a ser desagradáveis. Contudo, saiba que a equipe que irá participar desta mesa está preparada para impor sua força magnética a quantos estiverem aptos a manifestações às quais se possa imprimir certa organização, como a de hoje.
Fique na paz do lar e ore com afinco, para que todos os que trouxermos possam compenetrar-se de que é o amor que nos estimula, de molde a afeiçoarem-se ao grupo e a propiciarem dignas oportunidades de entrosamento moral, no intuito do encaminhamento evangélico.







2

UM TAPA NA MÃO





— Não mexa aí, filhinho!
E, lapt!, lá vinha vigoroso tapa na mão, a reforçar a solicitação.
— Não ponha a mão no fogo!
E, lapt!, lá vinha a forte pancada, para que se evitasse o mal maior.
Era assim que minha doce mãezinha me fazia crer que estava arriscando-me ou pondo em perigo algum pertence valioso. E eu ia chorar num canto, lamentando a dor e sentindo o castigo como injusto, aborrecido com a rispidez do tratamento. Não sabia exatamente o que ocorria, pois não tinha a noção desenvolvida do valor dos objetos ou do poder do fogo.
Era assim que ia aprendendo a viver, desfiando toda a série de pequenas injúrias que conhecia contra aquela que via como representante da dor e do sofrimento.
Minha mãe, porém, não me proporcionava tão-só momentos de transtorno moral. Muitas vezes, carregava-me no colo, dava-me guloseimas, ensinava-me coisas. Era boa para mim e eu gostava muito dela.
Mas as crianças crescem e os adultos envelhecem. Novos interesses chamaram a minha atenção e minha adorada mãezinha foi levada para outros quefazeres, no plano da espiritualidade. Vi-me só, certo dia, ausente e presente para a vida; ausente, porque não tinha a quem destinar os meus votos de trabalho e solidariedade; presente, porque fortemente atado à desesperação da impotência de sobreviver. Pensei em suicídio, mas a alternativa não me acendeu desejo algum. Parecia-me que forte tapa na mão iria obstar, à última hora, qualquer tentativa naquele sentido. Doce e amargo aprendizado! Quanto lhe agradeço, mãe, a atenção, mesmo ao risco de ser mal interpretada!
Este pequeno extravasamento sentimental levou-me a ponderar a respeito do crescimento das relações espirituais entre os encarnados e desencarnados, em como o espiritismo se deixou envolver pela má interpretação dos que se viram desalojados dos pedestais de sabedoria e poder.
Hoje em dia, a prática mediúnica se dá em muitas salas, mas a grande conquista pleiteada pelos pioneiros era tornar cada lar santuário de vivo intercâmbio entre os planos, fazendo de cada pessoa um mediador, para que, através das evocações, os encarnados pudessem reger seu destino pelas palavras de prudência e de avisado conhecimento dos protetores da espiritualidade.
Amigos, não titubeiem em dar o providencial tapa na mão dos que desconheçam os efeitos deletérios do tratamento abusivo com as hostes poderosas da malignidade; mas não impeçam jamais que se desenvolva a mediunidade nos lares solidamente fundeados através da âncora do amor e da compreensão, para que haja a possibilidade de consulta aos mentores e orientadores. Vamos volver a essa aspiração dos pródromos do Espiritismo, segundo a codificação kardequiana, e harmonizemos as atividades nos centros espíritas, fazendo crescer o relacionamento com os guias familiares.
Não lhes estamos solicitando que se deixem levar por estapafúrdias manifestações de entidades desejosas de vê-los desacreditar da benignidade do Senhor e da capacidade de se contatarem espíritos benfazejos e solícitos. Ao contrário, estamos incentivando-os a que se doem a lídimo trabalho socorrista, destinando semanalmente algumas horas à desobsessão e à doutrinação. Mas é preciso que se estimulem também às palavras de incentivo, de exortação e de consolo que só os que nos são caros nos podem propiciar.
Então, um dia, minha mãe se manifestou no centro em que era eu médium psicofônico e, através de minha voz, veio pedir-me perdão por me ter tantas vezes castigado a curiosidade ou a teimosia. Naquela noite, as lágrimas sufocaram-me a voz e não pude conter o desejo de, ainda uma vez, sentar-me ao seu colo para ouvi-la contar as belas histórias de fadas e de cavaleiros. Estranhei muito que viesse desculpar-se, por algo que jazia no fundo de minha memória, mas explicou-me que era para lembrar-me da necessidade de me policiar mais, pois a tristeza estava possibilitando que certas entidades malfazejas estivessem a assediar-me, pondo em perigo minha integridade moral. Como estava crescido e bem compreendia as explicações, o pedido de perdão só significava que ela mesma se via na necessidade de se aplicar um tapa, para despertá-la para a necessidade de mais vezes considerar-me adulto e sério, em condições de enfrentar, com denodo, a vida. Era como que a despedida da protetora, que volvia para mim mas a distância, respeitando-me a personalidade, com o fito de fazer-me, finalmente, crescer para o reconhecimento da verdadeira estrada a ser palmilhada.
Muito lhe agradeci mais esse ensinamento e pus-me a meditar detidamente a respeito do isolamento em que me encontrava. Como resultado das cogitações, interessei-me em fundar uma família e, definitivamente, enterrei a tendência ao masoquismo e ao deplorável negativismo que me determinava futuro sem esperança, através do engrandecimento do passado. Foi como se tivesse tocado em fio desencapado e recebesse forte descarga elétrica.
Minha doce e amada mãe, quanto lhe devo!
Ainda sinto na pele o suave roçar de seus dedos, afagando-me como se fora o príncipe encantado de sua vida. Cedo perdi meu pai e dele bem pouco recebi, em qualquer circunstância. Parece-me apagada figura das recordações infantis, posto que o tenha a meu lado constantemente nas lides do socorrismo espiritual. No entanto, nossos laços de amor não se apertaram, permanecendo o relacionamento frio, como se o meu nascimento tivesse sido fruto de tratativas para se desfazerem débitos antigos.
Com relação à minha mãe, não. Ela está sempre comigo, agora que podemos partilhar a existência em igualdade de situações. Não saio ao serviço sem que a ouça primeiro e sem lhe pedir os conselhos. Sei que um dia deverei conseguir abrir as asas e percorrer os espaços às custas de meu destemor e ousadia. Agora, entretanto, rendo-lhe homenagens, pelo muito de conhecimento que me tem oferecido.
Muito obrigado, mãezinha do coração!

Desejava afastar-me desta mesa, mas fui impedido pelos amigos que para cá me conduziram. Estou perplexo e não sei como expressar minha admiração pela sua insólita determinação.
Terei falhado em algum aspecto doutrinário? Terei deixado algum conselho contrário às teses espíritas? Terei demonstrado falta de comiseração e respeito por alguém? Terei sido injusto, precipitado ou presunçoso e egoísta? Terei sido falsamente humilde ou simplesmente terei procedido a alguma descortesia?
Dizem-me para ser mais objetivo na circunscrição dos problemas que me afetam, pois muito do que disse pode levar a suspeitar de que houve mera fantasia a disfarçar os reais problemas.
Pois lhes asseguro que procurei ser bem sincero. O que não fiz foi programar a dissertação, de modo que tudo parece ter ficado como verdadeira colcha de retalhos, nada havendo que se possa considerar aproveitável para publicação, a não ser meu próprio caso, como depoimento a servir na exemplificação de algum tópico de interesse espírita.
No mais, sinto-me perdido diante das restrições que me foram feitas. Claro está que não transformei este momento de análise em perfeito exame de consciência, pois não desejava expor totalmente a minha fragilidade. Aliás, se quiserem que faça outro tipo de declarações íntimas, estou pronto a favorecer o apanhado do ditado, mas suplico-lhes que não seja pressionado a discorrer com tanta nitidez e poder de dominação intelectual. A escrita tornar-se-á entrecortada e as lembranças ficarão eivadas de reticências e de convulsivos tremores, pois o que mais fortemente me segura é o temor de que o arrependimento não esteja levando-me à perfeita compreensão dos desvios de conduta.
Louvo o escrevente, que está imprimindo caráter discursivo a meus estremecimentos, e peço-lhe para deixar bem claro que estou fremente e titubeante, agoniado mesmo diante da possibilidade de falir emocionalmente. Peço-lhe que deixe registrado que todo este linguajar, aparentemente fluente, vem indeciso e cheio de interrupções, de modo que o resultado final poderá demonstrar que houve seqüência lógica, mas, na verdade, o que está ocorrendo é que estou com muito medo de revelar-me inteiramente como realmente sou.

Mais apaziguado mas ainda fortemente levado pela emoção, quero deixar o meu agradecimento ao pessoal do grupo de que faço parte, por me ter premiado com sua atenção de desvelado carinho. Agradeço, sobremodo, o fato de me terem permitido ocultar os crimes, o que me reconforta, pois poderiam os amigos estabelecer paralelos indevidos com as próprias vivências na carne. Tudo o que posso dizer-lhes é que o relacionamento com minha mãe não foi a maravilha que intentei deixar expressa, havendo motivos para que se suspeitasse de que nossos entreveros, em outras encarnações, tenham sido cheios de ódio e de dor.
Sinto-me como se fora castrado, de repente, impotente para efetuar qualquer julgamento e, por isso, requeiro, se possível, me seja dado o conforto de retirar-me para mais plenamente poder submeter a minha personalidade à análise, sob este novo ponto de vista que me foi oferecido.
Gostaria de ouvir os amigos mentores nas apreciações e aconselhamentos.
Agradeço muito ao escrevente por vir até aqui sem hesitações, embora, reconheço-o, por várias vezes, intuitivamente, lhe tenha passado toda a minha insegurança, no desejo de vê-lo arrefecer de seu impulso, liberando me da forte pressão que senti ao postar-me ao seu lado.
Bom amigo, muito obrigado! Fique com Deus no recesso do lar!

Não desejo identificar-me nem adotar qualquer nome fictício. Digamos que seja um pobre sofredor com aspirações a melhorar.




Comentário



O amigo possui muitos recursos e muito tem trabalhado em prol do soerguimento moral dos necessitados. Há tempos, percorre a erraticidade, emprestando seu brilho intelectual às lides do socorrismo ativo. Entretanto, sistematicamente, vinha fugindo de tratar dos problemas pessoais, motivo por que lhe solicitamos que viesse dar seu depoimento, na intenção de fazê-lo desfazer-se de certos pesos que sentíamos angustiarem-no.
Pensamos ter cumprido com o dever da amizade, pois todos os do grupo se sentem devedores em relação a tudo que o bom amigo tem realizado por nós. Devíamos-lhe essa atenção.
Quanto ao amor que conseguimos imprimir ao ato de doutrinação, não nos foi difícil arregimentar, pois temos verdadeira afeição pelo companheiro. Que o amigo leitor se compenetre bem dessa necessidade, sempre que destinar o tempo ao atendimento daqueles que lhe vêm pedir ajuda.
No que respeita ao teor do texto, que seja levada à devida conta a verdade que foi exposta relativamente à necessidade de melhor se ouvirem os conselhos dos guias, parte que está um pouco demodée no espiritismo moderno, mais desejoso de encaminhar do que de receber encaminhamentos, como se tudo o que se contém na codificação também se situe no coração de cada um. Sentimos isso e, sendo assim, fazemos a exortação, no sentido de que sejam propiciados aos instrutores, melhores recursos para se manifestarem. É bom que haja receio de ser enganado, mas também é necessário que se avalie até que ponto esse receio não está sendo forjado por personalidades extremamente confiantes e excessivamente seguras de si.
Perdoe-nos, amigo, se o atrevimento, sob seu ponto de vista, ultrapassou os justos limites a que julga você deveriam restringir-se. Não se esqueça, porém, de que, às vezes, um bom tapa na mão pode significar suave advertência, diante dos perigos que nos rondam e de que não estamos conscientes.
Queiram relevar a falta de melhor estrutura desta comunicação, à vista das surpresas inerentes ao trabalho socorrista ao vivo, pedido este que, desde já, estendemos para todos os textos psicografados que teremos oportunidade de encaminhar.
Quem sabe haverá ensejo para manifestações dos orientadores, para a exposição técnica necessária dos subsídios teóricos das atividades. Aí, certamente, a mensagem merecerá melhores cuidados e atenções, de forma a se constituir em algo aproveitável.
Enquanto isso, rezemos pelo bem dos assistidos e solicitemos do Senhor forças para continuar trabalhando pelo bem da humanidade.







3

TREMORES





Eu não queria apresentar-me diante dos encarnados. Não sei como foram encontrar-me, pois estava bem escondida. Agora que aqui estou, não sei como me desvencilhar desta loucura que me propõem de ver o irmão escrevendo o que vou pensando.
Sei que a turma tem a intenção de me ajudar, pois é fácil perceber que as vibrações são boas e me tranqüilizam. Agora que vim até aqui, peço para me libertarem, pois sinto-me envergonhada por não poder retribuir as gentilezas.
Pedem-me para não atrair os meus inimigos através de pensamentos baixos. Pois estou aqui e tremo de medo de vê-los por perto. Sei que não fui boa pessoa e sei que estou bastante atrapalhada, impedida de me locomover e de tomar decisões.
Vejo que as palavras vão assumindo corpo no branco do papel e que só estabeleci pequeno relacionamento com o médium. Há tanto que gostaria de expor a quem pudesse revelar-me o segredo da libertação, da liberdade.
Hoje, só um pouquinho já demonstrou a minha fraqueza e foi suficiente para deixar indelével a minha marca.
Na última encarnação, a minha letra era assim esparramada, só que não escrevia muito, apenas algumas cartas a minhas irmãs e a meus pais, pois viajei obrigada pelo compromisso matrimonial de acompanhar meu marido. Mas a vida com ele não durou. Eu é quem fui culpada por tê-lo afastado. Não posso negar que agi muito mal e que mereci o castigo que sofri depois da morte.
O bom amigo que apanha as vibrações está sentindo necessidade de interrupção? Não! Pois pensei que estivesse cansado.
Mas eu dizia que fui culpada pela separação de meu marido, de modo que representei a ele a própria desgraça, uma vez que tudo terminou em tragédia. Fui atacada numa praça e lá deixei meu corpo. Agonizei durante muito tempo e me vi depois alijada do direito de permanecer junto de meus dois filhinhos.
Pensava que a justiça na Terra era terrível, pois impediu-me de ficar com as crianças, dizendo que tinha maus hábitos, que bebia e consumia drogas. Era verdade, mas bem que podiam ter deixado ficar com eles, de quem gostava muito.
Deste lado, depois que me inteirei de minha verdadeira condição, bem que eu quis ir ver os meus filhos, mas não consegui encontrá-los. Sabia o caminho, mas sempre me deparava com pessoas amáveis que me faziam correr para outro lado, de modo que jamais cheguei até onde estavam. Eles eram bem pequenos; por isso, nunca senti que me chamavam ou que precisavam ver-me.
Os meus assassinos eram profissionais e, durante muito tempo, pensei que o que tinham feito comigo fosse por ordem ou pagamento de alguém. Desconfiava de meu marido e de meu amante, mas soube, depois, que só se haviam enganado de pessoa. Em todo caso, mataram também a pessoa certa, a moça que estava comigo na praça.
Sei agora que, no dia em que isso aconteceu, houve forte tiroteio e que várias pessoas caíram sem vida. Na hora, não pude perceber nada, porque fui a primeira a ser atingida. Quando vim para este lado, não tive nenhuma luz e sentia-me perto de um corpo frio, que tocava como se pudesse reentrar nele. Era uma confusão muito grande na cabeça. Achava que estava viva e que bastava reentrar naquele corpo, porque me apalpava e não conseguia sentir nada. Hoje é diferente, porque sei onde estou e sou capaz de sentir toda a minha pessoa. Vejo que a natureza não mudou muito e que as coisas continuam no lugar.
Agora que descrevi alguma coisa da minha vida e das impressões que estou sentindo, peço para me livrarem deste peso enorme que carrego na alma. Será que meu marido me perdoou? Será que meu amante ainda gosta de mim? Será que meus pais e meus irmãos já se esqueceram de quem me tornei no finzinho da vida? Será que meus filhos sentiram a minha falta e ainda se lembram de perguntar pela mãe que os gerou e lhes deu os primeiros beijos?
Querem saber quem eram os meus inimigos. Pois eu mesma não os reconheci. Parecia que eram pessoas conhecidas, mas ninguém conseguiu demonstrar por que me perseguiam. Só diziam que eu havia afastado o filho do caminho do bem. Mas acho que estavam atrás de outra pessoa e se confundiram.
Dizem-me que pode ter havido perseguição por causas provocadas em outra vida. É possível, pois nunca me veio à cabeça nenhuma lembrança boa, só de crimes e vícios. Na última encarnação, contudo, não fui má para ninguém e me arrependi muito por ter perdido a felicidade no lar. Parecia que era arrastada para o vício. Meu marido costumava beber um pouco e aprendi com ele. Mas fui muito além e comecei a beber até sem ele saber. Será que fui influenciada por esses mesmos que querem pegar-me? Sinto que possa ser isso mesmo, porque aprendi que os espíritos maus conseguem fazer as pessoas agirem conforme é de seu desejo.
Eu era pessoa fraca, que tinha muita saudade de casa e de minhas irmãs. Não ligava muito para meus pais, que eram muito severos e que me obrigaram a manter a virgindade até o casamento. Mas depois eu me desforrei. Foi a minha desgraça. Agora vejo que estavam certos em impedir-me de fazer o que ia na cabeça, senão nem teria casado, nem teria tido os meus dois filhinhos.
Era capaz de estar viva ainda, pois não estaria na praça, na hora dos disparos, mas era bem possível que pudesse sofrer algum outro atentado, atropelamento ou envenenamento alcoólico.
Já deixei o escrevente escrever bastante e penso ter dito o suficiente para me libertarem. Já disse que não fui boa peste e que tive muito do que me arrepender.
Depois que fui atropelada e que me escondi naqueles buracos escuros, nunca mais fiz nada que pudesse prejudicar ninguém. No começo, ainda xinguei os bandidos que me acertaram e os que me haviam escorraçado do lugar em que estavam meus filhos, mas depois vi que não adiantava nada e que me sentia melhor quando não desejava mal para ninguém. Se disser que enxuguei muitas lágrimas, podem acreditar, mas não foram sinceras: é que me via decepcionada e carente de afeto e de carinho. Sentia falta e sinto ainda de um bom gole de aguardente ou de uma picada, mas isso é mais suportável que o desejo impossível de retornar atrás e restabelecer o meu lar, a minha família, antes do momento em que me entreguei ao patrão.
Era incrível a facilidade com que os homens conseguiam levar-me com eles. Era só dizer que tinham algo para mim e lá ia atrás do prazer. Que pena! Agora vejo que estava muito enganada e que devia ter respeitado mais as orientações de meus pais.
Peço perdão a todos pelas minhas palavras e idéias chochas, mas espero ter dado, com meu exemplo, a idéia para que se afastem dos vícios e do sexo impuro.
Peço aos que me trouxeram até aqui que me confortem com a permissão de ver os meus filhos, mesmo que não se lembrem mais de mim, mesmo que o pai lhes tenha dito quem realmente fui. Será que poderei dar-lhes a sensação de que sempre os amei, apesar de tão irresponsável? Façam-me acreditar que ainda existem esses laços, pelo amor de Deus, senão vou ficar completamente louca!
Desculpem-me as emoções que estou sentindo. Sei rezar o pai-nosso e a ave-maria e foi o que vim fazendo desde algum tempo. Será que essas orações me fizeram bem? Pois vou acompanhá-los para onde quiserem levar-me, pois me encontro sem medo e amparada.
Graças a Deus!
Ia saindo sem agradecer ao amigo que está escrevendo e me fizeram voltar para esta manifestação de apreço. Devo dizer que não conhecia este senhor e que fiquei muito grata com sua dedicação. Se é isso que vem fazendo, pode estar certo de que muito está ajudando à gente sofredora. Fique em paz!




Comentário



O grupo não deseja estender-se em comentários, a que está muito acostumado o escrevente. O objetivo é levar as entidades assistidas a compenetrarem-se de que as mudanças de procedimentos que lhes propomos são para o bem. Se aceitarem as sugestões, ótimo! Serão encaminhadas para as instituições adequadas para seu tratamento. Se não aceitarem, serão conduzidas para câmaras de espera, onde são reconstituídas por suas mentes as condições em que se encontravam antes do ato socorrista, de modo que sentirão, por mais algum tempo, exatamente as mesmas sensações que lhes davam a contextura de sua condição, com a diferença de que estarão protegidas de ataques exteriores. Futuramente, novas oportunidades lhes serão oferecidas para a reflexão a respeito do socorro que lhes está sendo manifestado.
Tudo o que fazemos é com muito amor e consideração pelo estado de deterioração moral dos irmãos imersos no sofrimento atroz do arrependimento. De resto, se não se arrependeram, aí os conduzimos à meditação da necessidade de se verem às voltas com as acusações conscienciais.
Eis que desvendamos algumas das atividades para que o amigo possa entrever o tipo de serviço que prestamos. É só uma fase das atribuições, que abandonaremos no momento em que tivermos acrescido mais méritos ao ativo e fizermos jus a algo mais importante. Para nós, portanto, a mediunização e a psicografia são absolutamente secundárias, pois as diretrizes do trabalho são bem outras. Só estamos insistindo na ajuda do escrevente, para o aperfeiçoamento necessário para o nosso desenvolvimento nesse campo do conhecimento.
Para finalizar, devemos dizer que o apoio que solicitamos dos amigos encarnados será o da prece em favor dos socorridos, o que pedimos também ao irmão médium.
Fiquemos todos nas mãos do Pai!

Em tempo. Atendendo à vibração da irmã socorrida, iremos avaliar a possibilidade de levá-la até os filhos, principalmente porque podem estar desejando-lhe o bem na espiritualidade, ao influxo benéfico da saudade que se sente espargida no ar, em torno da data destinada à recordação dos finados. Esperemos em Deus que algo de bom esteja no coração dos familiares, o que é bem possível que esteja ocorrendo, dada a forte impregnação magnética que percebemos na aura da irmã.
Para quem não se estende em comentários, até que demos alguma trela à curiosidade sadia do amigo.







4

INFERNO MORAL





Meu sofrimento é atroz. Sinto as dores das labaredas infernais ainda agora, quando estou tão amparado por estes bondosos irmãos.
Hoje acompanhei o irmão médium para ver como é que as coisas se passam na Terra. Fiquei admirado de tantas mudanças, pois, no meu tempo, as pessoas tinham outro tratamento. Até mesmo no que respeita à autoridade, senti muita alteração, porque o que vi foi muito fel e muito veneno.
Mas não pensem que fui boa pinta. Ao contrário, estou admirado e muito, porque eu mesmo tratava as pessoas de maneira muito pior, mas não recebia em troco tanta desconsideração. Não pensem que a vida onera demais. É que as pessoas vão crescendo em crimes por não reconhecerem a Divindade e seu poder. Cada vez mais vai ficando pior a situação.
Falo por mim, pois, na última encarnação, quase tropecei em excomunhão, tantas vezes fui parar nas mãos dos padres, para que pudessem perdoar-me. De nada adiantou ter rezado todas as vezes, direitinho, todas as orações que mandaram. Sabia que comia a hóstia em pecado, porque pretendia voltar a fazer exatamente as mesmas coisas. O confessor era boa pessoa e me dizia que não podia dar a bênção, porque não me penitenciava seriamente. Ralhava comigo. Ficava bem bravo e redobrava a penitência. Era padre-nosso e ave-maria sem fim, como se pudesse transformar-me em sacerdote de pureza. Bem que dizia para ele que não me fizesse um santo. O que eu queria era o perdão, para ficar aliviado. Mas isso depois se transformou em meu tormento. Ao invés de ficar vagando por aí, em busca de lenitivo para a dor, via-me no santuário, dentro do confessionário, como se fosse o padre, a ouvir intermináveis confidências de quem cometia crimes e não se arrependia. Ficava ouvindo, ouvindo, querendo perdoar e não encontrando palavras para levar os pecadores à contrição.
Peço que me dêem mais uns instantes para continuar relatando o que se passou comigo, porque pode ser útil a alguém que pense que só a confissão e a reza poderá levar ao paraíso, ao lado do Pai. Fiz isso pelo menos uma duzentas vezes e não me cansei de rezar e rezar, pois, quando estava nas trevas, dentro do confessionário, sentia-me esquecido das palavras amorosas do pai-nosso e da ave-maria. Foi pior do que se estivesse sendo crestado pelas labaredas do fogo. Pensava que tudo era mentira, que não existia o inferno. Só me confessava e comungava para ficar imune de qualquer penalidade. Como me enganava! E como se enganaram todos aqueles que serviram para a farsa. Agora que passeei pela praça e vi como agem as pessoas, senti força muito grande para analisar a minha própria atitude.
Quando estava vivo, ajudava minha mulher no serviço de parto. Era uma fazedora de anjos, como se diz na gíria. Eu não achava nada certo e, por isso, corria logo contar ao padre o que vinha fazendo. Ele me pedia para não continuar e dizia que minha mulher estava condenada a ir para o inferno, porque não ia à missa, nem se confessava, nem comungava. Era impenitente, impiedosa e materialista.
Morri logo, com quarenta e cinco anos de idade. Ela ficou viva, mas nunca mais ouvi falar dela. Queria encontrá-la deste lado, pois pensava que minha condenação seria permanente e que, um dia, ela iria confessar-se comigo. Mas a surpresa foi grande quando percebi que os pecados que ouvia das pessoas eram sempre os mesmos que eu mesmo contava, o que me encheu de terror a alma.
Foi aí que descobri que estava no inferno, sem ter possibilidade de fugir. Queria sair do confessionário e não conseguia. O máximo que fazia era olhar para fora, quando via uma sangueira e crianças muito pequenas, fetos, debatendo-se nas mãos de pessoas que riam e diziam que estava na hora delas. Eu não entendia nada, porque não sabia que os pequenos anjos eram grandes pecadores, que estavam sendo castigados. Eu é que era o vilão de toda a história. Aí me revoltei contra Deus, pois pedia para ser perdoado e dizia as preces que o confessor me mandava. Agora sei que era muito hipócrita, mas, quando me revoltava, não sabia de nada.
Se puder parar de lembrar daquela fase, agradeço, pois foi a muito custo que saí daquela espécie de hospício-mental de loucura visual e consciencial. Digo isto para demonstrar que me sinto bem melhor, capaz de algum discernimento.
Devo pedir perdão a quem me estiver ouvindo ou lendo as palavras que o irmãozinho está escrevendo, porque ninguém tem nada com o que fiz. Poderia acusar minha mulher, mas não fiz isso nunca, porque o dinheiro que ela ganhava me servia muito bem para tudo o que desejava na vida.
Não queria dizer, mas aquele dinheiro era outro peso enorme que me afastava de minha própria sanidade. É que bebia e ia visitar certas casas, com aquele dinheiro, e isso o padre me recriminava muito. Quando consegui sair do manicômio espiritual, fui parar nos braços das amigas. Não queria ficar lá, pois ouvia as palavras do confessor, mas não conseguia afastar-me, sempre ouvindo e ouvindo os sermões. Nessa luta passei muito tempo, até que resolvi pedir perdão a Deus, sinceramente arrependido, prometendo nunca mais achar que estava sendo muito esperto em ganhar aquele dinheiro fácil para gastar com meus vícios.
Preciso dar a explicação das palavras iniciais, quando acusei as pessoas de estarem sendo piores do que eu. É que o que vi era muito mais sincero do que o que eu fazia, pois todos os meus pecados eram escondidos, e as pessoas fui capaz de reconhecer em suas intimidades. Peço que me perdoem pelas ofensas e pelo mau juízo, pois estou vendo que não fui justo, porque não tenho nada a ver com o que os outros fazem, do mesmo modo que ninguém poderá ser acusado pelo mal que pratiquei.
Vou ficando por aqui, pois me sinto bem aliviado da pressão, graças aos amigos que me trouxeram, cuidando de mim, afastando os fantasmas dos pequeninos que me queriam ferir e arrastar de volta para o confessionário. Devo dizer que acho que têm razão em estar bem bravos comigo, porque, quando a pessoa quer voltar ao mundo, deve ser respeitada. Cometi os crimes mais horrorosos, embora não tivesse sido a pessoa principal, pois nunca eu mesmo fiz nada para provocar os abortos. Só ia com as mulheres para casa, cuidando para que não revelassem à polícia quem é que havia feito o trabalho, ameaçando na surdina e prometendo vingança. Sei que não agi direito e pago por todos esses crimes, mesmo alguns que não tenho a coragem de revelar. Os amigos sabem do que estou falando e não vejo necessidade de assustar ainda mais as pessoas, pois a consciência está bem desperta e não me canso de dizer que sou culpado.
Acho que, se o padre me tivesse excomungado, até poderia ter sustado a minha atividade antes. Quando estava preso no confessionário, ameaçava os que lá iam com a denúncia ao posto policial; pois acho que o padre fez muito mal em ter guardado segredo de minhas atividades. Peço a Deus que o medo da culpa afaste todos os criminosos de sua senda de crimes, já que pouca colaboração têm das pessoas que deveriam tomar a si o encargo de castigá-las.
Por fim, devo dizer que morri na prisão, onde atormentei bastante o confessor, com a promessa de ser bom. Não deu tempo de me reformar, porque as pessoas me lincharam, dando-me morte prematura, porque não suportaram saber o motivo de estar preso. É que estuprei e matei uma menina de nove anos. Esse o pior de todos os crimes e pelo qual fui punido com mais de trinta anos de trabalhos forçados em hospital psiquiátrico, onde devia ajudar as pessoas a limpar os excrementos que eram depositados pelos pacientes em todos os cantos. Sei que não fui bom com essa menina e que não deveria tê-la enganado com promessas que não podia cumprir. Sei que as minhas razões se perderam diante de tanta perversidade. Sei que a crise nervosa ainda agora me esfarrapa a cabeça e me sinto perturbado. As fezes que carreguei durante tantos anos eram fictícias, mas me enlamearam verdadeiramente, e eu me sentia sujo, a carregar com as mãos as minhas perversidades. Que momentos de angústia e de dor, Santo Deus! Que momentos de sofrimento!
É por isso que bendigo a ajuda dos companheiros, destas entidades bondosas, que me foram buscar lá no meu canto de escuridão, de onde não saí senão para tomar este lenitivo de amor. Agora estou podendo locomover-me e sinto que a vida vai prosseguir. Como gostaria de não ter escrito nada disto e, no entanto, bendigo esta mensagem, que parece fixar os meus dramas, limpando-me por dentro. É por isso que peço para que o irmão não jogue fora este papel, pois tudo o que aqui registrei pode voltar de novo para dentro de mim, pois as vibrações parecem ter ficado todas impressas.
Peço perdão pelo desequilíbrio da manifestação. Gostaria de poder fazer algo de bom que compensasse algumas das faltas. Se este longo desabafo, se este relatório, se esta mais verdadeira e fiel confissão servir para purgar os crimes, através da sustação de outros, que possam ser impedidos pelo temor de que venha a ocorrer o mesmo com algum dos leitores, aí ficarei um pouco feliz e satisfeito, pois logrei tirar algum proveito deste chorrilho de asneiras.
Pedem-me para rezar um pai-nosso e uma ave-maria, miserável e pobre pena para quem tanto pecou, diminuta penitência, mas que me fará derramar lágrimas de sangue, se todo o arrependimento se transformar em agradecimento pela bondade do Senhor. Deus seja louvado! Para sempre seja louvado!




Comentário



O irmãozinho está seriamente empenhado em se libertar dos males conscienciais que se infligiu durante mais de setenta anos, desde que abandonou a carcaça. Não sabia que havia transcorrido tanto tempo, motivo pelo qual se admirou das pessoas com quem contatou durante o passeio que demos.
É preciso dizer que tomamos a figura do médium para demonstrar-lhe o que havia perdido com seu desvario, de modo que a descrição das personalidades das pessoas não deve enganar o mediador ou qualquer leitor menos atento às possibilidades que temos de transformação da aparência da realidade junto aos sofredores. Foi ilusão criada por nós para favorecer a aceitação de ficar ao lado do médium, para a escritura catártica.
Como sempre, encaminharemos a pobre criatura para a organização mais conveniente para seu tratamento. Não vamos especificar qual nem descrever as razões da internação, dado que muitos tópicos deixaram de ser levados ao conhecimento dos encarnados, havendo inúmeros outros fatores determinantes de nossa decisão. Não é para matar a curiosidade dos leitores que lhes trazemos situações tão dolorosas e angustiantes. É para pedir-lhes as preces colaboradoras, para apoio e sustentação do trabalho socorrista.
Fiquem todos na paz do Senhor!







5

OS PENATES





Meus Amigos, não quero ser mais sábio que ninguém, mas existe no mundo muita ignorância. Apesar de ter cursado a universidade, sinto-me na condição dos mais infelizes. Sei que muitas palavras surgem sem que possa o médium suster-lhe a afluência, mas não se satisfaz o meu espírito com qualquer escrita. Não estou a fim de me revelar tal qual sou, porque não interessa a ninguém mais saber do meu passado.
Disse, no começo, os penates, para dar a ilusão de que iria fazer texto de referência aos superiores, àqueles amigos que prometeram velar por mim durante toda a vida. Mas não fui atendido, hipócritas e mentirosos. Por que me deixaram fazer tanta coisa errada, como se fosse criminoso qualquer? Sei o quanto devo ter prejudicado as pessoas, porque fiquei durante trinta e cinco anos sem possibilidade de contatar nenhum parente ou amigo.
Tenho dificuldade até de fazer este pequeno discurso, quando era dos mais preeminentes oradores dentre os companheiros de turma.
Estudei advocacia e fui brilhante na defesa de muitos que eram, esses sim, verdadeiros criminosos. Apunha a minha verborragia diante do juiz e não havia promotor de justiça capaz de derrubar-me os argumentos. Mas não fui capaz de levantar a minha defesa durante todo o tempo que estive nas trevas.
Gostaria de poder recordar as façanhas dos tribunais, mas, por mais que me esforce, não consigo senão dizer estas patranhas, sem condições de arquitetar qualquer discurso verossímil, em que a minha figura possa transparecer grande de alguma forma. As palavras que me vêm em chusma à mente não formam sentido e o amigo que escreve só aceita depositar no papel algo que considera lógico e plausível.
Pois vou ter de me contentar com tão pouco, eu, que tive a oportunidade de crescimento intelectual?! Mas que miserável condição, que não me oferece os recursos que estão presentes e latentes em minha cabeça!
Basta que diga o que fiz de mais errado para merecer tanto castigo, para conseguir reaver os tesouros do antigo linguajar?
Pois é bem pouco. Devo dizer a verdade? Como é que perceberam que ia inventar história mentirosa, falsa? Pelas vibrações que emito em forma de tendência a esta ou aquela emoção, como se fora verdadeiro registro efetuado em aparelho próprio para apanhar criminosos pela palavra, inculpando-os, ou libertando os inocentes. Mas isso não é permitido nem sequer perante as leis dos homens. Aqui a fidedignidade de anotação é perfeita?
Não vou discutir quando o juiz é, ao mesmo tempo, o acusador, o júri, o executor da sentença e a polícia que mantém o prisioneiro encarcerado.
Vocês são tão poderosos que não se dignam sequer a se defender. Será que sei que estou executando simples provocação?! Pois é verdade. Não há como fugir de pensar e repensar, dizer a para ouvir como resposta b. Não dá para iludir a mim mesmo, como foi o que fiz durante toda a vida.
Na juventude, tinha sede de glória. Desejava sobressair-me nos estudos e na profissão. Queria fazer nome junto aos togados. Queria realizar o desejo de ser juiz. Mas não consegui passar nos concursos e comecei a acusar todo o mundo de corrupção. Quase acabei destituído do direito de exercer a advocacia, tendo sido processado e condenado a me retratar perante a opinião pública.
Mas vinguei-me das injustiças, pois defendi com brilho muitos criminosos, que me pagavam regiamente. É verdade que me comprometi diretamente com o crime, até mesmo depois da morte, tanto que me sentia lúcido o suficiente para ir obsedar os advogados que desejavam preservar os grandes criminosos, à vista dos pagamentos que auferiam. Sendo assim, não fui mais que parte das quadrilhas, designado para serviços sujos, até de pombo-correio, a levar e trazer ordens de execuções ditadas por aqueles que me pagavam. Vi tudo isso acontecendo, quando vagava pela erraticidade, e me divertia favorecendo a mente daqueles que não conseguiam ver o espírito de justiça, só os interesses particulares.
Aos poucos, porém, o meu retrato verdadeiro foi sendo delineado nas ações criminosas e subversivas justamente daqueles a quem perseguia. Não aceitava nos outros que se avantajassem à minha fama junto aos assassinos e quadrilheiros, pois fora o único sucesso que conseguira na vida. Enquanto a minha lembrança persistia na mente dos que me pagaram, eu ainda lutava asperamente para fazê-los não me esquecer. Mas, na verdade, nada consegui, a não ser ver nos outros aquilo em que eu mesmo me tornei.
Após longo labutar sem sucesso, fui aprendendo a perceber que o espírito de justiça existia, pois o sofrimento não podia mais ser senão a pena que me foi cominada por algum severo juiz. O meritíssimo não ouviu as exposições de motivo, mas julgou diretamente, sem direito a apelo recorrente da sentença estabelecida. O pior de tudo é que cumpri a pena em liberdade, como se a consciência fosse o guardião da cadeia, a manter-me na cela da ignorância.
Agora que demonstrei pontinha de arrependimento e compreensão dos males de que infestei a vida, eis que me dão oportunidade de me retratar, como se fora verdadeira revisão do processo pelo qual fui condenado.
Sinto-me, por isso, um tanto revoltado comigo mesmo, porque não consigo ferir ninguém como sendo o causador da desdita. Se pudesse dizer que meus pais não me souberam educar, até que teria muleta em que me apoiar. Mas a consciência não me permite levantar qualquer suspeita de que não tivessem agido por meu bem, com bastante amor e benquerença. Os meus irmãos convivem comigo em harmonia e amizade, mas faz tempo que estou afastado deles todos. Não poderiam ter-se constituído em meus advogados, representando a minha causa, apresentando provas comprobatórias, se não de inocência, pelo menos de circunstâncias atenuantes?
Mas que estou a dizer? Por certo esta oportunidade deve ter sido alcançada por algum requerimento em meu favor, justamente de quem comigo viveu, sofreu, cresceu e me amou, apesar das deficiências.
Não deixei prole, porque não contraí matrimônio. Acho que não me foi dado o poder de gerar filhos, para não ter a quem desandar e educar para os mesmos crimes que praticava e que me sustentavam.
O amigo escrevente suspeita de que haja algo por trás das palavras, algo que estaria sondando como algum crime de morte ou pederastia. Pois as vibrações que pensei escondidas foram pressentidas com exatidão. As duas circunstâncias estão impressas na consciência. Mas penso que isso seja por demais cru para ser apresentado por escrito. Fique só aí o registro e pronto. Ora, a consciência sabe reconhecer os débitos, senão o meu pobre orgulho será tripudiado e me sentirei um lixo diante dos encarnados.
Por favor, liberem-me dessa parte tão penosa, pois não me convenci de que a feminilidade possa ter que ver com os sofrimentos por que passei. O sangue derramado, sim, posso ver como o motivo pelo qual fui afastado de todos os que me amavam e a quem dedicava afeto.
Pois era isso que tinha a informar e a mais não vou atrever-me. Sinto-me um pouco melhor, mas não consigo ver restaurada a argúcia na elaboração dos entrechos jurídicos, com que abalava os juízes togados. O que mais sinto, nesse aspecto, é a necessidade de retornar ao início do depoimento e fazer referência, de novo, às mesmas coisas. Do jeito que apresentei a defesa, parece que de nada irá adiantar, pois toda a minha vaidade continua a fustigar-me, no sentido de concretizar peça que possa servir-me de tese, para me furtar à acusação maior.
Ainda bem que cumpri parte substancial da pena, pois, senão, não conseguiria nada mais do que tecer alguns comentários a respeito das más vibrações das pessoas com quem consegui contatar. No meio deste pessoal, posso perceber que existem bandos de pensamentos negativos a me perseguir, como na época em que me digladiava com outros espíritos para assumir a obsessão das vítimas preferidas.
Peço perdão por não ter trazido luz nova a estes amigos que tão diligentemente cuidam para não serem envolvidos pelas malvadezas dos que querem ver-me de volta.
Se puder oferecer algo de meu para o socorro que se arma, digam o que desejam que farei o possível para produzir as vibrações favoráveis. Só peço que me ajudem a rogar pela benevolência do Pai, que é o que mais se me faz presente na cabeça, pois toda vez que penso em libertar-me deste martírio, logo me vem à mente que não sou merecedor de complacência e comiseração. Aí afundo em pessimismo e agonio-me na ânsia de descobrir os caminhos do perdão e do arrependimento.
Graças a Deus, tenho tido estes clarões de luz que me fazem vislumbrar a porta de saída deste cárcere de dor. Parece que os amigos estão conseguindo fazer a porta abrir-se, para que venha a espairecer, pelo menos por alguns momentos. Graças a Deus!




Comentário



O amigo sofredor, finalmente, derrubou a barreira que o prendia, deveras, a seu círculo de sofrimento, pois não admitia a hipótese de haver justiça divina, inviolável, impossível de desbloquear através de argumentação, como se acostumara com os tribunais da Terra.
Agora está em condições de receber ajuda e será conduzido para os setores de assistência àqueles que retornam das cavernas do báratro consciencial.
Aos amigos que nos têm acompanhado neste trabalho de assistência, o mais sentido agradecimento pela força que têm proporcionado, no sentido de facilitar a tarefa. Entretanto, devemos insistir em que as preces sejam contritas e o amor estendido como manto de proteção para quem está em vias de recuperação.
Queremos esclarecer que, verdadeiramente, houve intervenção dos parentes relativamente ao depoente. Por outro lado, sua capacidade intelectual está bloqueada, porque a consciência o acusa, ferozmente, de se ter utilizado mal dos recursos que lhe foram o apanágio da personalidade. Não se trata, portanto, de restrição imposta por algum espírito superior, no intuito de promover-lhe o arrependimento, mas de censura própria, estabelecida a partir do sentimento de culpa, por se ver arremessado na rua da amargura pela própria insensatez. O que utilizou com real eficiência em favor da defesa dos crimes e de seus autores, deixou de fazê-lo para si mesmo e isto não perdoou, não chegando mesmo a compreender. Haverá que passar por bom período de restabelecimento, para poder levar a efeito o desbloqueio do intelecto, o que ocorrerá à medida que se for compenetrando da verdade e dos reais motivos que o levaram a agir em detrimento de seu progresso.
Queira Deus que todos possam receber dos parentes e amigos o mesmo grau de assistência e de interesse em vê-los curados, pois está sendo muito forte a ajuda que lhe vem sendo prestada, apesar de terem decorrido trinta e cinco anos de existência na erraticidade. Não fora isso e não lhe saberíamos categorizar a extensão dos padecimentos.
Orem, amigos, pela redenção dos que agravam a existência, através das atitudes irrefletidas que ferem justamente os atributos e as qualidades que deveriam constituir-se nos recursos da salvação. Avaliem se vocês mesmos não estão desperdiçando os principais dons e utilizem-se da prece para fazer chegar-lhes a ajuda dos protetores.
Fiquem com Deus!







6

DUPLA RECORDAÇÃO





O dia está fervendo. Maravilhoso sol se expande em luz, de modo que as pessoas se sentem afogueadas, desejosas de líqüido, procurando matar a sede com copos e copos de refrigerantes e de cerveja. Sinto que meu desejo também é esse, pois a garganta está ardendo, mas não consigo aproximar-me de ninguém que possa oferecer-me o lenitivo de simples copo d água.
Este sofrimento me está matando, como se fosse possível sofrer outra morte horrorosa, qual sofri na última peregrinação. Era pequena quando fui mordida por cachorro louco. Não sabia o perigo que estava correndo e o sofrimento foi muito grande.
Quando cheguei a este lado, lamentei bastante a desdita de ter de partir tão cedo e lancei contra Deus as mais horrorosas pragas, infestando a alma de negro ódio e pavoroso descrédito na justiça do Pai. Achava que merecia muito mais da vida, pois, com oito aninhos, não poderia eu oferecer à maldade qualquer obra digna de tão pavorosa pena.
Custei para entender que havia perdido excelente oportunidade de compreensão dos divinos desígnios, pois obstei, com cega atitude, que a memória me valesse para estímulo da descoberta da verdade.
Sei agora de tudo. Sei que perdi a oportunidade de crescimento e também quanto fui perversa e má em encarne anterior. Mas foi preciso muito trabalho de ajuda de amigos e companheiros na espiritualidade, para fazer-me despertar para a realidade.
Ainda agora tremo ao me lembrar de quanta dor causei e quão estúpida fui em não ter aceitado o sofrimento como conseqüência natural dos débitos. O interessante é que, por retrocesso psíquico, consegui reaver a memória do momento em que anuí em ter vida curta e morte penosa. Com que não concordei foi deixarem-me livre para o destino que se abria luminoso para a vida, em felicidade, e, de repente, sem que suspeitasse, eis-me às vascas da morte, pronta para retornar, sem qualquer preparação.
Minha família é católica, de modo que o sofrimento foi computado como resultado da vontade do Criador, sem, entretanto, qualquer consideração de ordem moral. Sendo assim, os meus parentes, que ainda vivem, elevam o pensamento ao Pai e rezam para minha alma, como se fosse anjo de candura, batizada e feliz no reino de Deus. Isso me atormentou durante bom tempo, pois ia visitá-los, para pedir-lhes preces que me aliviassem o sofrimento, e só conseguia lágrimas e vibrações de desespero pela falta que lhes fazia.
Rogo ao Criador que me dê forças para ir amparar os pobres velhos, o que começo a fazer a partir desta manifestação. Quem sabe, um dia, ao se lembrarem de sua Rute, venha a inspirá-los a ler esta comunicação, para o que peço aos orientadores permissão para publicação.
Dizem-me que esse caminho será o mais longo e difícil; que é preferível ir em busca de auxílio das equipes de socorro espiritual afeitas a esse tipo de assistência.
Pois bem, tudo farei para levá-los à compreensão da real destinação de sua filhinha.
Pedem-me para compreender que a violência de minhas atitudes não recomenda que me aproxime de ninguém, sob o risco de tornar as pessoas nervosas, pressentindo só que haja más vibrações. Eu me tornaria obsessora ao invés de alguém desejoso de ajudar a se encontrar a verdade. Faria melhor se orasse por eles, sentidamente, pedindo a Deus que os proteja de ter más impressões da vida.
Farei isso, certamente, agora que estou reconhecendo a verdade das palavras que me são endereçadas.
O escrevente pede-me para relatar algo que possa fazê-lo ciente de minha verdadeira condição, uma vez que lhe parece, às vezes, que sofro muito e, outras, que estou bem e lúcida. É que recebo a magnetização e a influenciação dos irmãos que me acompanharam até a casa, para escrever o que sinto e o que desejo que venham a fazer por mim.
Quando me referi aos meus pais, na verdade, estava querendo aproximar-me deles, porque reconheci as pessoas que me deviam muito do encarne anterior, de modo que não aproveitei o ensejo senão para ver se me livrava das pressões que estão exercendo sobre mim.
Reconheço que minhas tendências não são boas e isto faço coagida pela circunstância de ter de falar a verdade, pois desejo receber o socorro destes irmãos. Se me rebelar, se demonstrar que não estou de acordo com a vontade deles, com o trabalho, conforme me dizem, sei que vou perder a oportunidade de livrar-me de muitos sofrimentos.
Quando consegui internar-me na carne, fiz promessas que não cumpri. Não quero agora passar pelas mesmas crises de consciência por proceder exatamente do mesmo modo. É preciso fazer valer a experiência e transformar o sofrimento em aprendizagem de algo valioso para a personalidade.
Quero agradecer aos amigos que me assistem a facilidade que estou encontrando com o uso das palavras. Quero crer que o escrevente poderia obter ditado melhor conduzido, se fosse qualquer um deles a realizá-lo. Quanto a mim, a pouca instrução que trago da penúltima viagem pela Terra só é suficiente para garatujar algumas imprecações, de maneira que a terminologia não deve ser imputada a meus débeis recursos.
Veja como a frase acima ficou bem redigida e como a desenvoltura que demonstro possuir pode levar qualquer leitor a enganar-se quanto às minhas possibilidades intelectuais.
Pedem-me para não ser falsamente modesta, pois a minha educação remonta a vidas anteriores, pessoa de muitas leituras que fui um dia. Dizem-me para não me fazer de coitadinha, que não haverá ninguém para se condoer por uma fantasia e que já basta a péssima pessoa que sou, para provocar as preces mais emocionadas.
Realmente, a minha luta tem sido essa: dizer mentiras sobre mentiras, de modo que até eu mesma acabo não sabendo mais onde começa a verdade e onde está o intuito de disfarçar a realidade.
De coração, peço perdão por ter ocupado tão mal o tempo dos amigos. Sinto-me aliviada e pronta para receber as ordens que me forem dadas, na intenção de me ser proporcionado algum lenitivo. Como gostaria de obter permissão para escapar de todo este mal-estar e de voltar à carne, para brincar com as bonecas, alheada dos problemas que submergiram no esquecimento de minha infância! Essa é a recordação que me servia de muleta, para conseguir afastar um pouco a dor das vibrações horríveis que lançava contra a Divindade, nas crises em que a cabeça se confundia, durante as quais parecia enlouquecer.
Agora estou sentindo-me bem e peço a Deus que providencie o melhor de suas bênçãos aos irmãos que me atenderam.
Não fique o médium penalizado por não lhe ter oferecido algo bom para sua pena tão operosa. Certamente, os instrutores comparecerão para complementar a minha fala, já que estão a me garantir que as orientações esclarecerão os pontos que tiverem ficado obscuros.
Grata a todos. Espero que me perdoem.




Comentário



Em verdade, a irmãzinha obteve a intervenção de diversos amigos da espiritualidade, para que pudesse prestar o depoimento. Pelo retrospecto que nos foi permitido realizar, pudemos perceber que todo o grupo vem lutando tenazmente por conseguir melhorar, pois, por diversos séculos, estão juntos em vidas de expiação e confronto, de sorte que, atualmente, podem contar com o conhecimento da intimidade consciencial uns dos outros. Longe da perfeição, percebem, contudo, de que fraquezas têm de se livrar, para o que estão despertando celeremente. Há alguns, entretanto, que se encontram mais atrasados, largados no báratro ou internados no mundo. O que mais os atemoriza, neste período, é que a liderança está em mãos menos hábeis, já que o chefe do grupo se encontra peregrinando na carne, sendo, justamente, aquele que se tornou pai de nossa amiga.
Este preâmbulo deve satisfazer a curiosidade dos leitores para as explicações que se seguirão e que, sucintas, irão desvendar alguns segredos da loucura da depoente.
É que Rute não conseguia reconhecer os amigos que desejavam levá-la à compreensão da necessidade de sujeição ao destino que lhe foi traçado e com o qual havia concordado. Revestidos de autoridade, determinaram-lhe saudar os pais, para avaliar quanto estavam sofrendo por ela, razão do muito amor que lhe dedicam. Ao invés disso, lastimou tão-só a incompreensão de sua condição inferior e abusou do poder de vergastar a divina justiça, increpando-a pelos males que sofria.
Não iremos apontar falhas de caráter, analisando o que de malícia se contém no longo texto. Cremos que os leitores sejam capazes de realizar tal façanha. O que, reiteradamente, enfatizamos é a necessidade de ver na manifestação não a pessoa que a produziu, mas os fatos e condições que a levaram a isso, para rogar ao Senhor que o esclarecimento se transforme em lição de vida, a ponto de tornar-se em sinal de alerta para não se cair nas mesmas armadilhas.
Quanto à pobre irmã, já se sabe: é orar muito por ela, com sincera intenção de ajuda. Vamos fazê-lo em nome dos ensinos de Jesus, que nos pediu que fôssemos bons samaritanos a acudir aos assaltados pelas vicissitudes da vida.







7

A HORA DE A ONÇA BEBER ÁGUA





Aos poucos, aquilo que estava enevoado vai esclarecendo e já posso enxergar o local onde estou.
Parece que tudo que pude na vida se esboroou, quando parti de repente. Era bem rico, proprietário de vários prédios, terrenos e diversos edifícios. Tinha até possessões de territórios vastíssimos, o que me fazia pessoa procuradíssima para o auxílio. Não tive tempo de devolver ao Pai tudo o que dele tomei emprestado, de sorte que, aos setenta e quatro anos de idade, depois de longa enfermidade, em que meu espírito permaneceu lúcido, sem que pudesse, contudo, movimentar as pernas, mas crente de que poderia voltar à vida ativa, desencarnei.
Vocês devem ter percebido que tive bastante tempo para distribuir tudo o que possuía, mas ia adiando, de modo que fui surpreendido pela morte, não porque tivesse tido a vontade de fazer o bem, mas porque não a tive absolutamente.
Foi aí que chegou a hora de a onça beber água.
Aqui aportando, não desejei desfazer-me das propriedades. Com a absurda desculpa de que era preciso avaliar tudo para dar aos parentes, amigos e instituições que cuidavam de gente necessitada, ia de um lado a outro, fiscalizando se a administração ia sendo bem feita. No começo, era até melhor do que no tempo em que vivia, porque tinha a impressão de que era bem mais fácil ficar vigiando para que não me roubassem. Contudo, chegou a hora em que meus filhos tiveram de fazer a partilha do espólio e eu já não conseguia atender à retalhação que se verificou. Chamava a atenção de cada um para o fato de estarem desfazendo-se de posses valiosas por miseráveis punhados de notas, mas ninguém me dava atenção. Ao contrário, repeliam-me com violência, pois murmuravam muito, dizendo coisas de mim, que era sovina, mão fechada, morrinha e outras expressões menos dignas, que me vejo impedido de reproduzir.
Agora estou perfeitamente compenetrado da má formação de meu caráter, embora muita coisa boa tivesse feito, menos qualquer sacrifício. Não abria mão de nada que significasse perda do patrimônio, e isso foi fundamental para que ficasse internado nas trevas durante quarenta e cinco anos, depois que verifiquei que nada mais podia fazer para manter a integridade das riquezas.
Não tendo conseguido nenhum apoio dos descendentes, busquei encontrar a minha esposa, que partiu bem antes de mim, santa mulher, que não saía da companhia dos padres e das freiras, senão para ir ajudar nos lugares beneficentes. Sabia que tinha atividades esquisitas em certas noites de reunião, em que eram evocados os espíritos, mas nunca quis achegar-me, pois achava que tudo eram artes do demônio.
Mesmo na missa, que freqüentava todo domingo, o padre não me fazia acreditar em que havia céu e inferno, nem mesmo purgatório. Eu simplesmente achava que tudo isso existia para manter as pessoas ricas e felizes, ou pobres e conformadas com a situação. Para mim, a morte levaria ao nada absoluto, por isso, não fazia questão de ligar muito para as outras pessoas.
Quando aqui cheguei, a surpresa de me ver ainda inteiro e dono de mim fez com que despertasse para a possibilidade de voltar a usufruir todas as regalias e foi isso que me impulsionou para dizer aos filhos que mantivessem tudo do jeito que estava.
Mas estava dizendo que procurei minha mulher, só que não encontrei. Quarenta e cinco anos de procura. Após esse tempo, tive notícia de que talvez pudesse vê-la, se comparecesse a este lugar, acompanhado de uma turma que me estimulou e que me comprovou que só desejava o meu bem.
Lá no fundo, havia muitos magotes de espíritos maus que me punham a correr, gritando para eu chamar a polícia para me defender, porque demonstrava que tinha muito medo e ficava agarrando as últimas moedas que conseguira esconder nos bolsos. Tanto corri de um lado para outro que, um dia, percebi que não tinha mais nenhuma. No começo, teria sentido muito e me descabelado pela perda; naquele momento, porém, a falta do dinheiro pareceu aliviar-me, porque percebi que não iria mais ter de me preocupar com a vigilância.
Enquanto caminhávamos, conversamos muito a respeito de minha mulher. O companheiro perguntou-me como achava que estaria e não soube dizer, principalmente porque só recentemente é que fui capaz de reparar no quanto tempo havia passado. Foi aí que percebi que ela poderia não estar nas trevas mas na luz e, sendo assim, estaria muito adiantada para que pudesse reconhecê-la.
Não fiz nunca nada de mal a ela, por isso não sei por que não me procurou antes para conversar comigo e me levar para lugar melhor. O amigo insistiu muito em que talvez eu é que não tivesse sentido a presença dela a meu lado. Mas não acreditei, embora me deixasse conduzir. Não sou tão ignorante que não saiba reconhecer quando alguém me estende a mão.
O que não compreendia era o fato de ter permanecido durante tanto tempo internado nas trevas, se só fora vítima do vício da usura. Foi aí que me disseram que houve muita gente que se viu prejudicada pela minha atitude. Eram pais de família que se desesperavam porque não tinham dinheiro para pagar o aluguel e eu mandava despejar; eram mulheres sofrendo fome e frio, porque não lhes dava a possibilidade de trabalhar nas minhas terras, que ficaram improdutivas, porque só as tinha como capital a ser valorizado, ao invés de ensejar às pessoas que plantassem e se alimentassem com o fruto do trabalho. Como esses cuidados não me passavam pela cabeça, fui ficando na escuridão do báratro, incapaz de atinar com a presença de minha mulher e inútil para o meu adiantamento.
O bom espírito muito mais conversou comigo mas penso que seria fastidioso reproduzir, pois acho que qualquer pessoa sabe mais a respeito do amor e da dor do que eu mesmo, ignorante de tudo que não seja acumular bens para me aproveitar dos outros.
Estava com medo de falar a respeito das outras mulheres que tive, pensando que isso poderia afastar a minha esposa de mim. Mas resolvi confessar esse meu deslize para com ela, para ver se obtinha o seu perdão, pois me parece que é a única criatura que me poderá fazer algo de bom. Sei que não estou sendo leal com os amigos que me foram buscar e que estão cuidando de mim, mas acontece que não há aqui ninguém de meu círculo de amizades.
Os meus pais e irmãos, nem pensei em convocá-los para a ajuda, pois parecia que era assediado justamente por eles, que riam muito de mim. Pelo menos foi essa a impressão que tive durante largo tempo.
Os companheiros disseram-me que isso foi ilusão do sentimento de culpa que guardava na consciência por tê-los desamparado. Na verdade, o tempo havia feito deles meus amigos, pois haviam restabelecido os vínculos de afeto que nos uniram um dia. Agora pediam por mim a Deus. Eu é que estava cego para tudo, pois, teimosamente, ficara a matutar meio de voltar a gozar dos benefícios da riqueza que fora minha perdição.
Sinto estar fazendo todo mundo perder tempo com estas histórias e com o resultado de meus pensamentos. Será que terei a alegria do reencontro ou ainda não fiz por merecer?
Dizem-me que não estou preparado e que devo restabelecer muitos aspectos da personalidade, enegrecida por tanto tempo de loucura e desvario. Se me tornar dócil e se me deixar conduzir para o tratamento, em breve obterei a capacidade de fixar a mente nos espíritos mais evoluídos, até adquirir o poder de ver e reconhecer os que me são mais próximos. A alternativa é voltar para o inferno ou ser encaminhado para encarne de sofrimento na pobreza.
Não tenho como não decidir por acompanhar os irmãos que se dispõem a preservar-me em condições de reflexão e de lucidez, pois regressar ao báratro é voltar à mente enevoada que trazia até chegar aqui, e transferir-me para novo encarne em condições desvantajosas será esquecer-me completamente de minha individualidade. Acho que vou conformar-me com a primeira hipótese, embora ainda julgue que estou sendo punido com excessivo rigor.
Dizem-me que é esse julgamento que me está infelicitando e condenando-me à cegueira moral. Por ora vou fazer o possível para compreender as razões dos amigos, pois não estou vendo neles nenhuma prova de que estejam tendo algum lucro com o fato de me iludirem.
Antes de encerrar, quero dizer que estranhei muito estar a revelar o que se passa bem no íntimo da consciência, pois não pretendi fazer confidências tão profundas. Será que isso é mérito ou demérito?
Os amigos pedem-me para não preocupar-me com a valorização de minha pessoa e dizem que isso é fruto do trabalho deles, que são capazes de extrair o que tenho na intimidade, não para revelar ao mundo, mas para fazer-me ciente do que se passa. Coincidentemente, algumas das vibrações se transformaram em palavras transcritas pelo escrevente, mas tudo com meu consentimento, conforme registro intuitivo configurado na explanação. O que não desejei ver revelado aos encarnados, de fato, ficou preservado, dando a impressão de que até os bons amigos da espiritualidade não tiveram conhecimento.
Dizem-me que, se quisessem, saberiam de tudo, mas não lhes interessa a dor, senão o lenitivo dela. Muito lhes agradeço pela deferência do tratamento, já que estou a recuperar a polidez.
Sinto-me aliviado e bem gostaria de expandir-me em alegria, mas estou sendo avisado para suspender o relato.
Só desejo agradecer aos amigos tudo de bom que fizeram por mim. Que Deus ampare a todos e lhes dê a possibilidade de continuar ajudando as pessoas, porque é justamente isso que lhes dá a felicidade!




Comentário



Bem pouco devemos acrescentar aos dizeres do carente amigo. Adotamos o sistema de fazê-lo consignar as perguntas e as respostas, as dúvidas e as soluções, o que nos levou a prestar esclarecimentos indiretos ao leitor. Isto talvez o leve a supor quão diversificados são os métodos à disposição para o socorrismo e a informação mediúnica do fato.
Verdadeiramente, o irmão não era ignorante das habilidades humanas, nem tinha o intelecto pouco desenvolvido, o que nos facilitou o processo. No entanto, corremos o risco de apresentá-lo hipócrita e não preso a reais débitos de caráter moral, que o impediam de raciocinar livremente. Se estivesse menos apegado aos valores materiais, não teria perquirido a respeito de situações tão corriqueiras e tão simples, pois o só bom senso lhe daria todas as explicações. O mais que fizemos, portanto, foi despertar-lhe a consciência para os fenômenos espirituais que lhe deixavam enevoado o pensamento, primeira informação prestada.
Daqui por diante, estando perdidas as moedas derradeiras que pensava estarem em seus bolsos, tudo transcorrerá bem rapidamente, dado que todos os familiares estão empenhadíssimos em reavê-lo para o seu convívio.
Quisemos deixar no ar a esperança do regresso, para demonstrar que o trabalho tende a frutificar em doces alegrias. Queira Deus esta semente possa ser plantada em outros terrenos férteis e promissores!







8

DESPERTAR





Aos onze anos de idade, deixei o corpo físico para adentrar o mundo dos mortos. Quando cheguei, esperavam-me os meus avós, pois vim com muita pena de morrer e isto foi considerado normal, porque a minha razão não se havia formado. Mas nem por isso foi-me possível, desde logo, descobrir quem realmente era. Foi preciso passar uma temporada em companhia de outras crianças que, como eu, não tinham noção do que ocorria.
Lentamente, fui ampliando minha compreensão, até que pude perceber que a vida pouco adiantara na consecução dos objetivos de meu encarne. Evidentemente, o acidente que me vitimou não estava nas cogitações dos patrocinadores espirituais dos eventos que me dariam sustentação moral para progredir.
Hoje, lastimo um pouco que a oportunidade não tenha produzido frutos e me apresto para novo ingresso, sem que haja qualquer dor ou desespero. Há que se considerar a minha completa ausência de culpa pelo fato de me ver arrastado a tão penuriosa condição.
Para que não se completasse qualquer quadro de horror, fui impedido de reconhecer-me completamente, não me tendo sido permitido senão optar lucidamente por deixar nas mãos dos benfeitores proporcionar-me outro encarne, que visará aos mesmos propósitos do anterior.
Nesse processo de reencaminhamento, pude perceber que minhas condições intelectuais e morais não são perfeitas, embora méritos devo ter tido para que me constituíssem em modelo para esta dissertação. Apesar, no entanto, de evidenciar tanta facilidade na escrita, não tenho permissão para adentrar os mistérios da existência, o que me faz absolutamente interrogativo quanto à necessidade de me expor novamente ao martírio do desconhecimento do futuro. Enfim, para que não me revoltasse e não atrapalhasse o processo desta nova encarnação, disseram-me que poderia deixar anotadas algumas palavras de conforto para meus pais, que ficaram na Terra condoídos pela perda do filho querido.
Mas eu não conseguiria atingir diretamente sua sensibilidade, pois não acreditam na possibilidade destas comunicações, então, para não perder tão maravilhosa oportunidade, tentei fazer breve relato das condições em que se vê o espírito ao qual lhe é furtada a vida, sem que tenha perpassado por todos os itens de sua destinação.
Eis que fui atropelado fora de hora. A dor que senti nas pernas e o sofrimento moral da perda da vida muito novo valeram-me muito para receber imenso apoio e cuidadosa atenção. Meus avós estavam penalizados com a minha condição de inferioridade e tudo fizeram para aliviar-me a tensão, de sorte que não me visse na angustiosa posição de quem se volta contra o Criador, argüindo-lhe a justiça.
A perspectiva de ingressar em novo lar deixa-me bastante aborrecido e isto tem pesado um pouco para a competente miniaturação por que deverei passar. Tenho rejeitado diversas famílias e a consciência tem ficado cada vez mais lúcida. Temo que chegue a época em que me vá inteirar do verdadeiro ser que sou e isso será absolutamente oneroso para o regresso ao mundo da carne.
Fazem-me acenos para que deixe claro que sou o real culpado por não ter conseguido o renascimento, pois não desejo perder as regalias que tinha na última família. É verdade, os encarnes que me estão sendo oferecidos estão em condições de muita inferioridade social e financeira com relação ao bom convívio que deixei em aberto para outros seres que estão programados para os meus pais. Essa luta contra a inveja da facilidade que os outros estão encontrando é que me tem atormentado o íntimo. Não que chegue a sofrer, a ter chiliques ou delíquios por me ver afastado dos meus pais. Afinal de contas, tenho os meus avós, que me incentivam a me compenetrar de que devo atender aos seus apelos. Se, ao menos, me pudessem garantir que a família estabelecida para me receber vá progredir na vida até que me veja consciente de ter de trabalhar por minha conta, aí aceitaria de bom grado.
Estão dizendo-me que quero forçar as condições para o novo encarne, à vista de supostos débitos da vida para comigo, mas não é exatamente isso o que se passa. Na verdade, até que tenho fé e esperança em poder fazer o melhor para cumprir os compromissos, mas tenho medo de que, uma vez internado na carne, venha a perder esse estímulo e, aí sim por culpa minha, o ensejo do progresso.
Queira Deus que não desperte completamente e que consiga fazer com que os irmãos que estão tratando de meu caso me conduzam logo para a sala de condicionamento de encarnação, antes que eu faça por perder tudo.
Fiquem os amigos na paz do Senhor e não se preocupem com minha condição. Façam por mim a gentileza de orar algumas preces, mesmo que muito tempo venha a se passar desta comunicação, pois acredito que, por muito tempo, estarei na situação de necessitar de muita ajuda.
Dizem-me para não afastar-me, pois tudo o que disse pode representar sério ônus para as reais provas de amor dos amigos e parentes por mim, pois não devo tentar fantasiar situação alguma para iludir a quem quer que seja. Pedem-me para revelar que estou totalmente disposto e que me debati durante muito tempo nas trevas, recusando-me a aceitar os encarnes programados. Pedem-me para dizer que estou finalmente em condições de prestar totais esclarecimentos sobre quem verdadeiramente sou e que me sinto integralmente dono da memória.
É bem verdade. O retrato que pintei foi o que se desenhou para mim anteriormente à rebeldia. Queria deixar o leitor condoer-se por mim, sem lhe passar a verdade. Sinto-me envergonhado em ter de fazer esta evidência. Aliás, a vergonha foi que me impediu de vir diretamente com a história atual de meus desgostos. Sei que perdi as chances que me foram proporcionadas e isso fez arrepender-me profundamente de minha inútil falta de resignação aos desígnios do Senhor.
Se não cheguei a revoltar-me, abertamente, contra a divina justiça, no seio da alma, detestava o fato de ter sido afastado de meus pais e de vê-los a brincar com meus irmãozinhos, até mesmo com aquele que chegou depois de minha partida, como que a preencher o lugar que deixara vago.
Sinto imensa vontade de abandonar a pena e isto está refletindo no instrumento que me ofereceram, como se fora ele mesmo quem estivesse sentindo a sensação da vontade de suspender o serviço. Tenho-lhe dado bastante trabalho nesse sentido, mas a revelação dessa ânsia e da vibração correspondente deve atenuar os efeitos. Não creia que os sentimentos sejam seus, caro amigo.
Pois bem, resta explicar, a pedido dos irmãos que me conduzem o pensamento, por que demonstro tanta desenvoltura na exposição do que se passa neste momento, ao tempo que pareço deixar certa angústia produzida por sutil afloração do sofrimento que se desencadeia no interior. É que aprendi a manipular as emoções, sendo perfeitamente capaz de parecer quem não sou, como deve ter ficado bem claro ao início deste escrito. Por isso, essa ambigüidade, esse dilema que se instala em cada frase que escrevo. Se me fosse dado optar, creio que o primeiro defeito que iria suprimir seria exatamente esse. Como a cura do mal talvez me leve a confusões mentais, pois não tenho a certeza de que me manterei em condições de raciocinar livremente, uma vez que me parece que tudo que me vem à mente seja em virtude de elaboração maquiavélica, eu restrinjo as atividades de purificação, forçando para que todas as frases, toda a expressão contenha algo de malicioso ou de falso. Este trecho todo foi ditado pelo amigo que me sustenta, como se se fizesse profunda análise de meu ego, de forma que o consciente pudesse refletir, com inteireza de domínio, o inconsciente. É maravilhosa experiência que não pretendo perder. Se me vir capacitado a prosseguir expressando-me, comunicando-me com tanta correção conceitual, creio que muito deverei agradecer à bondade destes amigos.
Dizem-me que está na hora de afastar-me da mesa para enfrentar novos exercícios. Penso que, se esta linha de providências for mantida, muito brevemente poderei voltar a este lugarzinho para contar que estou apto a reingressar no mundo dos mortais.
Fernando.




Comentário



O bom amigo que se dispôs à análise ao vivo de sua performance moral e intelectual está conosco há algum tempo. Veio por recomendação dos avós, que muito se empenham pelo sucesso de sua recomposição espiritual. Sendo assim, é fácil avaliar que não lhe foi permitido engodar os leitores amigos, embora a sessão possa parecer propícia para isso. Na verdade, tudo que expôs reflete com precisão as confusões mentais por que passou, mesmo durante a evocação dos fenômenos psíquicos; é que lhe foi facultado reviver os passos da reassunção consciencial em estado letárgico de progressivo despertar, até a clarividência da possibilidade de restauração integral do domínio da personalidade.
O mais virá em pílulas, que lhe serão administradas à medida que for trabalhando no sentido de se acostumar à verdade existencial como coerção igualitária entre todos os seres, com direitos e deveres equivalentes, de forma a se reintegrar moralmente ao ambiente familiar. Talvez, até venha a conquistar a benesse de receber permissão para, ao voltar à Terra, ficar na companhia dos pais e irmãos, dependendo, para isso, que se estimule seriamente à compenetração dos valores evangélicos. Mas é o futuro, que só a Deus pertence...
Fiquem os amiguinhos na paz do Senhor!







9

CASO COMUM





Meu Deus, quão belo é poder usufruir de novo a luz! Quando a gente está dentro do mundo, não sabe reconhecer a simples dádiva do dia, do sol. Depois de anos de trevas, a só presença da luz na vida parece que renova todas as forças e dá ânimo novo. É como se houvesse verdadeiro renascimento.
Ao se internar no mundo da consciência culpada, a pessoa vive em pleno egoísmo e tudo o mais parece desaparecer, não se dando importância a nada em si, só ao que possa representar para nós. Ao reviver para o mundo exterior, a alma passa a notar que existem outros seres de igual valor, de sorte que a própria existência ganha com a visão dos semelhantes e das grandezas da criação.
Eu sofri a desdita de ter contribuído para o crescimento da maldade e da impostura. Volto de longa estadia pelas regiões do Umbral. Não sei como devo dizer a minha alegria por poder manifestar-me, de novo, como ser humano e temo que qualquer coisa que possa fazer venha a restabelecer os vínculos com as coisas ruins, com as pessoas erradas, com os seres que do etéreo me conduziram por extensa vida de crimes.
Não sei se tudo o que possa estar dizendo não venha a se transformar em algo muito mau, pois meu caráter não sofreu grandes transformações já que nada pude fazer de útil para ninguém. O único que me aconteceu foi ter-me arrependido do que fiz, o que se constituiu em amargo remorso e em atrozes sofrimentos. Pude compreender que a dor, a desesperação, a angústia de ter feito o que não deveria, para obrigar as pessoas a se submeterem à minha vontade, só se caracterizaram como passagem pela qual não poderia deixar de transitar, como aquele passageiro do ônibus que quer chegar a determinado destino e fica lá, no seu lugar, sentado, enquanto o motorista conduz o veículo. Nesse período, não tem mais nada que fazer que aguardar chegar o momento da descida. Pode ler, pode dormir e sonhar, pode meditar e sofrer, pode angustiar-se, sem que, entretanto, lhe seja dado o direito de retornar atrás e refazer tudo o que considera mal feito. Assim foi o período que permaneci entalado nas trevas. Agora que volto à luz e vejo a magnificência de Deus, sinto-me zonzo, sem ter direito qualquer domínio sobre mim mesmo.
Os amigos que me assistem dizem que é assim mesmo e que, se estou disposto a recuperar os direitos de cidadania entre os justos e os bons, devo resignar-me a encarar a atual condição como o fruto da árvore dos padecimentos, fruto que devo saborear durante um bom tempo.
Dizem-me também que, se a minha intenção for honesta, se não houver hipocrisia, que poderei ir com eles para tratamento. Não me prometem a cura do mal-estar, a não ser a oportunidade dela. Se eu realmente estiver sentindo o que deixei escrito, então poderei promover situações de regeneração e de recuperação, através do trabalho que me encherá de méritos, para conquistar a confiança e a benquerença dos outros.
Não sei como, mas a verdade é que os irmãos notaram que dizia só meia verdade. Pensava verdadeiramente e ainda penso que, tendo logrado chegar até aqui, seja fácil prosseguir caminhando em direção à luz. Estou realmente confuso, porque nem sequer conheço o preço a pagar pela minha recepção, já que tão mau estou revelando-me. Gostaria, contudo, de não desmerecer a atenção que me está sendo dedicada, quer pelo grupo, quer pelo que participa dando a forma de palavras às vibrações e sentimentos.
Querem que conte com minúcias tudo o que me ocorreu na vida? Pois bem, se for para me tornar melhor, irei dizer duas ou três passagens relevantes. Já senti que não posso falhar, que não devo mentir. Mas vai ser muito difícil considerar como totalmente verdadeira qualquer coisa que diga. Por exemplo, se disser, simplesmente, matei para roubar, aí poderia estar o fato, mas não a verdade, pois poderiam existir inúmeras circunstâncias a atenuar a culpabilidade ou outras a acentuá-la. Se fizer qualquer julgamento de valor, achando-me mais ou menos criminoso, ou inocente, poderei ser considerado mentiroso, e aí não ser levado em consideração.
Dizem-me que não preciso temer, se houver sinceridade.
Pois bem, desde a infância, tive a tendência a modificar a verdade; em outras palavras, acostumei-me a mentir. Por isso é que me preocupo com a forma que possa adquirir o depoimento.
Quando crescido, o mau hábito transformou-se em algo bem mais complexo e assustador: queria enganar as pessoas, logrando-as, da maneira que pudesse, para enriquecer-me. Para isso, até matei e roubei. Mas houve um acontecimento que me fez pensar seriamente em reformar o procedimento, pois fiquei enamorado de uma criatura meiga, que me correspondeu, embora fosse casada e, por isso, não poderia vir comigo sem causar sérios transtornos. Eu estava acostumado a vida de ofensas às pessoas e não ligava se ela iria deixar alguém desgostoso, se haveria de magoar o marido e os filhos. Queria tê-la para mim.
E foi isso que aconteceu. Durante quatro anos, vivemos em êxtase de amor. Eu até trabalho arrumei, coisa graúda em departamento de vendas de firma grande, pois tinha possibilidades de me apresentar bem e não estava fichado na polícia.
Mas o tempo passou e o meu mau gênio fez com que minha mulher (hesito em dizer esposa ou amante, pois acho que a queria mais que a ninguém) me deixasse, por não suportar os maus tratos que lhe causava, por excessivo ciúme.
Vejo que a minha história é muito comum e nada tem de relevante para fazer com que a escreva, no entanto, eu a vivi intensamente, chegando a matar para ter minha mulher de volta. Mas aí a polícia se inteirou do acontecido e não mais tive sossego, pois não podia aproximar-me de minha mulher, que muito ficou aborrecida comigo, por ter justamente aprontado com o verdadeiro marido dela. Essa ocorrência não tinha sido a primeira e, por isso, não titubeei em levar a morte à presença daquela que significava a minha real razão de vida.
Hoje, sei que nada do que fiz foi grandioso, mas, na ocasião, podem crer, foi o que me pareceu a atitude mais sublime e condizente com a necessidade.
Como tudo é passado que gostaria de esquecer, sinto ter de dizer aos irmãozinhos que não irei prosseguir, a menos que me inteire de que algum benefício advirá dessa narrativa. Estou cansando-me de repetir aquilo que não me saiu da cabeça nestes últimos vinte e cinco anos e que, pelo jeito, irá atormentar-me pelo restante da existência. Se o inferno for isto, devo dizer que a alegria de ter visto o sol está diminuindo à vista de ter de retornar a este estágio deprimente de minha história.
Dizem-me para não fingir nenhuma recaída, nenhum retrocesso, pois, na verdade, o arrependimento não foi tão intenso, à vista da grave preocupação que demonstrei tão-só em relação à minha pessoa, sem ter tido qualquer cuidado com aqueles a quem ofendi.
Isso é verdadeiro e sábio. Vejo que o caminho se abre para os pensamentos. Sei, agora, que, se não for ajudar os outros, como estou sendo ajudado, provavelmente deva voltar ao estágio anterior. Quer dizer que vocês, que estão tratando de mim, também passaram por crises de consciência e voltaram da escuridão?!
Nem precisam responder, pois me parece lógico que os seres perfeitos estejam em outro local, convivendo entre si e pairando longe da dor. Vejo que, realmente, estou entre irmãos, e peço desculpas por ter julgado mal algum inocente que aqui esteja, com tão forte suposição.
Finalmente, vibraram a corda certa que me fez ver quão egoísta sou. Claro está que devo partir efetivamente para o mundo exterior, mesmo que ainda se me confranja o coração.
Peço perdão ao escrevente, por não lhe dar oportunidade de registrar nada de novo, e peço para reparar as palavras que o obriguei a escrever, tendo sido tão rápido, pois algumas expressões senti que não lhe foram do agrado, como esta aqui, pois me parece que não correspondem à minha própria maneira de ver o mundo e de exprimi-lo.
Fique o caro leitor prevenido quanto a este fato, para não pensar que tudo venha escorreito à mente do escrevente; é o que me pedem para deixar consignado, pois as suspeitas de que haja misticismo são muitas.
Pois bem, a mim não me preocupam tais fatos. O que desejo, mesmo, é fugir das péssimas recordações, para o que peço, pelo amor de Deus, que não me larguem à própria sorte, que me incluam em algum programa de assistência e que, se for preciso, que me castiguem, que me prendam, que me encarcerem, mas não permitam que minha vontade prevaleça. Se não for humilde, se não cumprir a palavra, podem até me açoitar, dizendo que vocês têm por escrito a minha concordância com o fato, para o que assino a presente declaração.
Rogério.




Comentário



Não se vá o bom amigo. Fique mais um pouco para ouvir o que temos a lhe propor. Agora que seu compromisso está escrito e assumido, vamos falar do trabalho.
Você irá, inicialmente, percorrer todos os locais em que algo de mau tenha feito, para restabelecer todos os passos, pois vamos atender-lhe ao pedido de passageiro de ônibus impedido de voltar atrás. À medida que se for restabelecendo a verdade, ou seja, que, para cada efeito, for-lhe determinada a real causa, irá anotando os nomes das pessoas envolvidas, para devolver-lhes o que lhes tirou. Nessa caminhada, irá perceber que muita gente nada exigirá; antes, muitas irão até propor-se a ajudarem-no. Todavia, provavelmente, irá ter de escrever nomes de inimigos furiosos, cuja conquista e reconciliação lhe provocarão lutas internas profundas, momentos em que estaremos presentes para ajudar, e esse é o nosso compromisso escrito e assinado.
Vá com os amigos designados para encaminhá-lo, procurando, inicialmente, repousar do denso entrevero que vem mantendo consigo mesmo. Procure ficar na paz do Senhor e não tema o futuro, se você confia em que Deus é justo e misericordioso.







10

UM INTELECTUAL FALIDO





Venho, como outrora fazia junto aos que ameaçavam arruinar a vida, para trazer mensagem de muito conforto na potencialidade do espírito. Não sou capaz de me lembrar direito das palavras, mas o sentimento que expressam é o mesmo que me move neste instante, pois penalizei-me com o sofrimento das pessoas que se espojam nas fétidas lamas dos vícios e não têm recurso para compreender o quanto estão a perder.
Vejo que o amigo hesita e não tem real controle de si, por isso fica bastante fácil de lhe passar qualquer manifestação. Você, meu amigo, está perdido de sono e não tem qualquer meio de impedir-me de dominar-lhe o cérebro, mesmo que intente reação coercitiva, suspendendo a atividade.
Dizem-me que este método não conseguirá atingir o objetivo de suspensão do trabalho, pois a minha velocidade, conquanto muito superior a qualquer possibilidade de anotação, mesmo taquigráfica, se bem que o amigo não disponha de tal recurso, será sempre muito inferior à dos orientadores.
Sei perfeitamente disso e minha manifestação não pretende ser superior a quem quer que seja, nem no que respeita ao amigo que foi por mim provocado, para ver se reagia à indolência e à letargia.
Pelo que posso observar, mesmo estando bem afastado de sua capacidade, ainda assim domina o vocabulário que lhe vou soprando no íntimo da alma. Se alguma palavra não corresponde à exata tradução de minha intenção, é que eu mesmo não conduzo o raciocínio com plena convicção do que tenho para comunicar.
Dizem-me que ficará bem mais fácil e acessível se houver simples narrado dos acontecimentos que envolveram a minha última existência e que determinaram a atual condição espiritual.
Que tem a minha condição? Estará tão visível que tenho alguma deformação de caráter? Como é que se pode observar isto da parte de quem está simplesmente observando-me, sem que nenhum instrumento de percepção esteja adaptado à minha contextura perispiritual?
O amigo que vai escrevendo está colocando termos em minha boca. Eu não queria dizer contextura perispiritual mas simplesmente organização física. Pois fique registrado o que tenho para reclamar.
Dizem-me (como gostam de interromper-me!), dizem-me que o amigo reproduziu com fidelidade o que havia transmitido e, da mesma forma que estou sendo coagido a aceitar as interferências, devo reconhecer que as intenções de esconder-me não estão logrando êxito.
Agora, verdadeiramente, preciso admitir que a hipótese corresponde à realidade de minha composição espiritual. Aí está o retrato de minha vida.
Pedem-me para não concordar, simplesmente, mas para acatar a inexorável condição de estar submetido às injunções determinadas pelos espíritos de maior força e poderio, que almejam o bem e não tão-só comprovar que têm a possibilidade da dominação. Antes de me libertarem, querem que fique claro que não estou sendo maltratado e que avalie, através de comparação, se há alguma ameaça à minha integridade, da mesma forma que havia durante os entreveros com os que me perseguiam na escuridão.
Não posso precipitar, conforme me aconselharam, e, por isso, peço que me permitam refletir a respeito. Sinto que a pena do irmão está tomando vulto em minhas mãos, pois não sou capaz de lhe imprimir mais a mesma velocidade, e ele dispara os termos no papel, uns após os outros, impedindo-me de raciocinar a respeito do que melhor devo transmitir. Sinto, irmão, que tenha de ser assim, pois não desejo avaliar as condições em que estava nas mãos dos inimigos, para não lhes dar nenhum motivo de reclamação e para não aumentar-lhes a fúria em relação a mim.
Dizem-me que estou deveras protegido e que só retornarei à condição do sofrimento anterior, se assim o desejar explicitamente, através de algum ato de violência que interrompa os trabalhos de psicografia.
É bem verdade que o desejo é de me livrar desta situação vexatória, mas não tenho gana alguma de voltar a me deparar com os adversários. Por isso, vou procurar conter os impulsos de rebeldia e vou oferecer condições mais satisfatórias para que os amigos socorristas (como insistem em que os chame) possam realizar as suas tarefas de rotina, quanto a me darem maior conforto.
Pois foi o que entendi desde logo, tanto que, no início da mensagem, procurava interpretar-lhes as intenções.
Pedem-me para não avançar mais nesse sentido, pois o que desejava era fintar a real condição de minha moralidade.
Pois bem, vou parar de escusar-me e vou enfrentar a dor da revelação. Que querem de mim? Que me disponha favoravelmente à ajuda e que não obste os impulsos vibratórios que atenuarão o meu disparate sentimental e intelectual? Como deverei agir para chegar a esse objetivo?
Parando, por exemplo, de influenciar mal o escrevente, como se já estivesse pronto para encerrar, mediante o tanto de frases que foi capaz de escrever.
Sei que a intenção existe e peço perdão, pois ficou subjacente em minha péssima formação. Se o amigo consegue traduzir sentimentos tão íntimos, é porque desenvolveu essa capacidade. Ele que fique, a partir de agora, prevenido para esse tipo de impulso eletromagnético espiritual espontâneo e/ou involuntário, pois é a minha forma de ser, a minha habitual personalidade que transparece e que só será modificada, creio eu, se conseguir suplantar os feios defeitos que se inseriram dentro de mim.
Vejam que estou liberando as ânsias e que já tenho o poder de ajuizar melhor a respeito do que sou e do que estou fazendo, até diante das recriminações que venho escutando.
Pedem-me para não dar tom de acusação às recomendações de contenção dos ímpetos de raiva, pois o mínimo que se pode dizer do que os socorristas fazem é propiciar alguns momentos de concentração. Se houver qualquer dor, é causada por consciência culpada e não porque se está dando a oportunidade de seu conhecimento.
Parece que tudo o que venho transmitindo vai ganhando sentido. Não pretendia colaborar com o pessoal e desejava mesmo que furasse seu programa de ação, pois parecia-me que havia profunda vaidade na conquista de textos de irmãos sofredores, como se a vitória sobre os infelizes se desse somente no campo de sua condução à elaboração de textos plausíveis e íntegros, passíveis de serem levados ao conhecimento público. Por vários dias, fui trazido a esta sessão, para poder acatar as sugestões de me apresentar. Então, bolei forma de burlar os desígnios do grupo, procurando confundi-los com disparatadas atitudes, motivo por que até trechos para citação de autores procurei decorar, para o efeito pretendido.
Agora percebo que minha contribuição até aqui foi boa, pois há certa originalidade no conjunto que está sendo composto. Como sei disso? Ora, é fácil: o amigo escrevente procurava vibrações de conforto nesse sentido, de sorte que as suas idéias vão fixando as diretrizes de meu procedimento, o que não significa, absolutamente, que eu tenha o conhecimento da matéria, mas que esteja apto a perceber a importância que lhe está sendo dada.
Por outro lado, a minha maliciosa atitude é bem o paradigma deste tipo de raciocínio, que sabe ser lógico e coerente, quando predisposto a iludir e a disfarçar.
Os amigos da espiritualidade demonstram-se satisfeitos com os rumos dados à escritura, mas preferiam que me tivesse calado a respeito de muitos temas que não avançam na plenitude de minhas vistas da realidade do mundo superior. Dizem que, se permanecer imbuído destas idéias, ficarei eternamente girando em torno de meu ego supervalorizado, o que me impedirá de divisar mais além, no rumo da perfeição.
Esta é a palavra que me faltava. Realmente, não admito a perfeição como algo atingível. Se há qualquer ser perfeito, e sei que esse é o atributo maior que se dá à Divindade, esse ser não tem mérito algum, pois desinteressar-se-á de tudo o que venha a demonstrar qualquer fraqueza, qualquer jaça. Agradeço ao amigo pela escolha das palavras, mas a verdade do pensamento ficou bem expressa. Vejam que tenho categoria para expor temas de caráter filosófico, embora não tenha bem desenvolvido o caráter, pois não me furto às querelas por dá cá aquela palha, como se diz vulgarmente.
Em anterior encarne, tive noções bem aprofundadas de diversos temas, pois fui superiormente dotado de inteligência e de sensibilidade. Mas não fiz o bem e isso me levou à loucura, pois fui cobrado por inúmeras criaturas que se sentiram por mim prejudicadas.
Eis que finalmente debuxei alguns aspectos de minha vida. Toda vez, entretanto, que inicio a rota da narração, conforme me estimularam a fazer de início, sou refreado por inexpugnável vontade de retroceder nas pegadas. Aí as palavras tomam vulto sobre os sentimentos e tudo volta a ficar absolutamente camuflado. Este vaivém está perturbando-me e deixando impaciente todo o grupo.
Pedem-me para falar só em meu nome, pois o que o grupo mais deseja não é saber o que se passou, mas examinar os meios que ponho à disposição para o auxílio.
Pois bem, irmãos, reconheço que estou sendo pusilânime e abro o coração de vez para os crimes de minha vida: matei três pessoas, na ânsia de me sobrepor à sociedade.
Não é verdade o que acabo de dizer; estou absolutamente confuso e não pretendo ir muito avante, mesmo com o risco de voltar à indesejada companhia de meus inimigos. Peço, sinceramente, desculpas por não ter conseguido ajudar a quem, com tanto desvelo, pensava cuidar de mim e, humildemente, reconheço que não dou condições para qualquer trabalho útil em meu proveito. Se puder calar-me e impedir que o escrevente prossiga, eu o farei, com dó, pois lamento profundamente não ter conseguido atingir a qualquer objetivo sensato. Fique aí registrada minha pequena estatura moral e minha presunção intelectual. Adeus, amigos.




Comentário



Julgamos conveniente aceitar as despedidas do socorrido, mas não vamos abandoná-lo à própria sorte. Se o leitor for percuciente, poderá perceber que houve real decréscimo na intenção de engodar, de ilaquear, de mentir e de disfarçar. Ao final, houve completa entrega moral, de modo que não foi difícil sua dócil condução às câmaras de retempero energético.
Quanto à declaração de que era assassino, a qual foi, em seguida, negada, não nos aflige a verdade do fato, mas avulta a importância do movimento intelecto-emotivo e a nossa análise psíquica procederá a partir desse ponto. Se o fato é ou não verdadeiro, ficará para que a consciência do irmão resolva, em tempo propício para a configuração dos procedimentos da reabilitação moral.
Sentimos que não tenhamos trazido, ao contrário do que ele mesmo supôs, algo conclusivo, que pudesse aproveitar para o adiantamento do leitor. Em todo caso, como exemplo singular de comportamento instável por razões de culpabilidade extrema, pode ficar o escrito em meio aos demais. Eis que, de um modo ou de outro, obtivemos sucesso em mais este empreendimento. Graças a Deus que o trabalho é sério e que sua magnitude vai registrando-se indelevelmente, através desta pena solerte.
Oremos todos para que o amigo possa reverter o seu quadro de angústia, pois deu mostras de que, se conduzir o pensamento segundo os princípios evangélicos, bem poderá vir a ser aproveitado no serviço de elucidação dos sofredores melhor dotados intelectualmente. Que lhe sirva a lição da dor como experiência, para o trato das afecções símiles dos irmãos que incorporaram a força intelectual como apanágio para suplantar os demais.
Saiba o amigo, ao examinar a própria consciência, reconhecer os defeitos e transformá-los em ferramentas úteis para o soerguimento dos que sofrem. Eis o martírio de Jesus como o exemplo maior que poderíamos citar e a sua mansuetude ao rogar ao Pai que nos perdoasse a todos nós, que fazemos o que fazemos por pura ignorância.
Fiquemos com esta reflexão final, para dar sentido à nossa participação.







11

GORDA E BALOFA





Eu não queria vir até aqui, à presença deste público. Sei que a minha vinda será interpretada como boa, pois posso receber a ajuda das pessoas. Devo dizer que eu também já fui socorrista, à minha maneira, pois atendi a vários chamados, só que não sabia como proceder. Agora que me vejo em condições de socorrida, não tenho reação alguma. É verdade que pedi que me auxiliassem, pois não estava agüentando mais a situação de intenso sofrimento. Agora que estou aqui, pareço estar no céu. Não sei bem o que dizer e acho que vou parar... Não tenho noção alguma do que querem de mim...
Querem que diga as razões por que estava tão triste e tão sofrida. É que fui muito má na derradeira vida. Queria que as pessoas agissem só em função do meu benefício e do meu conforto. Agora, não. Agora peço ajuda, mas prometo que irei retribuir, na medida das minhas forças, como tentei fazer as várias vezes em que fui até o local em que ouvi chamarem por socorro.
O que fiz nessas ocasiões? Não pude enfrentar a dor dos amigos e pus-me a chorar, lamentando muito não ter forças para socorrê-los. Quando estava perto deles, geralmente havia outros espíritos que se intrometiam e que levavam embora os sofredores. E eu era largada lá, aos prantos.
Não sei quanto tempo se passou, desde que retornei do mundo dos vivos. O que sei é que vivi muito tempo, tanto que cheguei ao ponto de não conseguir mais locomover-me. Era muito gorda e, no leito em que morri, deixei todo o meu viço. Aos poucos, fui enfraquecendo e ficando muito nervosa, pois queria me mexer, queria sair de lá e não conseguia. A minha corpulência não me deixava andar.
Por muito tempo, fiquei com essa impressão, mas as cobertas e lençóis foram desaparecendo, até que me vi sobre fria lápide, onde estava escrito o meu nome e onde havia uma grande cruz, tudo muito preto e luzidio, pois brilhava à minha vista, como se fosse possível haver fachos de luz negra a cintilar no meio da escuridão. Era apavorante, mas não conseguia me mexer e não me era possível sequer dar um grito que alertasse os meus parentes para a minha condição. Agora sei que tinha morrido, mas na hora só pensava em safar-me daquela angústia.
Não sei quanto tempo se passou, pois a última coisa de que me lembro de quando estava viva é da forte dor de lado, como se estivessem a me espremer o coração. Essa lembrança era horrorosa e não gostaria de passar de novo por nada disso.
Meus amigos, levem-me com vocês; já posso caminhar, com certa dificuldade, é bem verdade, mas me sinto livre para ir devagarinho a qualquer lugar, desde que não tenha muita subida nem descida. Se vocês me derem a mão e me carregarem nos piores trechos, sei que vou conseguir acompanhá-los. Não se importem em atrasar a viagem, mas não me deixem para trás, por amor de Deus!
Sei que o meu peso é impressão das ondas cerebrais e que o meu corpo, apesar de volumoso, pesa menos que uma pluma a voar, levada pelo vento. Mas estou chumbada pelo remorso de não ter progredido em minha encarnação. Se pus no mundo quatro filhos, foi obra de minha volúpia e do desejo de manter o meu marido. Naquela época, o peso tinha aumentado muito e não fazia nada que os médicos mandavam. Mas fazia tudo que o meu marido queria. Sabia que tinha várias mulheres, amantes, que me trazem à mente grande vontade de xingar; se não fosse contida, diria algumas palavras pesadas.
O pessoal fez demonstração do mal-estar que causei com esse desejo e me indicou uma bola que muda de tonalidade, de acordo com a minha expressão de ódio e de aflição. Quando disse que desejava enviar vibrações ruins, a bola como que absorveu a minha atitude e se tornou negra. Então é assim que vocês ficam sabendo das vontades íntimas das pessoas?! Não sabia disso. Será que conseguiria tornar a bola menos escura? Devo pensar em meus filhinhos quando eram bem pequenos e os amamentava? É verdade, a onda de amor que senti tornou a bola rosada por alguns instantes. Não estou sendo enganada, não? A bola voltou a ficar bem escura...
Sinto muito não estar colaborando para minha salvação. Isto tudo só está servindo para me deixar confusa e ansiada.
O amigo que escreve está imaginando que estou favorecendo letra bem apertadinha, para significar desejo de não demonstrar o meu volume. Isso é só parte da verdade. É que não consigo influenciá-lo de modo diferente, tão fraca é a vibração. Por outro lado, bem que gostaria de poder dar explicação melhor a respeito desta queda energética, pois me sinto bem desde que adentrei este ambiente iluminado.
Agora que estou mais disposta, falando de mim mas referindo-me objetivamente à minha pessoa, como se fora outra pessoa, e não simplesmente sofrendo e dando superior importância à minha figura, parece que me vou libertando de algumas amarrações. Já sinto os membros mais soltos e tenho a impressão de que vou superar o mal-estar que me impedia de me locomover com desenvoltura.
Não se preocupe, amigo, com esta velha senhora. Sei bem que, apesar de matrona e bem nutrida, não fui melhor na vida que muito assassino que mata para sobreviver. É que, apesar de ter família sempre pronta para me ajudar, fui muito má e dispus as coisas a meu modo.
Desde que meu marido ficou doente e pude lançar mão de seu corpo, não o deixei repousar mais. Vinguei-me de todos os malefícios e traições. Ele se arrependeu, tintim por tintim, de todas as vezes que saiu na companhia das outras mulheres.
Vejo que a bola está ganhando colorido com tendência ao vermelho escuro, mas que volta para o marrom, sempre que penso em tudo o que fiz para o coitado, durante a longa enfermidade, até o dia em que lhe dei o remédio em excesso e teve lenta agonia até desencarnar.
Os meus filhos não souberam nunca que fui a culpada pelo trespasse de seu pai; nem eu iria dizer nada. Acho que foi principalmente por isso que fiquei tanto tempo presa ao leito, especialmente depois da morte. Tinha, no fundo, muito medo de me encontrar com meu marido. O interessante é que sentia saudade dele e já não era grande o meu ódio. O arrependimento data da época em que vivia e percebia que tinha de falar muitas mentiras para fazer o pessoal ficar perto de mim. Muitas vezes, não estava sentindo nada, mas fingia estar com muita dor, para deixar todo o mundo preocupado. Com minha tirania inconsciente, maltratava a família toda. Mas é que não queria ficar sozinha, com medo de que o fantasma do meu marido viesse me atacar. Eu até sentia a presença dele perto de mim. Ainda bem que não veio me atenazar depois que morri, já que a minha debilidade iria impedir-me de defender-me.
O amigo que anota minhas vibrações sugere que volte a pensar nos outros, para não me ver envolvida pelo forte egoísmo que me faz sofrer. Agradeço a lembrança, pois me viro para o lado para não ver aquela bola que me atormenta, pois não consigo fazê-la voltar a ficar rosada, nem quando me perturbo e me vejo lembrando-me dos bebês a quem amamentava.
Será que era possível fazer desaparecer esse espelho de minha feiúra? Obrigado.
Agora que disse tudo o que fui, os males que pratiquei e me retratei pavorosa, posso deixar o lugar, já que nada mais conseguirei transmitir que possa interessar a quem quer que seja? Se a minha vinda até aqui foi para me dar um pouco de conforto e consolação, então me digam como vão indo os meus pequenos. Será que suas famílias estão dando-lhes a felicidade que merecem, pois me aturaram durante tantos anos sem reclamar? Como devo proceder para obter anuência para visitá-los?
Será que meu marido passa bem? Será que me perdoou? Será que foi procurar as outras mulheres, enquanto eu padecia os horrores da sepultura?
Sinto que meu egoísmo se acentua, porque não quero reconhecer que as pessoas têm direito à sua própria vida e penso neles como seres que me pertencem. Como gostaria que as crianças não tivessem crescido e pudessem ficar para sempre em meu colo. Essa foi a fase mais feliz de minha vida, depois que deixei o teto de casa, onde vivi com meus pais em guerra de gerações. Naquela época, não era gorda, mas ficava muito nervosa com os remédios que tomava para me manter esbelta. Acho que foi esse tratamento que me tornou matrona tão detestável. Devo dizer que eu mesma é que mais me odiava, por me ver tão degenerada, a ponto de fazer as pessoas se sentirem mal diante de mim. Era uma gorda muito infeliz, invejosa da magreza das outras pessoas e me tornava cada vez mais obesa, pois comia com desespero, como se a vida não tivesse mais nada para me oferecer.
Quando criança, tive a oportunidade de ir à escola, pois meus pais eram pessoas esclarecidas e fizeram o sacrifício de me educar. Mas não me dei bem nos estudos, embora tivesse conseguido o diploma do Curso Normal. Era professora na juventude, mas nunca me saí bem com as crianças, pois não era aquilo que eu queria na vida.
Ao me casar, o meu marido me permitiu ficar em casa para cuidar dos filhos, pois me casei grávida e logo nasceu o primeiro.
Vejam que voltei a pensar nas crianças pequenas, que é quando me sinto melhor. Será que não chega ainda, pois não consigo me felicitar por demonstrar qualquer melhora do ponto de vista moral? Tudo quanto digo é tão fútil e vazio como se tornou a minha vida depois que me casei.
Veio-me à idéia certa repulsa pela perda de minha felicidade e que o casamento acabou transformando-se em verdadeiro cárcere, onde tudo se perdeu. Veio-me à imaginação que as minhas doces crianças não passavam de algozes, a me prenderem definitivamente à vida absurda da reclusão e do desespero. Veio-me à memória algumas lágrimas que chorei por não poder tomar a séria decisão de me livrar de tudo o que me prendia junto àquele homem infeliz, que eu tornava ainda mais pesaroso com minhas lamúrias e com minha perene reclamação.
Acho que o tempo em que amamentava as crianças foi o único na vida em que senti verdadeira alegria. Mas me lembro de quanto as repudiei, depois que cresceram e começaram a ter vida própria. Bem que desejava a mesma coisa; o meu marido e os meus filhos saíam e iam aonde bem queriam, e eu ficava em casa, gorda, vestida com aquelas enormes saias e imensas blusas, pois me sentia muito mal com as roupas agarradas, a não me deixarem esquecer a gordura transbordante.
Peço perdão pela monotonia do meu lamento. Acho que me fiz de mártir de propósito. Se me for dado libertar-me desse imenso peso de consciência, acho que rejuvenescerei e voltarei a possuir um pouco de alegria.
Fiquem, irmãos, na paz do Senhor!
Gracinha.




Comentário



A irmã deliberou demonstrar pela prática o que realmente a atormenta. Não há dúvida que deve ser extremamente penoso ter de suportar mágoa tão intensa, pois nós, que estamos habituados a enfrentar estados dolorosos de consciência, estávamos ficando exaustos com a real monotonia dessa expressão continuada de amargo debater-se sem abertura para a luminosidade exterior.
Graças a Deus, dizemos nós, que pudemos vê-la refletir um pouco melhor a respeito de sua personalidade. Desejamos que prossiga nessa linha adotada ao final da entrevista, qual seja, a de que a liberdade do peso da consciência advirá do modo novo de encarar o mundo, principalmente se conseguiu obter um pouco de alegria, o que só lhe advirá se for bem sucedida em alguma realização de plano de ajuda aos irmãos feridos por sua egolatria.
Quanto à presença do marido, que sentia ainda na carne, era verdadeira. Por aquela época, vinha-lhe cobrar o mal que fizera. Mas foi por pouco tempo, uma vez que, espírito aberto para as coisas do mundo, percebeu logo que, se tentasse obsedar a esposa, ficaria preso ao círculo de suas lamentações. Safou-se a essa influenciação, evitando sair tosquiado quem buscava lã e pôde progredir moralmente, uma vez que se engajou em equipe socorrista.
Hoje é quem promove a recuperação da esposa, já que lhe deve inúmeros favores no campo da moralidade. Mas esta história demandaria larga exposição que não gostaríamos de levar avante. Fique registrado, tão-só, que o tempo em que Gracinha ficou interdita para a vida comunitária não foi nada além de dois anos, o que, para espírito tão apegado a si mesma, pareceu verdadeiro suplício eternal. Eis que o tempo é realmente muito relativo no etéreo.
Fique o irmãozinho leitor atento para suas idiossincrasias e analise o seu modo de viver. Não haverá, pertinho de você, alguém que se sinta algemado pela impotência de séria reação moral? Dê-lhe um auxílio desde logo, porque o sofrimento de quem não desenvolveu adequadamente a vida espiritual é intenso e de difícil superação. Torne-se, você também, auxiliar do socorrismo ativo.







12

TEATRO DA VIDA





Um grito de horror foi o que soltei quando me vi despedida do mundo, sem que pudesse nada fazer para impedir. Foi um tiro certeiro na cabeça. Fiquei tonta por algum tempo, como se tudo se embaralhasse, mas, de repente, eis que a luz espiritual se fez, de modo que readquiri o domínio dos pensamentos e das funções orgânicas. Foi aí que compreendi o que me havia feito e me horrorizei, sem imaginar que estava sofrendo pelos martírios de que impregnei a vida dos outros e não pelo meu próprio tormento de infelicidade.
Era como se não existisse possibilidade de retorno e que devesse sofrer eternamente, na ilusão da perda total da identidade. Era a fusão de mim em mim, como se a realidade não existisse. Sei que a minha expressão está afetada por essa estranha sensação, mas sou capaz de explicar. É como se as impressões de perda, de ausência, de afastamento da realidade corpórea fossem a só existência, de forma que a inexistência de qualquer idéia espiritual se unisse àquelas impressões, para realizar em mim a concepção do nada, do irreversível, da impossibilidade, como norma psíquica, sendo impossível resgatar o que antes era, do mesmo modo que impossível era imaginar que se pudesse vir a ser, em diferente plano.
Nessa suspensão de existência como ser individualizado permaneci durante largo tempo. Enquanto isso, as sensações se concretizavam como algo que tivesse vida própria, independentemente de algum sujeito para o qual tudo devesse definir-se. É como se tivesse perdido a memória do mundo e só me restasse foco de luz para o qual me dirigia toda, inteira.
Esse estado de catalepsia moral, sentimental e intelectual não estava isento de dor, porque a ausência de mim mesma era tormentosa, aflitiva, angustiante.
Podem-me censurar o que estou expondo como resultado dos pensamentos, das reflexões, mas não podem ver naquilo que se passou nitidamente senão como abstração completa do estágio atual de vivência. Mesmo para mim, neste ponto em que voltei a poder perscrutar o valor relativo de cada coisa, fica difícil de definir aquela agrura mórbida de quem não tem pátria, sem paradeiro, nem passado, nem futuro. É como se me voltasse à recordação algo que não aconteceu comigo, mas em mim, na expectativa de reaver a identidade e na impossibilidade do fato.
Graças a Deus, o tormento foi tornando-se compreensível e, de súbito, acordei desse estado de letargia inconsciente para o ponto exato em que sofrera o impacto do balázio no crânio. Despertei com imensa dor de cabeça, pela perfuração da bala, que me atingiu diversos pontos capitais para a sobrevivência física, mas que não me impedia de sofrer os embates no campo da espiritualidade.
Esperei com paciência a restauração do perispírito, como se fosse possível a reparação espontânea de cada fibra rompida pelo impacto destruidor. Não sabia onde estava, mas tinha exata noção do que me sustentava como ser, pois me recordava, agora muito bem, de cada pedacinho de minha vida, com exceção dos atos de bondade que pudesse ter realizado. Só o que era mau e doloroso para as pessoas é que me vinha à frente do painel de minha memória, como se estivesse em teatro em que, sobre o palco, figuras representassem cenas, estranhamente, para a única espectadora presente.
Dado o alívio que sentia da fase anterior, era até interessante ver serem representados os atos que me diziam respeito como autora. Era como se tudo se desenrolasse longe de minha pessoa. Aos poucos, porém, via-me na representação, ao lado dos outros, fazendo as coisas ruins que ali se passavam. Gostaria de mudar de papel, trocar de personagem, tornar-me vítima ao invés de algoz, mas o único que conseguia era a intenção de evitar a cena, que decorria independente de minha vontade, como se a minha atuação se revestisse das características de marionete, que é conduzido por invisíveis cordames. Não queria dizer as falas, mas as recitava alcandoradamente, com brilho intenso e emoção, como se atriz de inegáveis dotes histriônicos se compusesse para o papel. E esse tormento interior se transferia para a cena, e o que era mera resistência se transformava em realidade. O papel da personagem deixava de existir e eu me corporificava na ação, como se tudo pudesse voltar à realidade. Era a inexpugnável intenção transmudada em permanente ação. E o sofrimento deixava de ser figura de retórica e se consubstanciava ali, perante a minha vista.
Receio que a totalidade desta narrativa vá ter de ficar manca da verdadeira emoção, pois tudo se transforma em visão edulcorada pela possibilidade da literatura, dado que as palavras, as expressões, os conceitos vão friamente se transpondo para o papel, ao sabor de aparatosa imaginação.
Mas tudo o que deixei relatado é a pura expressão de minha verdade íntima. Para quem não se habituou a refletir sobre a realidade senão pelo seu metamorfosear em plano de idealização, como se a vida transcorresse independentemente do sentido biológico, poderá ficar fácil de compreender as sensações de dor e de desespero que assomam à fímbria da convicção no instante da obtenção do poder do raciocínio.
Hoje, como gostaria de dominar esta pena, de forma a traduzir em sangue o maléfico odor nauseabundo da linfa pútrida a escorrer do cérebro em decomposição. Que atormentada condição de quem ficara tanto tempo distante da realidade da existência, ao despertar, se deparar com as emoções ainda tépidas, como se nenhum instante houvesse decorrido entre os tempos. E era como se tudo pudesse alargar-se e espremer-se, como se não houvesse mais sentido de transcurso e, no entanto, a necessidade dele se fizesse presente, como se a morte se consumasse a cada momento e o nada se estendesse em perspectiva.
Penso não ter suficiente lucidez para meditar a respeito do que significa sofrer, em dor, em êxtase de purificação pela sensação da impossibilidade da fuga. É como se, pintora de telas da morte, me visse a pintar-me a mim mesma, exalando o último suspiro. É como se a dor da perda da vida querida da mãe, da filha, do companheiro, pudesse retratar-se em espetáculo sofrido como restabelecimento da realidade. É como se tudo o que o espectador pudesse conceber como memória ou presunção de que possa vir a ser o mal se consubstanciasse na presença do horror do outro — sujeito-objeto do mesmo drama infinito e intemporal.
Peço humildes desculpas ao grupo que me trouxe para este trabalho de socorro ativo. Sei que minha participação camuflou a verdade de minha história como ser que atuou em determinada peça da vida. Mas é como se tudo se tivesse esfumado, restando a luta interior, a introjeção dos problemas e das vicissitudes. Que importância terá agora o fato de ter matado alguém? O que importa é o levantamento do sofrimento que perpassa pelo cérebro, abatido por sintomatologia específica de certos procedimentos incorretos. E essa personalidade que vejo possuir-me é feia, é repugnante, é tenebrosa. Transformar tudo isso em sentimento de culpa talvez seja próprio dos confessores medievais, que intentavam demonstrar aos confessados como seria o inferno, se não se depurassem dos males praticados. Mas essa intenção era já martírio a perseguir o próprio possesso da divina justiça, como se fora ele participe da obra da vingança do deus dos exércitos, a fomentar brilho e poder a seu antagonista universal.
Peço desculpas para me esconder de novo da informação que faria de mim traste imprestável aos olhos dos que deveriam tão-só condoer-se pela minha condição de inferioridade cármica. Se me querem verdadeiramente, vão ter de suportar-me assim, fugidia, incerta, insegura, infeliz, pelo menos enquanto perdurar esta sensação de estar em constante bulício mental.
Incapaz de me fixar em determinados pontos, vejo razões transcendentais onde o vulgo simplesmente diria: "Eis a causa, está aqui o efeito." Eu não. Eu, pretensiosa, quero estar acima da lei e ver no efeito o próprio efeito sem causa; a dor existe — eis tudo. Vamos debelá-la. Há causas? Ótimo. Deveriam mesmo existir, mas a dor é que me pressiona e é ela que devo evitar, pois é ela que me enlouquece.
Tentam dizer-me que o tiro acertou onde exatamente eu havia intencionado atingir. Eis fórmula até interessante de dizer que sou reles suicida. É verdade que o meu inimigo subia ao palco, alter ego, a me apontar a arma assassina, conservando a fisionomia que eu carregara durante a infausta permanência na carne. Mas que tem isso? É como se me desdobrasse, que me visse ao espelho e fora de mim. É como se tivesse a sensação de atingir a imagem reflexa, aquela que odiava e que se transformava em vítima de minha volúpia de desintegração. Não consegui afastar o monstro, mas me vinguei da inépcia de viver, do medo de tomar atitudes, do receio pesaroso de ofender as pessoas. De repente, rompi com as imagens que se faziam coercitivas diante de mim, como se tudo pudesse ser definitivamente colocado de lado. Era o nada que me aborrecia como mistério insondável e necessário. E, no entanto, a noção dele, que me arrastava, que me dominava, que me fascinava, se tornou a intensa sensação, como jamais pude conceber, da própria existência.
Ser nada, no nada, e ser consciente disso é a mais absoluta forma do sentimento da própria percepção do existir.
Peço perdão, finalmente, por estar a desvestir-me tão lentamente, como se me envergonhasse diante dos amigos, que se mostram tão interessados em me fazer crer que tenho a possibilidade de me sentir alguém honrado e precioso. Se não fora por vocês, bons amigos, que grito de horror estaria emitindo, ao perceber o ato de imensa injustiça que pratiquei!
Não vá, leitor amigo, supor que não tenho, agora, noção do local em que estou e do que estou fazendo. Por via intuitiva, deixei claro aos que me auxiliam, que o drama que se instalou em mim foi a impossibilidade da realização do sonho da maternidade. Tudo se desencadeou quando tomei consciência de que a vida iria ser inútil biologicamente, pois todos os acalentados sonhos de procriação, visão final da integridade feminina que me fizeram crescer em ânsias de realização, se desvaneceram de súbito, diante de frio e simbólico relatório médico.
Estava impossibilitada para a vida. Que sobreviesse, portanto, a morte, pois nada por nada, que a realidade do inconsciente se confundisse, o que seria simples antecipação. E esse plano se frustrou tanto quanto o anterior. E a compreensão da irrisão do ato se deu com a condição da consciência adquirida e sofrida.
Vejam, irmãos, que estou bem apta a captar causas e efeitos, unindo as circunstâncias e desalojando as idéias preconcebidas dos esconderijos psíquicos. Vejam que tenho a percepção dos males que produzi internamente e que posso dissuadir-me de persistir na fantasia da dor. Mas estarei pronta a enfrentar a verdade de Deus?!
Deixo o testemunho do sofrimento, testamento final de quem pretende enterrar para sempre esse episódio existencial insólito e inoportuno. Nada havia sido cogitado nesse sentido e burlei todos os planos dos queridos intercessores. Mas me sinto, até certo ponto, restaurada e confortada, por ter podido refletir em voz alta a respeito dos insucessos. Quem sabe deixe, neste monturo de frases, enfeixado o cadáver daquela que não soube corresponder aos anseios da Vida...

Agradeço muito ao amigo que se dispôs a escrever e lhe peço desculpar-me por insistir tanto em que os termos se extraíssem da realidade de minha contextura intelectual, por meio da seleção que me foi possível do repositório oferecido. Graças a Deus, este pode ter sido o indício firme e seguro de que há esperança para mim.




Comentário



A mocinha que nos deu este sofrido depoimento não é espírito indócil, como se pode imaginar, lendo-lhe as declarações. É alguém que vem oferecendo sua contribuição ao grupo, desde algum tempo, mas, arredia, não conseguia suportar o trabalho como apanágio para o desenvolvimento das qualidades.
Fez-nos o relato do que pode vir a ser o sofrimento dos materialistas, embora sua personalidade jamais pudesse ser considerada assim, pessoa totalmente afeita a idealizar a realidade. Se chegou ao ponto de se suicidar é porque se deixou impregnar por demais dos ideais humanos. Não há necessidade de descrever o aparato intelectual de que está dotada, tanto brilho conseguiu transferir para a exposição. Entretanto, é bom que se deixe claro que a elaboração do texto se deu sob o influxo de tremendo sofrimento, pois era o desnudar, finalmente da personalidade.
Em lágrimas, foi recebida pelo conjunto dos amigos para aqui evocados por força da aceitação desse desvelamento. Havemos que compreender, no entanto, que muitos ficaram na carne, de modo que há resgates de dor a serem feitos.
Que o futuro lhe seja promissor, boa amiga, e que lhe reserve melhor fortuna!







13

LUTA INTERNA





Cansei de perguntar onde é que estava, mas ninguém me respondia. Aí vim a saber que haveria grande congresso; talvez lá fosse possível saber onde é que estava. Mas não consegui encontrar o local do tal acontecimento e não pude ficar a par de minha situação.
Agora, depois de passados tantos anos, eu me sinto bem melhor, mas não tenho conhecimento exato do local onde me encontro. Sei que faz muito tempo que morri, mas não tenho idéia de onde fica a minha pátria material, já que me dizem que aqui é a pátria espiritual.
Pois gostaria de perguntar, definitivamente, onde estou. O que escreve me diz que estamos, materialmente, no Estado de São Paulo, na cidade de Indaiatuba. Pois não é longe do local onde vivi. Será que poderei partir agora?
Querem saber como é que não me foi possível ficar sabendo que lugar é este, que todo o mundo fala e que está escrito por toda a parte. Mas é justamente isso: não fiquei aqui este tempo; estava perdido no meio do mato e lá não havia placa nenhuma, nem ninguém que se dispusesse a me informar. Se vocês me dão licença, desejo ir procurar os meus.
Como farei para isso? É fácil; é só sair pela estrada, caminhando, que logo estarei na cidade em que deixei o pessoal. Acho que não será difícil.
O que farei quando lá chegar? Vou perguntar onde é que estão os meus familiares, para ficar perto deles, do mesmo modo que estou aqui, perto do moço que está escrevendo.
Se não me reconhecerem, não tem importância; fico por ali vigiando para que ninguém vá fazer nada de mal para eles. Tenho dois filhos lindos, que deixei na idade da adolescência e que devem estar homens feitos.
Por que não fui antes até eles? Já não disse que estava perdido na floresta... Por que estava ali? Não sei; acho que foi algum castigo por não ter cumprido com lealdade os compromissos, o que resultou em minha morte brutal naquele acidente de carro. Dirigia embriagado e me vi, de repente, diante de grande caminhão. Naquele instante de alucinação, pensei: "Por que não deixar de vez a estrada da vida? Não foi para isso que vim até aqui?..." E aí me arremessei para debaixo do caminhão. Não devia ter feito isso, porque o motorista também morreu e me vi perseguido por sua sombra durante muito tempo. Quando dei por mim, estava preso na mata, onde ninguém me encontrava. Mas era um local muito agreste e perigoso, pois sentia a ameaça vir de todos os lados. Havia ruídos estranhos, sons distantes de pessoas gritando. Era como se tudo se passasse na minha cabeça, mas que sentia provir de fora. Era muito confuso, mas não procurava investigar, porque sentia horroroso terror de encontrar as pessoas que havia ofendido.
No começo, a dor que senti pelo esfacelamento do corpo me fazia esquecer tudo o mais; mas, aos poucos, os membros foram restaurando-se e aí é que percebi que há muito tempo vagava, como se estivesse liberto no ar. Era muito estranha essa sensação, porque podia me locomover, mas tinha toda a impressão de estar inteiramente quebrado. Eu me apalpava e não conseguia segurar as pernas. Quando queria enxergar as mãos, elas não existiam. Aí gritava de aflição.
Se me permitirem parar de falar desse tempo, ficarei muito sensibilizado pela delicadeza da atitude. Sei que preciso partir, mas o desejo de rever os filhos é mera desculpa, pois tremo só em imaginar que tenham más lembranças de mim.
A minha mulher não me mandou nenhuma prece de conforto, pois jamais senti qualquer revigoramento. Os meus filhos é que me diziam para sossegar, onde quer que estivesse, que estavam bem. Mas não sei como é que suas vozes me chegavam aos ouvidos. Eu pedia a Deus para me perdoar, mas não obtinha resposta alguma e as dores aumentavam muito. Aí ficava triste e me revoltava, sentindo que a dor era o aguilhão que perpassava a minha entidade, como que a me fazer lembrar o sofrimento que causara.
Peço aos amigos que me acompanhem até o local onde estão os meus filhos, pois só deles é que recebi o conforto de sua lembrança. Dizem que se fizeram ouvir através das preces e que não consegui ouvir mais ninguém, por ter ódio em relação às outras pessoas.
É verdade, eu fugira de casa porque havia encontrado a minha mulher... Não quero falar disso. Por favor, deixem ficar só comigo estas sensações horríveis. Tenho estremecimentos muito dolorosos, porque sei que fui o culpado de tudo. Se não me fizerem esse favor, tenho medo de me ver de novo no meio da escuridão da floresta. Peço-lhes encarecidamente...
Dizem que tenho plena liberdade, que só estou a contar o que minha vontade está determinando. Se é assim, por que não consigo controlar este impulso violento para referir-me às coisas ruins?
Se orar com amor, terei sossego? Vocês não querem ajudar-me? Por favor. Sei as rezas todas, as preces, pois conheci muitas pessoas religiosas. Até estive num lugar próprio para rezar, uma igreja grande, mas fui expulso de lá porque acharam que não estava trajado convenientemente. Mas isso era impossível. Deveria estar acontecendo alguma outra coisa. Foi aí que me pegaram e me conduziram até este local iluminado, perto da cidade em que estão os meus filhos.
Se não me contiver, vai ser difícil a concentração para a prece. Pois vou deixar o escrevente sossegado. Ele que espere. Não comecem ainda, pois estou tremendo de medo e não consigo sustar o pensamento de remorso.

Não consegui compreender direito todos os dizeres da prece, pois não entendo como é que Deus pode se submeter à vontade dos homens e só perdoar quando eles já tiverem perdoado. Essa prece sempre me causou confusão, mas, de qualquer modo, estou sentindo-me ligeiramente melhor. Tenho de novo as mãos à vista e consigo apalpar as pernas. Sabia que estavam bem, pois conseguia andar por aí, sem estar volitando.
Ia fazer um comentário a respeito das palavras que estão sendo escritas, mas os irmãos me chamaram a atenção para o fato de estar melhor e de estar na hora de ir com eles. Se for possível, prometem levar-me até onde estão meus filhos. Se for possível, também vão-me levar onde está minha mulher. Mas essa eu não gostaria de ver. Só para saber que ainda gosta de mim...
Eu me sinto confuso e preocupado. Será que não irei desandar e cair de novo em estado de depressão e letargia? Tenho dúvidas com relação a mim mesmo, pois não sei se terei forças para perdoar.
Perguntam-me se o que fiz foi certo. Tenho a certeza de que não foi. Querem saber se eu mesmo me perdoei. Já pensei nisso e foi aí que achei que Deus deveria ter pena de mim, pois, se ele me perdoasse, eu iria ter força para compreender o que fiz e sentir que as coisas poderiam melhorar. Dizem-me que sou esperto e que, maliciosamente, tento fugir às questões, por saber de antemão o resultado da pesquisa. Querem definitivamente saber se tenho a intenção de perdoar ou se prefiro prosseguir perseguindo os que me ofenderam. Mas eu não saí da... É verdade que as vibrações se constituem em perseguição? É por isso que não tinha nenhuma resposta das pessoas que amaldiçoava? Pois eu só pensava... Eu não fazia nada, porque estava perdido na mata...
Penso que terei de entender muitas coisas que se passaram comigo desde o suicídio. Foi difícil dizer essa palavra. Até tentei falar outra coisa...
Sempre que desejo fazer referência ao médium, me desviam de volta ao meu drama. Pois bem, irmãos, reconheço que estou errado, que estou em boa companhia e que devo muito a vocês. Se me largarem sozinho na estrada, tenho a certeza de que irei encontrar o caminho...
Eles me interrompem e me pedem para deixar de arrumar desculpas para enfrentar a verdadeira falta que estou a esconder. Pois revelarei tudo intimamente, sem ter de deixar aqui registrado. Não quero que ninguém mais saiba o que fiz e peço que também não contem, pois estou aflito demais e chega de receber só péssimas vibrações, que são dolorosos golpes na consciência.
Até o que está recebendo esta minha comunicação está retransmitindo a mim as minhas péssimas intenções de o deixar aflito e desejoso de suspender o trabalho. Não sei como é que faz isso, mas parece que está sofrendo com a minha angústia e vontade de esconder o malfeito maior. Pois vou contar rapidamente. Peço que não me odeiem por isso.

Vejo que o que disse ficou em branco na escrita do amigo, embora tenha certa a idéia de que o escrevente ficou sabendo de tudo, porque não fiz questão de lhe esconder. Mas evite, por favor, de comentar isso com outra pessoa qualquer, mesmo a mais chegada. Peço-lhe que me respeite os sentimentos e que reze muito por mim, que me sinto péssimo, depois da revelação. É interessante que estou arrasado e envergonhado, mas a pressão na cabeça melhorou consideravelmente. Já não tenho medo de enfrentar minha mulher e até peço aos amigos que me disseram que ela me ama que me levem até onde está. Não deve ser muito longe daqui, porque foi aqui perto que a deixei estendida no chão a golpes de machado.
Eis que criei coragem para dizer o que tanto temia. Se, por acaso, essa informação servir para me acusarem de criminoso vil, que pensem no quanto já penei e que não deixem escapar nada de ruim contra minha pessoa.
A pressa que tinha terminou e agora me sinto bem mais tranqüilo. Sabem o que gostaria mesmo de fazer? Era dormir um bom sono, para ter momentos de esquecimento. Será que isso será possível? Graças a Deus!




Comentário



Se nos for possível traduzir os sentimentos do amigo, devemos dizer que se despediu muitíssimo agradecido e pedindo desculpas pelo mal-estar causado. Diz-nos que muito agradece a atenção de se ter destinado este feriado para sua recuperação e que sentiu no mediador toda a ânsia de liberar-se para os compromissos familiares. Pede-nos que estenda os agradecimentos às pessoas da família, que se privaram por algum tempo da presença do companheiro de lutas.
Para pessoas de plena formação espírita, ficará fácil compreender a importância de se prestar atenção e socorro a quem está necessitado de carinho e profunda assistência.
Fiquemos todos por aqui, para não recairmos nós na falha apontada de subtrair o irmão do convívio familiar.
Como nos dá oportunidade, vamos só esclarecer que o amiguinho estará, em breve, em condições de julgar do procedimento irregular que teve, à luz da realidade dos parceiros de existência. Compreendendo o que se passou no íntimo de cada um, poderá sopesar com fidedignidade os próprios atos. Que Deus se apiade de sua alma e tenha por ele a consideração que ele mesmo estava a se negar.
Fiquemos todos nas mãos de Deus!







14

UM SUJEITO DESAVISADO





Eu quis deixar bem claro desde o título a minha condição de ser muito inferior, pois, quando encarnado, pratiquei todos os atos de vilipendiação que se possa imaginar. Sei que existem seres inferiores a mim, ainda mais afastados do divino amor, que não chegam sequer a admitir a hipótese de que Deus existe. Eu não. Eu sempre desejei fazer as coisas a meu modo, para chamar a atenção de Deus para a minha pessoa. Pensamento imbecil, difícil de entender e de suspeitar em quem seja capaz de conceber a idéia da existência do Pai! Era a expressão superior do orgulho a criatura cobrar do Criador que atentasse para ela. É, realmente, disparate muito grande.
Vejam que situação a minha, quando para aqui aportei, sem mérito algum, querendo saber por que o Pai não me havia, desde logo, puxado as orelhas, para que me desviasse daquele padrão de procedimento. Aí foi difícil para a minha compreensão admitir a justiça celeste, porque achava que, se Deus não se apresentara diante de mim para sustar os crimes que ia praticando, não podia me arremessar na escuridão do báratro. Era assim que desviava a responsabilidade dos sórdidos atos a outrem, exatamente àquele a quem deveria respeitar.
A muito custo, fui compenetrando-me de minha atuação nefanda para o progresso da alma e fui emitindo vibrações de arrependimento, para que me pudessem achar e reconduzir para locais menos assustadores. Aí, no entanto, estava todo o drama, porque a natureza dos crimes me fazia tremendo devedor.
Havia inúmeros seres que se apresentavam diante de mim como vítimas, assegurando-se o direito à vingança. No início, achava que tinham inteira razão, porque, verdadeiramente, arruinei a condição de vida de muitas pessoas. Mas, paulatinamente, fui compenetrando-me de que a ação dessas entidades era deletéria para seu próprio desenvolvimento, de modo que pude mudar de atitude quanto à aceitação pacífica das represálias.
No entanto, não fui feliz nas propostas de trégua, senão que era obrigado, pela nova visão das coisas, a impedir as ações adversárias, para o que me punha na condição de feroz inimigo, a pelejar arduamente pelo direito de expor o que julgava o correto. Como não me davam atenção, reprimia o abuso com potentes golpes, de intensidade vibratória total, de forma a me esfalfar nos embates, quase esgotando as energias.
Lamentavelmente, até ocorrer a lucidez de que estava arrumando desculpas para poder empreender novas maldades e desatinos, muito tempo se passou e novas dívidas se acrescentaram, pois fui à procura das pessoas que me perseguiam a partir da carne, pois ainda no mundo dos mortais, e passei a obsedá-las, como se fosse meritório fazê-las sofrer, no intuito de dar-lhes a compreensão do próprio mal que praticavam.
Se estivesse dotado do poder de mediunização ou de imantação igual a esta que se está realizando sob o amparo destes amigos, aí poderia dar às pessoas as verdadeiras razões para não caírem na esparrela de, como eu, terem muito que sofrer pela imprevidência de quem se vê superior a Deus e não admite deixar de realizar os atos da vontade.
Mas ignorava qualquer pensamento sublime, por isso partia para a simples influenciação, no sentido de comprometer ainda mais os adversários com a vida de crimes. Pura maldade!
Hoje, que me apresento aqui trazido pelos carinhosos irmãos deste grupo, tenho a capacidade de perceber o quanto de malícia se impregnou em meu ser, pois, evasivamente, tentei ludibriar o escrevente, fazendo-o crer que se tratava de alguém plenamente recuperado.
Dizem-me que o instrumento nada tem de ver com o desempenho gráfico, por assim dizer, pois está instruído e deseja captar as vibrações, reproduzindo-as com igual intensidade da emissão, de maneira que, ao terminar o trabalho, o resultado seja a expressão mais próxima do espírito transmissor.
Aceito que assim seja, mas é bastante diferente a minha expressão lingüística daquela que fica consignada como sendo minha, verdadeira. Toda vez que lhe digo algo, ele se abre em extenso leque de termos e me diz para escolher algum que melhor se adapte ao pensamento. Não estou acostumado a tanta variedade e me perco. Aí ele, velozmente, pega aquele que lhe parece melhor na situação e assinala, sem que eu tenha muita participação na escolha. Desse modo, é preciso deixar bem claro que, se a vibração, o pensamento, a intenção são minhas, não iria escrever nada com tanta precisão e coerência. É interessante que isso se passa com tanta clareza, como se ele mesmo produzisse o texto, restando-me a simples condição de mero observador e não de produtor dos dizeres.
Pedem-me para não derivar para campos cuja compreensão transcende à minha experiência e argúcia. Pois agora os dizeres passaram por minha pobre visão das coisas, mas vieram dos irmãos que me assistem e foram ter à mente do instrumento, que vem registrando tudo com atenção redobrada, pois consigo perceber, em suas reações psíquicas, o receio de que tudo lhe seja produto da fantasia. Como não quero deixar algo de insólito expresso, devo afirmar que o roteiro todo não existia até que eu assumisse o poder de controle da escritura. Tudo o que se passou, desde que se iniciou o trabalho psicográfico — como é interessante o encaixe que se dá entre todos os fenômenos e o texto concluído! —, diz respeito somente à minha vontade e, no entanto, a pobre criatura fica a sofrer as conseqüências de minha falta de responsabilidade. Se mais alguém for ler o que vai ficando expresso, peço para desculpar o pobre escrevente.
Dizem-me para não ficar assumindo ares de quem não entende o que está sendo solicitado e que preste atenção ao fato de que, por várias vezes, houve hesitações, o que me dá a dimensão de minhas imprecisões. Isto quer significar que, dentro em breve, o discurso não conseguirá manter-se dentro do ritmo com que iniciei e que, aí, deverei ter de submeter-me à temática à qual não estou desejando entrar.
Na verdade, chegando a este ponto, penso que já tenha feito muito mal a estas pessoas boníssimas que me estão dando sustentação e, para que não venha a perturbar o ambiente, devo retirar-me. O escriturário até se propôs a oferecer-me a oportunidade de introduzir-me em seu acervo de conhecimentos a respeito de indivíduos como eu, dando-me amostragem, extraída da literatura espírita, de outros seres tão perversos que se viram em palpos de aranha, nas mesmas condições de transmissão mediúnica. Diz-me que o desejo de esconder quem realmente sou, por detrás de máscara aparentemente inocente, embora de pecador arrependido a demonstrar que boa bisca não fui, é muito fácil de identificar, de forma que, se quiser aproveitar-me desta oportunidade ímpar para o princípio da regeneração, está na hora de demonstrar a minha vontade, ou serei devolvido para o local de onde vim.
Que chave é essa que abre todas as portas? Dizem-me que é o remédio mais eficaz, pois o temor da aflição conhecida leva os indivíduos à resignação. Estou bem percebendo as manobras com que querem envolver-me. Já não sinto a mesma disposição de encontrar a melhor palavra e não sinto a mesma força para tentar burlar o escrevente. Sei que meu intuito está sendo decifrado com rigor e peço humildemente perdão por estar tentando aproveitar-me da disponibilidade intelectual do mediador.
Sinto-me, realmente, pesaroso por ter cometido os crimes que fizeram de mim este ser monstruoso. Digo isto, todavia, sem convicção, por ter ouvido dizer que a modéstia é precioso dom, para convencer as pessoas a se condoerem da gente.
Vejo que todas as minhas palavras vão ficando sérias e meu desejo de desviar a atenção para outro lado, bem difícil de conseguir. Se continuar deste jeito, vou pedir para que perdoem e vou aceitar responder simplesmente às perguntas que me fizerem.
O meu nome é... Impedem-me de revelar e me propõem um outro qualquer para efeito de registro. Não quero isso; é preferível deixar as reticências.
Dizem-me para não utilizar esse subterfúgio para voltar a tentar iludir o grupo. Percebo que tudo que possa dizer é do conhecimento de todos. Acho que me investigaram bem antes de me trazerem aqui e que estão melhor informados ainda a respeito de tudo o que fiz.
Ia pedir para me dizerem se a conjectura é verdadeira e me disseram para deixar bem claro que, desde o início, eu sabia perfeitamente disso. Dizem-me para não fazer cena e que deixe até de reproduzir-lhes as falas. Dizem-me para ser sincero e para demonstrar vigorosamente quem realmente sou.
Pois acho que, se lerem tudo o que ficou aqui perfeitamente expresso, vão poder deduzir com justeza. Não pretendia melhorar e queria ir levando em banho-maria esta longa dissertação. Só que não esperava que me fossem destinar tanto tempo. Outro dia, estive em um centro... Pedem-me para facilitar a vida de todos, não produzindo pequenos contos familiares a quem vem desenvolvendo sua acuidade para a percepção das peripécias intelectuais dos seres em inferioridade moral.
Surpreende-me o fato de ser bem capaz de elaborar as noções que me são passadas. É com real admiração que insisto em deixar este aspecto assinalado.
Eu mesmo me vejo investido de certa capacidade, o que escondia até de mim mesmo, pois treinei bastante o raciocínio, mas de forma a praticá-lo em situações de obter vantagem com relação aos outros. Agora, apesar de observar que me estou utilizando dele para estender um pouco mais minha permanência, é com honestidade que estou declarando minha emoção.
Fiquem, amigos, com Deus e procurem realizar na vida só atos de que não venham a ter de se arrepender. Essa a lição que sou capaz de oferecer, já que me pedem para abandonar o posto, deixando algo que não seja a minha própria inutilidade. Acho que, apesar de tudo, um dia voltarei a me deparar com esta insignificante produção e aí irei surpreender-me da verdade, pela péssima pessoa que sou ou era. Fique, assim, consignado o resto de meu grande orgulho intelectual, para que venha a compreender o quanto de trabalho desenvolvi, para poder chegar a um ponto de evolução melhor. Queira Deus possa repugnar-me diante disto tudo, de modo que não venha a ver nada de bom nesta minha... Não sei caracterizar o que me vai na alma e o escrevente não desejou ajudar-me. Agradeço-lhe, mesmo assim, o trabalho de assimilar esta longa série de... Novamente, a expressão não corresponde ao meu verdadeiro sentimento. É como se começasse a falhar no intuito de persistir com meu...




Comentário



O escrevente bem captou a intenção do grupo de deixar o amigo conduzir-lhe a pena pelos descaminhos de uma personalidade deformada por muitos anos de desvios do correto raciocinar.
Dado o esgotamento energético do mediador, vamos deixar para outra oportunidade o comentário que aduziríamos ao texto. Somente devemos acrescentar que o sofredor foi muito infeliz em não acatar as sugestões de que se emendasse diante do grupo, de modo que não sabemos se seu despautério, ao final da comunicação, vá ser-lhe de proveito para a regeneração.
Por nossa parte, faremos tudo que nos é permitido para auxiliá-lo, mas, se resistir, não se poderá obrigá-lo a abandonar os maus hábitos, especialmente se se rejubilar através deles, o que nos pareceu ter ficado claro ao assumir o controle da pena e do pensamento do mediador, para fixar as diretrizes temáticas da comunicação.
Oremos por ele, irmãos, para que a verdade se lhe faça, mesmo que à custa de muito sofrimento e sacrifícios, o que demonstrará a força do perdão divino.







15

POBRE SOFREDOR





Tenho vinte e cinco anos e mal posso assegurar que vá determinar-me a ficar por aqui qualquer tempo. Não acredito em que os meus males possam ser sanados por simples referência a eles, nem que arrependimento algum possa restabelecer os fatos.
Não é verdade que as coisas se deterioram? Hoje estão novas, mas o tempo faz com que se estraguem. Quando estão sendo bem usadas e cuidadas, mesmo assim se destroem. Imaginem, então, se são desperdiçadas, maltratadas, aí as coisas se desgraçam logo. Como é que será possível acreditar que se restabeleçam?
Eu, um dia, rasguei uma calça novinha. Meus pais me haviam comprado numa loja chique, para o que haviam feito enorme sacrifício. De propósito, peguei a tesoura, às escondidas, e meti a ponta na costura. Aí errei, pois queria despregar uma parte e acabei furando o tecido. Minha mãe descobriu a peraltice e me deu uma surra. A calça ficou perdida, pois nunca mais quis colocar aquele feio remendo e minha mãe ficava chorando, arrependida por ter batido em mim. Nunca mais esse erro foi esquecido.
Como é que vão dizer agora que as coisas se restabelecem?
Não penso que tudo esteja para sempre perdido. No caso da calça, ganhei outra, depois de muito tempo. A que estraguei ficou abandonada no armário, sem utilidade. No caso da surra, aquela não foi a única e outras foram se juntando no armário de minha memória. Mas me lembro de todas elas e nenhuma se apagou.
Será que, se contar todos os casos em que apanhei, só isso irá ser capaz de me fazer esquecer de tudo? Eu duvido.
Estava chegando a hora de me definir a respeito da vida, quando parti para este outro lado. Não tenho intenção alguma em pensar no que me sucedeu, pois não quero fazer passar para o papel o drama maior de minha existência. Tenho esse direito? Ou não?
Pedem-me para dizer o que espero da turma que me socorreu.
Acho que esses cuidados estão muito bons e estou sentindo boas melhoras no estado geral. Faz bastante tempo que vim para cá e não acho que se possa fazer muito por mim. Quando pensava que ia arrepender-me dos males que fiz, logo me apareciam na mão os objetos que utilizei para praticar os malfeitos. No caso da calça, recebia uma tesoura e ficava furando os tecidos que encontrava. Aí aumentava mais o sofrimento.
Era muito triste ficar com o revólver atirando a esmo, ensurdecido pelos estampidos que não acabavam mais, pois não precisava recarregar.
Houve uma época, contudo, que me veio à cabeça dar uns tiros em certa pessoa. Foi a maior alucinação, pois aí não tinha as balas e precisava buscar a munição. Quando encontrava, não sabia onde estava o revólver e, quando achava, não mais sabia onde havia deixado as balas. Fiquei nessa agonia até que desisti de atirar. Aí o revólver se carregou sozinho, mas abandonei a idéia, de modo que ficou inútil. Dei uns tiros para o ar, para informar que poderia atirar quando achasse necessário. Mas nunca mais precisei dele e, se agora me visse na situação de ter de dar uns tiros, já não sei mais onde foi parar.
Parece bobo o que acabo de descrever, mas esta tem sido a história de meu arrependimento. Sempre que penso que posso afastar das recordações alguma coisa, eu digo:
— Hoje vou esquecer disso ou daquilo.
Mas nada acontece do jeito que penso; aí vou correndo buscar no fundo do armário da memória todos os meus casos.
Houve um dia que tive a impressão de estar faltando um. Tinha a certeza de que eram dezoito os processos. Então, a memória começava de novo a contagem. Quando chegava a dezessete, onde estava o outro? Comecei a suspeitar de que estava sendo perdoado, pois a rememoração só chegava a dezessete. Fiquei muito tempo relembrando, relembrando, até a exasperação. Aí me informei de que eram dezessete mesmo. Foi quando o décimo oitavo apareceu inteirinho. Eu não havia esquecido, senão momentaneamente. Parecia que fora castigado, pois justamente a recordação de repente daquele último assassinato me fez atormentar a cabeça com redobrada angústia. Mas não me arrependi. Antes, fiquei furioso em relação ao indivíduo que se constituíra em minha vítima e procurei despejar nele toda a minha ira.
Hoje estou bastante mais calmo. Isso reconheço e parece ter sido muito bom não ficar abespinhando-me à toa. Sei que meus casos são comuns e tenho visto por aí pessoas como eu dando tiros sem motivo algum. Eu mesmo tenho soprado no ouvido dessas pessoas como é que têm de fazer para matar, sem deixar rastro. Aí me divirto com a preocupação dos outros. Há os que choram porque perderam os parentes e eu rio a valer, pois bem que estou vendo o cara mesmo ali, muitas vezes se contorcendo em dores, embora não tenha mais corpo nenhum. Há os que atiraram e se viram, de repente, perseguidos e presos. Outro dia, um idiota se deixou pegar pela multidão. Era de ver todo o mundo embrutecido, dando pancadas no sujeito até que veio parar do lado de cá. Pensam que sossegou? Eu mesmo corri atrás dele dando alguns sopapos, para aprender a não cair nas armadilhas que lhe foram preparadas. Esse era um cara tão bobo, que dizia que queria voltar para a Terra para ficar no lugar daquele que havia assassinado, como se fora possível refazer o que havia sido desfeito.
É por isso que não vou aceitar comiseração de ninguém. Se vocês acham que minha maldade tem solução, basta fazer com que fique tranqüilo em algum canto, até que me dê vontade de fazer alguma coisa. Se não estiver bem vigiado, vou cair na gandaia e recomeçar tudo de novo, embora agora me sinta bem cansado dessas correrias.
Sem querer, deixei transparecer que foram dezoito os que matei. Mas agora não tem mais importância; vocês já viram que não sou boa gente. É por isso que não acredito em recuperação. Foi na prisão que aprendi as piores coisas.
Sabem que dificilmente vou concordar com vocês em que estou demonstrando saber o que é bom e o que é mau? O que é bom é o que nos dá satisfação; o que nos entristece é o que não presta. Se dou um tiro num sujeito que está cheio de dinheiro, vai ficar triste e isso é mau para ele; mas para mim vai ser bom, porque vou ficar com o dinheiro dele. Se me derem um tiro e levarem o dinheiro, não foi bom para mim, mas o sujeito que fez isso deve ter ficado muito feliz.
Não me arrependo de nada, porque logo vou receber o revólver, a faca ou a tesoura para poder fazer tudo de novo. Aí os crimes se acumulam e não há arrependimento que chegue. Outro dia foi interessante, porque me arrependi de ter provocado uma ânsia de vômito no sujeito que envenenei. Aí me apareceu na mão um vidro de arsênico, mas eu não sabia o que fazer com ele. Pensei que era para eu mesmo consumir, mas foi impossível porque não queria me matar. Era estranha essa sensação, porque estava bem morto, há muito tempo. Então, joguei fora o veneno; mas o arrependimento voltava e o vidrinho aparecia de novo na mão. Foi um inferno. Só me livrei do veneno quando consegui fazer um indivíduo vomitar um veneno que lhe haviam dado para morrer. Acabou morrendo mesmo assim, mas não mais vi o tal vidrinho.
Essa foi uma ação que posso dizer que foi boa para mim, pois eu mesmo me vi favorecido com ela, sem ter tentado prejudicar ninguém. Será que está aí o princípio da vontade e da recuperação?
Como é que não pensei nisso antes? Será que pensei e que não queria que fosse assim? Será que tive medo de ter de ajudar as outras pessoas? Será que pensei que iria ter de trabalhar muito pelos outros, para poder ficar sem a preocupação do arrependimento? Mas não sinto a consciência pesada. O que me leva a sofrer, a ter recaídas de dor, é justamente a impotência de superar o estado em que me encontro. Em toda a parte só vejo pessoas atirando, esfaqueando, envenenando, sofrendo, gritando, esperneando, estrebuchando; sangue por toda a parte, raiva, fúria, horror, massacres. Até no trânsito vi pessoas atirando, porque o carro ficou um pouquinho amassado. Até vi gente atirando porque nunca tinha feito isso e achava que, se não atirasse, não saberia a emoção que dá matar alguém. Isso verdadeiramente me eletrizou, me horrorizou.
Vejam que não sou totalmente mau, pois aí tive um pouco de sentimento, pois esse imbecil estava se entregando de graça na mão da malignidade. Ele não teve nenhuma vantagem. Ao contrário, depois que fez isso, a vida se desgraçou de vez. Aí a alegria de ter conseguido assassinar se transformou em feio fantasma a persegui-lo. Eu até que participei da encenação, quando estava dormindo.
Mas não vim aqui para me desnudar diante destes irmãos que parecem tirar a satisfação da existência do bem que possam fazer. Se não for com eles, aposto que vão ficar bem tristes, sem compreender como é que alguém possa passá-los para trás, apesar de ter entendido que há tanta bondade para se fazer.
Vou dizer mais uma coisa: se não fosse os que fazem tanto mal, como é que você iriam fazer para a recuperação deles? Acho que, se não houvesse criminosos, vocês perderiam o emprego. Era o que dizia para os carcereiros, só que eles eram piores que os assassinos. Aqueles lá, se não houvesse o crime, eles inventavam.
Mas não estou dizendo isso para ofender ninguém: é que estou fazendo hora, pois não tenho mais nada para fazer. Se conseguisse rasgar o papel que está aí pela frente, rasgava, porque, assim, não precisaria mais ficar escrevendo.
Tinha vinte e cinco anos quando parti da Terra para cá e agora estou com trinta que percorro a erraticidade. Não existe aí uma desproporção? Não parece que eu mesmo não tinha exata idéia do que estava fazendo? Não era caso de prender toda a gente que não soube me educar? Ah!, se minha mãe não me deixasse pegar a tesoura... Eu não rasgava a calça nova e não teria levado aquela surra. Essa foi a primeira.
Pensei que fosse receber na mão uma tesoura, pois acho que acabo de me arrepender. Ao invés disso, algumas lágrimas brotaram-me dos olhos. Será que é o remédio que está chegando? Como é que vocês conseguiram isso?
Não quero mais voltar a pensar nas coisas como antigamente. Haverá alguém que possa me ajudar nisso? Era só pensar em crime e já acontecia alguma coisa. Será que há outras coisas em que possa pensar? Coisas boas que me dêem sossego e prazer?
Evitei pensar em meus pais o tempo todo, pois tenho muito medo de que esteja aí a origem das desditas. Hoje estão bem velhos; já fui visitá-los e quase não os reconheci. A minha mãe ainda chora quando se lembra do dia em que me surrou. Até aquela calça está no armário. Um dia eu a encontrei bastante arrependida e um chinelo apareceu-lhe na mão. Aí começou a bater nela mesma. Pensei que fosse ilusão minha, mas a força das coisas estava bem ali. Era a minha mãe que se dava uma boa surra. Acho que, se pudesse, não me surraria mais. Mas a minha idéia na hora foi de sair correndo, com medo de que pudesse me dar outra surra e tivesse de se arrepender de novo.
Meus amigos, peço para me darem descanso. Acho que os atormentei demais e vejo que a paciência não tem limites. Se me fosse dado continuar escrevendo, iria ter de repetir tudo de novo ou ficaria contando, caso a caso, tudo o que se passou comigo.
Estou impedido de falar do médium, mas não tenho como deixar de me referir a ele, que fica o tempo todo à disposição, como se ele mesmo não existisse, mas fosse só máquina de repetição. É estranho que se disponha a tal serviço, quando se percebe que poderia ir fazer outra coisa. Admiro essa sua participação.
Mas não vou agradecer nada, não. Só vou prometer ficar um pouco mais tranqüilo e que não vou perturbar o ambiente. Como vocês dizem: graças a Deus!
Não querem que me vá deste modo e pedem-me para esclarecer por que não quero agradecer. É que acho que o trabalho realizado foi a alegria de todos, pois estou predispondo-me bem melhor. Se agradecer, corro o risco de ser considerado falso, por tanta maldade que demonstrei.
Se é hora de começar a ficar civilizado, se é o início da recuperação, então vou dizer muito obrigado, irmãozinhos, por tudo que fizeram por mim. Não sabia o que era ter vergonha e agora não sei onde enfiar a cara. Desculpem-me!




Comentário



O grupo não irá aduzir qualquer comentário, a não ser repetir o agradecimento do irmão sofredor à paciência e integral disposição do escrevente.
Gostaríamos de deixar bem enfatizado que o sistema que adotamos para a imantação é de meio sonambulismo, conforme deixamos assinalado na introdução. Este caso, especificamente, só nos foi possível apresentar em virtude de ter o médium agido de modo inteiramente passivo.
Não importa que não se obtenha texto publicável. O que nos interessa é o trabalho de auxílio que se logra através da atenção que se dá a seres que se consideram sempre muito mal recebidos, pois são vergastados pela moral superior dos doutrinadores. Muitos são renitentes, a ponto de resistirem às melhores argumentações, porque não suportam sentir-se tão inferiorizados. Há, entretanto, aqueles que tomam a paciência como subalternidade e desejam submeter os mediadores e doutrinadores à sua vontade. Mas estes vão ficar bem longe desta mesa.
Queremos reiterar os agradecimentos e solicitar que as preces sejam feitas com o máximo de compenetração, para que o serviço de revitalização se faça com real proveito.
Fique, amigo, na mão do Senhor!







16

ONDA DE AMOR





Sempre que desejo algo para mim, procuro concentrar-me e logo detenho o que quero. Imaginei que estava na hora de vir escrever e logo para aqui me transportei, com a ajuda, é claro, de certos irmãos que se encarregaram deste serviço. É a isto que denomino de onda de amor. Se tudo no universo fosse assim, que grande maravilha seria!
Quando andava pelo mundo, gostava de pensar exatamente desse jeito; punha-me a pensar com força em alguma coisa e, mais cedo ou mais tarde, obtinha o que desejava. Era muito feliz.
Hoje, não posso dizer que não seja mais feliz mas é muito diferente. Outrora, obtinha bens materiais e isso me satisfazia. Agora, não encontro nada para fazer, a não ser ficar indo de um lado para outro, perdida, não sabendo bem onde estou e o que pretendo. Por isso, até estranhei quando imaginei esta situação de estar escrevendo.
Meu irmão leitor, não se prive de ir conversar com seus amigos. Deixe de lado este texto sem força e sem sentido e vá espairecer. Por certo, você terá algo mais valioso com que se entreter. Não sou boa companhia, pois nada ofereço que possa ser de proveito.
Se você ainda estiver interessado em acompanhar este discurso, resigne-se a aceitar a idéia de que muito terá de ter paciência, para só matar a curiosidade de saber o que se passou comigo, pobre ser inferior das catacumbas e da escuridão.
Eu era boa mãe de família, até que desandei à cata de luxúria. Foi minha perdição. Como disse que era pensar muito e obter o que quisesse, foi assim que fiz para ter ao meu lado certo jovem que vira na praia. Era alto e forte e fiquei imaginando como seria ficar com ele, tão diferente de meu marido, baixo e atarracado, pegajoso e peludo. Se pudesse, faria algumas descrições interessantes, mas estão a dizer-me que as pessoas conhecem tudo o que possa oferecer, conforme o que eu mesma supus. Pedem-me para demonstrar arrependimento, o que é condição para se ter chegado até este local.
Pensei que fosse só desejar e já estaria aqui. Se quiser sair, basta concentrar-me... Mas não tenho para onde ir. É verdade que desejei não ter vivido daquela forma. O meu marido é que não gostou de saber o que lhe aprontei e foi logo batendo em mim, dizendo isso e mais aquilo.
A cena de ciúme resultou em sangue e eu, para não ser ferida, defendi-me e o matei. Não tive mais sossego, pois a polícia investigou direitinho e percebeu que eu tinha um amante. Como era idiota, meu Deus! Fui logo cair nas garras de um ser perverso, que me deixou na rua da amargura. Quando me livrei da condenação, pois ficou tudo claro nos autos do processo, que me defendera ao ser ameaçada de morte, fui procurá-lo e recebi sonora gargalhada, que não estava nem aí com o que me havia acontecido e que não queria ficar ao lado de um ser tão estúpido que não foi capaz de guardar um segredo.
Aí houve outra cena, mas o camarada estava prevenido e não me deixou assaltá-lo com minha faca.
Guardei muito ódio no coração e esqueci que havia uma possibilidade de desejar e conseguir. A onda de amor é bem diferente daquele rancor que guardava comigo.
Aí surpreendi o vigarista e lhe dei três facadas no bucho. Na hora, pensei que estava tudo bem, mas, de novo, a polícia ficou sabendo que fora eu a assassina e não me perdoou mais. Já não era mais legítima defesa, mas crime premeditado, sem circunstância atenuante. Estas palavras todas martelaram-me a cabeça durante muitos anos na cadeia e depois que saí, até o dia em que voltei a imaginar, já no etéreo, que podia esquecer-me, se tivesse bastante força de vontade. Eram palavras que ouvi o advogado dizer ao juiz ou que o promotor de justiça falava, apontando para mim, como se eu fosse a pior das criaturas.
Pois fui mesmo muito ruim para meus filhos, que eram ainda muito crianças quando tudo isso aconteceu. Eram três meninos, que me passaram a odiar por todas as razões, porque tinha assassinado o seu pai e porque fiquei para sempre longe deles. Até que tiveram sorte, porque a família do meu marido tomou conta deles, até que se viram adultos.
Passei vários anos na cadeia e lá vi o que é a miséria humana, junto daquelas mulheres-monstro, que só sabiam desejar coisas para si e ameaçar as outras. Eu bem que me senti em casa, pois dava medo em muitas delas e não fazia questão de dizer que havia matado dois. É por isso que até hoje não escondo o que fiz, especialmente porque paguei pelos crimes de sangue.
É verdade que muitas coisas ruins se passaram atrás das grades e que, depois que saí, também me tornei mulher da vida, fácil que nem quiabo para pegar, mas escorregadia por dentro que não havia meio de me prender pelo sentimento. Esta imagem levei muito tempo para compreender, pois houve quem verdadeiramente me quisesse ao seu lado, mas estava muito escarmentada da vida para aceitar tudo numa boa. Esse foi o terceiro e mais sério erro de minha vida, pois fiz do coitado gato e sapato. Dei-lhe todos os motivos para me abandonar, mas resistiu até o fim.
Quando estava bem velhinho até que tive pena dele, mas aí era tarde: não adiantou mais ficar desejando voltar atrás que não iria mudar coisa alguma.
Essa foi a minha vida, transição para o nada que sou agora. Bem que avisei que não valia a pena seguir o meu escrito: eu me conheço e sei até que ponto posso atrever-me. Quando estava presa, li muitos livros e, por isso, posso dizer que não sou capaz de fazer nada que preste nesse setor, embora consiga concatenar as idéias e repetir algumas frases que marcaram a minha vida. Mas isso foi há muito tempo e agora nada mais significam. O que li, para esclarecer os que se sintam curiosos, eram romances apimentados, literatura barata; nada de livros espíritas ou obras de valor. Aliás, sei que isso existe exatamente por ter recebido vários livros dos amigos da cadeia, que desconfiava que desejavam me acalmar. Botei tudo fora, como fiz com a minha vida.
Mais tarde, cheguei a comparecer a diversos centros de umbanda, se isso representa algo em minhas lembranças que se possa aproveitar. Cheguei até a pedir algumas coisas e conseguir. Foi daí que me veio à cabeça essa onda de amor, a coisa mais bela que jamais tive a oportunidade de criar dentro da cabeça. Quando penso nisso, até fico toda arrepiada, pensando que haja alguma coisa de bom dentro de mim.
Hoje, acho que me fiz bem entender. Não escondi nada e penso que já tenha pagado todos os males, quer na prisão, quer procurando ir de um lado para outro, na intenção de esquecer-me de tudo, para não ter de reviver a cada hora os momentos penosos dos assassinatos e do abandono do lar. Acho que está na hora de concentrar-me bem forte, no desejo de voltar a nascer na Terra, para poder oferecer os meus préstimos a alguém. Soube que isso é possível, pois tive a idéia de procurar o meu marido e me disseram que era bem capaz de ele ser uma daquelas crianças que vi nos braços da minha nora, uma que me recebeu muito mal e quase me botou para fora da casa. Nunca mais voltei lá.
Mas essas são histórias tristes de um passado morto. Agora, gostaria de saber o que devo fazer para conseguir manter este estado de euforia que me domina e me empolga, a ponto de estar sentindo ter de deixar este posto, para voltar a correr pelo mundo, sem paradeiro. Se me puderem manter com vocês, prometo que não vou ter nenhum acesso de raiva. Podem até me castigar, como quando estava na prisão, onde costumavam jogar água fria em mim, até me sentir mais calma.
Que desespero, meu Deus, esta existência atribulada. Façam por mim a mesma onda de amor que senti quando vim parar aqui, por favor. Eu lhes peço com muita humildade e me proponho a qualquer coisa que desejarem. Peço perdão por me lembrar dos fatos grosseiros da vida — ainda bem que o médium não escreveu a bobagem que vibrei em forma de pensamento erótico. Mas fiz questão de fazer referência ao fato, para demonstrar o quanto estou disposta a fazer para conseguir mais alguns momentos de sossego.
Vejo que estas lembranças do tempo em que estive solta no mundo, aprontando de tudo para sobreviver, estão muito fortemente impregnadas em meu ser, a ponto de me ter feito conduzir muitas vezes para casas de prostituição, para repetir lá os atos a que estava acostumada. Há forte censura neste aspecto, mas não vou deixar de referir-me a algo que me tem atormentado tanto. Por isso é que cheguei considerando-me a mais inferior criatura. Por isso é que recomendei que o leitor se afastasse deste caminho tenebroso que é a minha consciência. Pelo amor de Deus, façam com que eu deixe de desejar tanto certas coisas, pois não consigo ir até o fim de nada, e só fico exasperada, pronta para fazer o mal às pessoas que se deixam envolver sensualmente pelos mesmos sentimentos.
Vejam com que cuidado estou sendo conduzida por meio destes feios pensamentos. Podem acreditar que, se não fosse pela atitude de modéstia e de recato dos que estão aqui, deixaria por escrito umas cenas bem nojentas, que são os quadros vivos do meu tormento, da minha angústia.
Pedem-me para dizer que tudo o que não deixei registrado pude dizer à vontade para os amigos da espiritualidade, senão vão pensar que haja aqui policiamento, a ponto de se refrear a liberdade das pessoas. Aqui nós podemos demonstrar tudo o que somos, pois não conseguimos desrespeitar ou escandalizar ninguém. Pedem-me para dizer que só no que concerne à transmissão mediúnica é que estou impedida, pois isto poderia levar certos leitores à prática de pensamentos libidinosos, o que contrariaria todas as premissas evangélicas.
Quero dizer que me puseram na boca as palavras certas. Bem que me propus afastar-me para que dissessem tudo o que queriam, mas me fizeram porta-voz de suas razões, para que, segundo eles, pudesse entender a diferença entre as entidades por meio de suas expressões.
Realmente, não seria capaz de pensar desse jeito, mas pareceu ter ficado bem claro que existem outras coisas por detrás da aparência de santos que assumem esses seres, quando vão buscar os pobres na escuridão. Quando disseram que qualquer coisa que dissesse eles já sabiam, era bem a expressão da verdade.
Que bom que estou sentindo-me bem aliviada da pressão com que cheguei. Pensei uma coisa e foi outra bem diferente. Estava com medo que me xingassem, que dissessem que era isso ou aquilo. Na verdade, o que me ofereceram foi muito mais do que suspeitava. Se vocês querem saber, muito me arrependo por não me ter convencido há mais tempo a acompanhar estes seres maravilhosos, pois convites não me faltaram.
Mas estava cega para esta compreensão, pois achava que aqui era lugar de sofrimento e de remorso. Sei que não vou continuar assim fresquinha como me sinto agora, franga nova no galinheiro. Vai haver o momento de fornecer a minha carne para o caldo do doente. Só espero que nessa hora esteja preparada para o sacrifício e que o faça na intenção de curar alguém, pois compreendi que esse é o caminho, já que é assim que fazem estes que me ligaram ao grupo em verdadeira onda de amor.
Queria encerrar com esta frase de efeito, dando ao fim a ligação com o começo, mas me pedem para oferecer o meu agradecimento a todos quantos vibraram comigo, dizendo a prece dominical, com o máximo de entusiasmo de que seja capaz.
Pois farei mais que isso: declaro, para encerrar, que, de hoje em diante, procurarei corresponder às expectativas dos que depositaram confiança em mim.
— Pai nosso...




Comentário



Queremos enfatizar a inspiração de nossa companheira, no sentido de dizer que, realmente, a linguagem que transparece nos textos resultantes dos depoimentos está bem longe de refletir aquela dos sofredores, muitos inibidos por circunstâncias especiais até de se manifestar com coerência. Para não se suspeitar de fraude, devemos ressaltar que muitos termos advêm diretamente das perorações que se fazem durante a transmissão mediúnica.
Não há como registrar no papel integralmente tudo o que se passa durante a doutrinação, especialmente porque há entrechoques de pensamentos e longos períodos de silêncio.
Se fôssemos gravar em vídeo o que ocorre, poderíamos oferecer melhor idéia da verdadeira avalancha de situações que se demonstram e de diálogos que se travam, mas nem assim se conseguiria trazer à tela todos os influxos energéticos que constituem a luta entre o debater revoltado dos assistidos e a firme serenidade que precisam manter os orientadores. Entretanto, daríamos melhor noção do que se passa. O registro escrito é, pois, só pálida demonstração do roteiro, fruto da exteriorização, muitas vezes maliciosas, das entidades em tratamento.
Não há, pois, como extrair daí conhecimento total do trabalho que empreendemos, a não ser por meio das exposições teóricas dos companheiros, nas explanações apreciativas dos dramas e na suposição da realidade psíquica pela explicitação dos sofrimentos. Fica o mais à conta da imaginação do leitor. O que não se pode negar é o fato de que a dor existe e de que a perturbação será sanada por tratamento de muito carinho, em real onda de amor.
Fiquemos todos nas mãos de Deus!







17

MEU ARREPENDIMENTO





Quando estive aqui pela primeira vez, não fui atendido. Julguei que fosse por estar muito sujo e fui lavar-me — isto no sentido espiritual. Eu chamo o meu arrependimento de purificação. Sei que estou muito longe da perfeição, mas não tenho meios de melhorar, a não ser se me derem apoio e esclarecimento.
Tudo que quiserem de mim posso dizer livremente, pois acho que só poderei conseguir sossego se for leal e honesto, embora ache que essas qualidades não são fáceis de conseguir.
Dizem-me os amigos que me trouxeram até a mesa que, verdadeiramente, é tarefa complicada chegar ao ponto de reconhecer os erros cometidos. Quando se pega uma panela quente e o calor queima a pele, é fácil de perceber que se cometeu uma falha. Mas quando o erro é moral, aí as crises se complicam, pois fica difícil de querer reconhecer que não se estava certo.
Há pessoas que matam, que roubam, que mentem e acham que tudo o que fazem serve de proteção para alguma ameaça ou para possibilitar que algum bem que estivesse faltando seja conseguido com maior rapidez e pouco esforço. Para isso, precisam vestir carapuça protetora que as venha defender dos ataques dos inimigos e da própria consciência. Esse confronto com a consciência é que penso que não seja fácil de realizar.
Os bons amigos que tenham paciência para comigo, pois sou muito lento no raciocínio e não sei expressar direito tudo o que sinto; por isso é que recorro às comparações. Se vêem nisso um pouco de malícia, podem até estar certos, pois é a maneira que descobri para me defender, por minha vez.
Outro modo de ir afastando as ameaças é ficar jogando conversa fora, esticando os assuntos; mas, conforme disse, vou contar tudo e esses dois jeitos de disfarçar é que me estão atrapalhando a minha desenvoltura em me apresentar desde logo da maneira como sou.
Se pratiquei alguns crimes? É verdade. Sou criminoso, ou melhor, fui, na última encarnação. E não me orgulho disso. Sei que o pior que poderia ter-me acontecido era fugir das normas que eu mesmo havia instituído. Esse o motivo maior de meu arrependimento, pois julgava-me bem superior às outras pessoas e solicitei prova bem forte. Mas falhei redondamente e sou bem capaz de reconhecer, agora, o quanto, na verdade, sou inferior.
Não tenho muito mais que revelar, a não ser se quiserem que conte os casos em que matei, roubei e menti, pois o que falei dos outros queria referir a mim mesmo.
Estou a ponto de fender-me ao meio, pela vergonha que sinto.
Dizem-me para não mentir.
Pois é isso mesmo; tenho sossego e bem gostaria de demonstrar certa preocupação por causa disso. É bem verdade que não ligo muito para o que fiz e que o arrependimento que declarei é falso. É que vi que os espíritos saíam da reunião com direito à felicidade, após terem-se lamentado e chorado muito. As lágrimas não me brotaram, posto me esforçasse para isso. Mas as palavras saem fartas e escorrem para o papel, porque a anotação, por mais que se esforce, não consegue acompanhar todo o ritmo do pensamento, que não é tão lento como tentei passar.
Como vocês vêem, digo as coisas e logo caracterizo o contrário. Desse modo, vocês não sabem exatamente o que pensar, apesar de que a última expressão seja sempre desfavorável a mim.
Quero pedir desculpas — e logo me perguntam se não vou desdizer o pedido em seguida. Pois preciso refletir mais para falar.
Será que posso ir mais devagar? Sei que todos são muito cordatos e têm aquela paciência a que me referi no começo. Mas tenho que me lavar de toda esta sujeira moral, como já disse, e não me importo se vocês vão ficar zangados, pois nada pode ser pior do que a fúria dos companheiros de infortúnio. Espíritos bons, quando se enervam, só fazem rezar e jamais se vingam. Como vocês vêem, jogo maliciosamente com a postura dos socorristas, pois sei que o máximo que podem fazer para não se ferirem é soltarem-me ao deus-dará e isso até com muito arrependimento e frustração por não serem melhores para convencer o demônio que os afrontou.
Aos poucos, conforme prometi, vou revelando minha contextura espiritual. O que não quero é que haja surpresas diante das manifestações de meu horrível procedimento intelectual. Se me querem desnudo diante de vocês, vão ter de aturar este meio arrevesado de expor as mazelas que se sedimentaram em meu caráter.
Acho que estou exigindo muito dos amigos, que devem estar carecas de saber o que se passa no íntimo de cada sofredor que lhes chega às mãos. Ia comentar a expressão careca de saber, mas penso que as questões lingüísticas não afetam o modo pelo qual penso nem os sentimentos que exprimo. De qualquer modo, é expressão que aprendi com o médium, que me propôs alternativa popular de dizer algo que me pareceu possível de exprimir por meio de forma um pouco mais grosseira, embora não ofensiva.
Eis que revelo mais um nó da corda da minha consciência. Sou bem feio e grosso por dentro, mas apresento-me maneiroso, para não despertar suspeitas sobre mim. Penso que essa seja mais uma das péssimas qualidades de minha formação.
Também acho que tudo o que venho revelando a meu respeito seja a maneira pela qual a maioria das pessoas que conheci agem. Não vejo vantagem em ser igual aos outros, mas afirmo, peremptoriamente, que ninguém poderá constituir-se em juiz, se não dominar os impulsos maus, a ponto de suprimi-los.
Perguntam-me como é que se pode fazer isso. E eu é que tenho de responder? Por favor, não me tirem do sério. Sei que tenho sido bonzinho e vou levando da melhor maneira que posso, mas, se me provocarem, vou ter de reagir pela forma que estou acostumado com aqueles que desejam montar a cavalo sobre mim.
Agora não estou mais disposto a fazer comentários a respeito da gíria, pois estou vendo que há muita malícia pela forma que se dispõe o grupo, para levar o indivíduo a se descontrolar. Já não sei bem o que estou a escrever.
Perguntam se essa não é outra de minhas falhas emocionais. A questão veio em boa hora, pois não estou pretendendo revelar o quanto posso ser violento. Não estava em minhas intenções, pois essa era arma de defesa que considerava inviolável. Mas a força que pude querer demonstrar pareceu brinquedo de criança, pois com três passes fui dominado inteiramente, cordeirinho nas mãos dos leões.
É impressionante que a calma que me adentrou a mente me confortou e me ensinou a estimar estes novos companheiros.
Será que falta algum outro aspecto a ser relatado? — Ah! Sim! Devo dizer que projetei toda esta encenação para que o texto produzido pudesse significar algo para o leitor. Não me pegaram de calças na mão, pois vi como é que se trabalhava e procurei elaborar algo que pudesse dizer que sou imensamente vaidoso, pois pretendo estar ainda agora provocando a inveja e a admiração dos encarnados. Não das entidades do meu plano, pois sei que para eles nada disso tem qualquer valor. Os mais adiantados vão sorrir de minha ingenuidade, pois são capazes de produzir algo muito superior. Os menos adiantados vão ridicularizar o frango a se pavonear, embora eles mesmos não entendam as artimanhas que são necessárias para se chegar a este resultado.
Eis outro problema que terei de sanar: a minha força intelectual tão mal dirigida.
Dizem-me que, se iniciar dizendo uma prece, poderei resgatar desde logo alguns maus pendores.
Antes de responder à proposta, devo esclarecer que o meu vocabulário está tornando-se capenga para exprimir as idéias mais sutis, de modo que vou ter de parar de escrever, já que não consigo comparações apropriadas. Aquela de frango a se pavonear foi muito fraca, mas não me veio nada melhor para exprimir a sensação que as pessoas iriam ter ao presenciarem alguém tentando demonstrar aquilo que realmente não é. Será que o fato de me considerar melhor que alguém não está revelando que haja problemas sobre os quais não lancei qualquer desconfiança? Será que as pessoas que iriam rir de mim, na verdade, não são pessoas ainda mais adiantadas do que eu, apesar de muito baixos na escala dos seres?
Vou orar da maneira que puder, embora deva dizer que as palavras nada poderão significar diante do acervo tão grande de más tendências e de maus costumes que adquiri. Sei a prece do pai-nosso e posso dizê-la de cor e salteado, até de trás para a frente. Sei ainda a ave-maria, mas essa é fraquinha, pois não revela exatamente o que se passa no campo da espiritualidade. Acho que só serve para as velhas carolas, para acompanharem o terço. O pai-nosso, não: é prece de substância, que foi o próprio Jesus quem inventou. Eu sei disso porque li no Evangelho. Pensam que sou ignorante de religião?
Pois aí está mais outro grave defeito que terei de suprimir para poder evoluir, ou seja, a hipocrisia, a falsidade, a mentira íntima de estar de acordo com tudo só aparentemente, mesmo no que concerne ao Pai, que deve estar esperando de mim muito mais do que simples arrependimento da boca para fora.
O amigo escrevente suspendeu a pena para contar as folhas que foram preenchidas. Aí ele me fez propor a seguinte questão:
— Se estou tão certo das coisas que digo, por que não me coloco, desde já, a serviço do bem, esforçando-me para melhorar cada ponto negativo que eu mesmo levantei?
É porque, meu caro, você não sabe como é perverso o espírito que se acostumou a prevalecer pela maldade, insidiosamente colocando-se aparte das conseqüências, sem deixar de ser causa de muitos infortúnios. Se for para o meu bem, vou tentar ouvi-lo, também para você não ficar tão preocupado com suas tarefas e com o método que estou empregando para ir levando as coisas, de modo a sair desta sem penetrar no mundo dos sofrimentos morais que me prometeram, sem ameaças, por ninguém escapar incólume dos crimes. Essa apreensão existe e temo estar prestes a destruir a personalidade que tantos desbaratamentos tem provocado.
Como você pode perceber, há certos estremecimentos e não me sinto mais seguro de mim como até há pouco estava. Os amigos dizem que este transe se intensificará e que devo despedir-me, rogando preces para me facilitarem a passagem pelas ruas da amargura. É isso aí: orem por este sofredor, que irá, deveras, ficar arrependido.
Adeus, meus amigos!




Comentário



Verdadeiramente, muito terá de sofrer o companheiro para desvestir a pele de cordeiro, lobo feroz que ainda é. Mas está a mordiscar o próprio rabo, de sorte que descobrirá, realmente, que as panelas postas na brasa tendem a esquentar.
Livre-nos o amigo médium destas expressões comparativas, por favor, pois parece que o hábito do irmão sofredor está impregnado em nossa mente. É claro que estamos elaborando pequena facécia demonstrativa da alegria que se apossou de nós, por percebermos que nosso trabalho terá êxito, relativamente a este enfermo. O tratamento será longo, a moléstia é insidiosa, mas temos especialistas competentes e drogas adequadas para lhe dar o conforto devido. Se não se afastar por conta própria, estaremos seguros do bom resultado.
Vamos realizar a prece de que o irmão tentou escapar, em seu disfarce habitual. Antes, porém, vamos encerrar a tarde psicográfica, de novo agradecendo a paciência dos amigos.
Fiquem nas mãos de Deus!







18

FRUSTRAÇÃO





Como gostaria de ser espírito protetor, encarregado de reger os destinos cármicos de criaturas bem felizes, normais seres humanos, que teriam em mim amparo para a realização dos objetivos da vida! Mas sou pobre ser inferior, indigno de prestar assistência a quem quer que seja, necessitando mesmo de auxílio dos irmãos que tanto trabalho tiveram para me trazer até aqui.
Admiro muito este corpo de experimentados servidores do Senhor, pois eu mesmo fui um não há muito tempo atrás, pois, sacerdote da igreja católica, servi durante muitos anos à minha instituição. Quando cheguei de volta, estive durante largo tempo à procura das recompensas do céu e, até mesmo, dos castigos do inferno. Era o que ensinava aos paroquianos na diocese em que trabalhava.
Durante a vida toda, procurei ser boa pessoa. Não faltava aos compromissos de minha ordenação e pretendia compor-me com Deus para o efeito a que me destinara. Tinha a convicção firme de que iria obter da Divindade e dos santos tudo o que me era prometido pelas bulas e concílios. Vivia vida eclesiástica com muito denodo e apego, no temor de Deus, crente de que não poderia escapar da justiça do Pai, se transviasse das obrigações.
Sei que tive alguns excessos de zelo e até a consciência me acusava por estar sendo rigoroso demais para comigo mesmo e para os fiéis com quem compartilhava o confessionário. Era rígido o bastante para saber que o ministério sagrado era ponto de honra para a minha lealdade. Mas Jesus estava correto em dizer que a carne é fraca. Devo reconhecê-lo em mim, posto que ainda agora não me sinta com forças para relato aprofundado do que me ocorreu em vida, para me tornar tão infeliz após a morte.
Era a minha vida mar de rosas até que encontrei formosa mulher. Vejam bem, respeitava o celibato clerical com rigor e essa paixão serôdia não aviltou as minhas ordens de castidade. Se derivava, às vezes, a libido, conscientemente, para as orações e se me impunha severa vigilância sexual, a ponto de só admitir a ejaculação noturna, como evidente reação de caráter natural do organismo, iria ceder aos encantos femininos de quem se aproximou de mim no intuito de me atrair? Era a tentação de que se falava no seminário e não recusei a ofensa do diabo, contra quem pretendia digladiar e vencer, já que tinha a força da fé e o poder da oração.
Mas pequei contra a irmã que me tentava, pois repudiei-a intensamente da boca para fora, não permitindo que me envolvesse em sua malícia. Não fui bom para com ela; não a elucidei dos males do adultério; não a encaminhei na vida com a determinação de quem tinha nas mãos as tábuas de Moisés e os mandamentos da Santa Madre Igreja. Simplesmente, evitei a consumação do pecado em seu aspecto material. Mas tudo o mais que pudesse relacionar com o namoro, o noivado e a superexcitação carnal, deixei que acontecesse. Não foi bom para mim nem para ela.
Chamou-me um dia de frouxo, em plena confissão, e saiu à vida sem eira nem beira da contaminação pecaminosa da promiscuidade. Sentia-me culpado pela perda da pecadora. Corri a confessar-me, por minha vez, e expus todo o drama ao pobre padre Ravena, que não tivera experiência semelhante, santo homem, sempre pronto a dar aos pobres tudo o que conseguia arrecadar em espórtulas. Até a pequena igreja não se construía, tanto distribuía o resultado de sua féria.
Mas eu tinha outra mentalidade, mais afeita aos paramentos e à grandiosidade da instituição, o que me levava ao desencanto, quando percebia os bispos recomendarem a pregação das virtudes da pobreza e da comiseração. Para mim, não era lógico haver tantos templos e tantas catedrais suntuosas, com suas obras de arte, seus vitrais e demais petrechos em ouro, e, ao mesmo tempo, a pregação do púlpito de que os homens deveriam odiar os irmãos que lhes exploravam a força de trabalho, incentivando-os a que invadissem as terras, suspendessem o trabalho, impusessem pela força a justiça da melhor distribuição das riquezas. Eu não pensava assim e, nos sermões que dizia para as velhas paroquianas, as irmãs da congregação, os jovens das cruzadas eucarísticas, enfatizava o amor, o respeito às instituições, o apego ao emprego e a responsabilidade familiar.
Vejo agora que algo havia de desonesto em tudo o que fazia: não agia por impulso íntimo de confraternização. A minha vontade não era ver o povo ascender em paz aos páramos celestiais. Na verdade, queria manter o meu estado de vigário, na morna condição de ter de tudo um pouco para passar a vida de bem com Deus, sem provocar as fúrias do diabo. Era bem a contextura moral que se viu fortemente abalada quando percebi que errara em relação àquela que me interessara sobremodo.
À noite, após rezar vários terços — e isto aconteceu por anos seguidos —, eu me masturbava, mantendo viva na memória a demoníaca figura daquele ser que eu queria angelical. Quanto errei — Deus meu! Perdoa, Pai, a minha irrisão! Que cego estava! Não via que tudo era sofrimento a ser compreendido, analisado, enfrentado e superado. Não pensava desse modo. Temia perder o céu, por força do poder da malignidade do inferno.
De manhã, ia procurar o Ravena e lhe passava minha hesitação, meu ato de luxúria e meu temor. Dizia-me ele que isso era passageiro, que me lembrasse de Jesus no deserto e que visse na minha ilusão a sombra da Madalena. Não podia comparar-me com o Cristo, não queria ver-me às voltas com a necessidade da crucificação e ia levando o problema do confessionário para a cama, crente de que o resplendor da vida que fervilhava ao derredor me faria olvidar o drama íntimo e que iria conseguir suplantar a angustiosa situação em que minha inadvertência me havia atirado.
Poucos sacrifícios me lembrei de fazer para o alívio necessário. Antes, o amor impuro parecia deliciar-me por me fazer sentir na condição de ser humano. Era como se a pele, pela primeira vez, se sentisse eriçada por alguma coisa. Que emoção diferente! Que sensação de vida! Não desejava extirpar o mal que se instalara, pois achava que era justo a alguém que tanto se dedicava ao ministério sacerdotal ter algo secreto, que não faria mal a ninguém. De resto, praticava todas as orações que vinha indicando aos confessados desde que me ordenara.
Civilizadamente, interrompem-me a rememoração íntima, para me proporem o conserto necessário para que haja restabelecimento perispiritual. A custo, aceito esta terminologia da doutrina espírita, à qual não me afeiçoei e que acusei de fraude, revelando à opinião os males de que se viam cercados quantos se deixavam iludir pelas suas promessas. Aliás, penitencio-me de ter sido extremamente intransigente quanto à postura dos que tratavam com as almas dos mortos, que acreditava serem os representantes das trevas.
Sinto-me meio bobo diante da verdade que tão tardiamente se revelou a mim, embora até me regozije por estar bem compreendendo o que se passa deste lado, à vista de muitos companheiros que se acreditam no céu e outros, no inferno, ainda com as mentes apagadas para a realidade.
Desejo abençoar a todos os que se esforçaram por me arrastar até aqui, pois me fez muito bem refletir um pouco a respeito da pessoa que fui. Devo dizer que não pratiquei qualquer crime e que fui bom, quanto minha compreensão da bondade me permitiu. Às vezes, tinha estremecimentos de consciência, mas meu confessor dizia que era natural em quem se sabia impotente para exercer a benemerência material. Ele insistia muito nesse ponto, dizendo que minhas preces pelos pecadores eram muito mais importantes do que qualquer doação que ele fazia de comida e de agasalhos. Eu aceitava as explicações e mais ainda me apegava às orações, só que não abria mão das comodidades.
Minha primeira reação, quando descobri que não havia céu nem inferno, foi de lamentar profundamente não ter tido outro tipo de pensamento durante a vida. Aí percebi quanto fui miserável para com os que me procuravam para seu esclarecimento. Não lhes passava minhas preocupações mais íntimas, descrente de que pudessem entender-me, pois achava que, se não se imiscuíssem em problemas de caráter moral, mais facilmente ganhariam condições de ir ao paraíso.
Essas indecisões na carne se transformaram em profundo remorso e neguei Jesus muito mais vezes do que Pedro, não compreendendo que todo o meu procedimento feria os princípios mesmos que admitira durante o encarne. Consciente de que perdera a vida para o progresso, pensei em recompor o que fora em encarnes anteriores. Mas tudo estava bloqueado na memória. Estava impedido de recordar-me do que quer que pudesse oferecer risco. A explicação de que ao dia basta a sua preocupação me valeu e aí comecei a recordar-me dos dizeres evangélicos.
Paulatinamente, fui refazendo as diretrizes dos estudos sagrados, revi o meu latim, recordei o breviário e me pus a meditar profundamente, procurando vincular os pontos essenciais do catolicismo com a atuação dispersiva do sacerdote que fui. No início, buscava refrear os impulsos de julgamento, pois me desacostumara a perdoar e temia que as increpações que pudesse fazer contra os atos pecaminosos dos outros revertessem para mim.
Foi nesse ânimo de espírito que me encontraram os amigos. Ao vê-los, pensei que fosse chegada a hora do julgamento e confundi as trevas em que me encontrava com a figura do purgatório. Só que não me considerei puro e pensei que seria definitivamente arremessado às garras dos perversos. Mas logo me tranqüilizei, pois me foi evidenciado que as horas que passei em oração e em meditação falavam em meu favor. Aí se transformou minha emoção e, louco, atrevi-me a considerar-me santo, a quem se abriam as portas do céu. Essa ilusão também foi passageira e os anjos se transformaram em meros espíritos socorristas, protetores daqueles que se sentem perdidos.
Não sou juiz em causa própria nem preciso advogar para minha absolvição, já que não há julgamento, mas acreditem que o inferno moral que vivi nestes dois ou três últimos anos é bem a resposta às minhas injúrias existenciais.
Se me aceitarem em seu meio, irei refazer o voto de obediência, prometendo ser fiel aos ensinamentos que receber, revendo todos os tópicos que fortemente se impregnaram em minha personalidade. Não sou santo nem demônio, mas ser frustrado e desiludido, embora confie em Deus e em sua misericórdia.
Durante estes últimos tempos, esqueci-me de elevar em preces o pensamento ao Senhor, tão estranho senti o plano espiritual. Renego-me a mim mesmo e à minha estultícia, pois tenho para comigo que um pouco de felicidade ainda merecerei gozar, antes de ser de novo recambiado para a carne. Terei sucesso nesse novo empreendimento?
Dizem-me para não precipitar conclusões e que devo aguardar pacientemente a oportunidade de novo encarne, enquanto muito serviço sobra para mim, principalmente porque vão atender-me a solicitação inicial manifestada de que gostaria de ser espírito guardião. Se estiver de acordo — e é claro que estou —, deverei voltar ao plano material, acompanhando grupo assistencial, para avaliar as condições dos meus paroquianos, já que estou bem enfronhado de seus segredos mais íntimos. Caso me desvele e consiga reencaminhar alguns para as hostes do Senhor, ministério ideal de minha vida, talvez possa ser-me atribuída a tarefa de vigiar os passos àquela criatura por quem vibrei em amor.
Parece-me satisfatório esse plano, embora deva dizer que estou a ponto de recusar, à custa do muito de sofrimento que possa vir a representar, diante das injúrias de minhas realizações de vida. Não sei se estou preparado afetivamente para enfrentar as minhas debilidades tão cruamente. Se me prometerem amparo, talvez venha a tentar.
Pedem-me para retirar-me, não sem antes orar com emoção a prece dominical.
Graças a Deus!




Comentário



Não é preciso encerrar com grandes comentários a lúcida apresentação do amigo. O fato de ter sido padre católico no último encarne absorveu-lhe totalmente a performance espiritual. Não se trata de religioso por conveniência, como quis fazer-nos crer. Na verdade, era caso de vocação sacerdotal adquirida por força da iniciativa dos mentores, prova que aceitou na intenção de superar alguns defeitos de formação provindos de encarnações anteriores. Mas o irmão não conseguiu superar os pontos essenciais em sua peregrinação, de modo que se sentiu frustrado, mesmo sem ter plena consciência do que se passou.
Quando dissemos que a explanação foi lúcida, referíamo-nos aos aspectos relativos à percepção clara dos defeitos oriundos do ministério, em conflito com os apelos da natureza carnal. Se se mantiver da mesma forma desperto para analisar o espectro de sua aura, não demorará para atingir o ápice que lhe permite o estágio evolutivo em que estacionou. Daí para receber novos encargos com a finalidade de regeneração, será pequeno passo.
Não seremos nós quem irá estabelecer qualquer condenação pelas falsidades ideológicas que o conduziram durante o encarne e que se refletiram sobre a estadia na erraticidade. A nós o dever de alertá-lo para sua condição e de fornecer-lhe o instrumental necessário para a concretização dos atos que o levarão à consecução dos atos maiores de sua concepção existencial, fruto do muito de amor que for capaz de espargir aos protegidos. Eis que se lhe inicia nova fase no sacerdócio cristão, sob a égide do Senhor.







19

MALES ARRAIGADOS





Reservamos o dia para mais um ditado de espírito em vias de regeneração. Sabemos que se trata de irmão idoso, que caminhou muito até chegar aqui, para oferecer sua contribuição.


Venho por intermédio desses amigos que me serviram de apoio. Tenho noventa e seis anos e jamais estive em condições tão precárias. Não sei bem o que dizer, pois minha cabeça é muito ruim, já que não pude estudar na derradeira existência. Sendo assim, peço permissão para me retirar, pois me sinto muito envergonhado de ser tão velho e de nada poder oferecer de bom ou de grandioso.
Pedem-me que relate as experiências, já que me deram oportunidade de ficar tanto tempo no orbe.
Vocês sabem o que é sofrimento pela velhice? Pois é a pior coisa do mundo. Quando tiverem feito tudo na vida, peçam a Deus para retirá-los do convívio dos irmãos, pois nada de proveito vocês conseguirão só por estarem vivos. Eu mesmo não era útil para ninguém. Ao contrário, precisava da ajuda de todos, tanto que, quando estava há pouco aqui, pensava que o artritismo que me atacara em vida ainda me prendia as articulações e sentia dores verdadeiramente lancinantes.
Agradeço a boa vontade de todos e peço a Deus que os abençoe, já que está na hora de retirar-me.
Pedem-me para ficar.
Está bem, só que não tenho nada para dizer. Os filhos que carreguei no colo com muito amor e que cuidaram de mim com estima, assim que me viram morrer, alegraram-se muito e fizeram verdadeira festa. Quando ouvi falar dos japoneses, diziam que ficavam alegres, que comiam e bebiam, quando alguém falecia. Estranhei muito, mas foi o que fizeram comigo. Parece que se libertaram de grande peso e eu era magrinho e quase não comia. Assim é a vida. Por isso é que dizem que os velhos ficam crianças: é que vão diminuindo, até parecerem bebês de colo.
Querem saber se, no íntimo, o sentimento era de amor ou de ódio. Mas não sei. O que sei é que pareciam estar bem aliviados dos trabalhos. É claro que não queria viver para sempre, principalmente porque era um tormento para eles, mas que se rissem do velho daquele modo, foi muito constrangedor. Durante bastante tempo, tentei fazê-los crer que estava por perto, mas eles andavam muito depressa e eu quase não podia locomover-me.
Minha mulher partiu bem antes de mim, mas não veio recepcionar-me. Acho que arrumou outro, da mesma forma que fiz. Só que não sei como é que se faz para uma feliz convivência deste lado. Na Terra, foi muito fácil para mim, até o dia em que me chamaram de velho frouxo, pois não estava mais conseguindo nada e ainda ficava assanhado, querendo demonstrar que era bom. Isso até os setenta e poucos. Depois me acostumei com a solidão e com a doença.
Mas são histórias bobas. Acho que todo mundo pode contar alguma coisa parecida ou, até, inventar coisa melhor. Eu perdoei a todos os filhos e netos. Perdoei também minha mulher, embora, às vezes, sinta um pouco de saudade.
Os meus pais, perdi muito cedo e não me lembro deles. Acho que a memória vai esvaecendo as figuras que estão na mente, de modo que é burrice querer ficar tão velho. Eu não sabia nada disso e rezava a Deus para me manter vivo. Acho que tinha muito medo de morrer e passar por momentos de aflição, nas garras dos demônios.
É que tenho também bastante sentimento de culpa e não achava justo que minha vida não tivesse tido todas as regalias. Andei fazendo umas coisas erradas, mas não muitas. Era funcionário do governo e fazia como se trabalhasse por conta própria. Como os papéis tinham de passar para o meu visto, se não viessem com o competente azeite para escorregar, deixava em cima da mesa ou nem apanhava na prateleira. Era assim que sustentava minha casa e a outra...
Vejam o que me fizeram dizer. Não queria revelar esse lado da vida. Uma das vantagens de se ser velho é que os mais novos não suspeitam de que um dia também se foi jovem e que se podia fazer todas as coisas, igualzinho. Gostava desse respeito, pois era o que me mantinha em boa convivência, jogando baralho, dominó, conversando e bebericando. Era bom enquanto não chegou o artritismo e o sofrimento. Mas, ainda assim, os remédios me punham de bem com a saúde e até podia dar algumas caminhadas.
Ia dizendo que gostava de ser respeitado. Parece que os cabelos brancos e as rugas fazem as pessoas ficarem bem tranqüilas, pois isso lhes dá a sensação da impotência e da falta de agressividade. Bem que tive amigos que se zangavam com as pessoas até bem velhinhos. Aí eram maltratados de propósito. Eu não. Eu fingia que não via as coisas erradas e agradecia muito o que podiam oferecer-me de ajuda. Além do mais, contava casos bem engraçados dos dias da juventude, para disfarçar que estava sem graça pela necessidade de ser ajudado.
Como vêem, o desejo de permanecer velhinho no plano espiritual tinha sua razão de ser. Agora, estou sentindo o corpo reabilitar-se e adquirir forças novas. Será que o tempo no espaço reflui, pois faz mais de trinta anos que aqui estou? Só hoje é que estou reparando que as feições rejuvenesceram.
Dizem-me que tenho sofrido remorsos que não declarei e que tenho pedido a Deus oportunidade de regeneração.
É bem verdade. Não posso negar que, relativamente, a minha ânsia por voltar à vida tem crescido muito. Há algum tempo, descobri que minhas realizações em vida foram muito improdutivas para o desenvolvimento moral. Não fui boa pessoa e tudo o que fiz de errado ensinei a meus filhos, aos poucos, mostrando-lhes as vantagens de tirar proveito das situações, dizendo a origem de cada objeto ou de cada regalia que não poderia ter conseguido com o salário. Esse drama de consciência se despertou quando estava vivo, pois um dos meus filhos foi acusado de suborno e de tentativa de extorsão, indo parar nas barras dos tribunais. Senti que estava muito magoado comigo, embora não me acusasse diretamente de ter sido mau pai.
Foi a partir daí que começou minha agonia, pois já não era capaz de influenciar ninguém. Depois disso, por mais de quarenta anos, procurei conviver com os netos, sem me vangloriar por ter subtraído tanto dinheiro de ninguém nem de ter aproveitado do cargo em benefício próprio. Mas bem podia perceber que eram mal influenciados pelos pais, que lhes diziam para proceder em benefício próprio.
Quando um dos meus filhos se separou da mulher, com mais de vinte anos de casamento, por ter ela descoberto que estava sendo traída, aí mais me compenetrei de que os meus exemplos tinham dado péssimos frutos.
Como é que eu queria que tivessem ficado tristes e condoídos com a minha morte, se lhes dera tanto de que se arrependerem? Eu mais merecia ter ido para o inferno.
Será que não está na hora de deixar este lugar? Aqui me sinto muito bem, mas estou vendo que tudo o que penso vai ficando escrito e não estou em condições de aceitar este papel de escritor. Minha mentalidade está embotada e meus dizeres só demonstram que quem não age certo na vida não pode esperar recompensa alguma depois da morte; mas isso qualquer pessoa pode pensar pela própria cabeça.
Pedem-me para dizer por onde andei depois que me desliguei do corpo.
Pois fui por aí, principalmente pelas repartições públicas, para ver se encontrava os parentes, para pedir-lhes que deixassem de ser corruptos, que não valia a pena. Na verdade, o que fiz foi o contrário, pois, ao encontrar as pessoas aproveitando-se dos cargos para enriquecerem, até que os estimulava ainda mais, pois achava que o governo era injusto em pagar tão mal e exigir tanto. É engraçado que tenha agido assim, quando tão atormentado fui pelo fato de não ter sabido educar os filhos na moral cristã, embora os levasse religiosamente à missa, principalmente quando minha mulher era viva.
Dizem que os velhos vivem de recordações. É interessante que esse hábito se tenha gravado tão fortemente na cabeça, que ainda agora me surpreendi rememorando fatos antigos.
Dizem-me que é saudade do tempo em que era feliz.
Embasbaquei. Não é que é isso mesmo! Será que essa felicidade pode voltar a instalar-se em meu ser? Será que essas recordações são o motivo que dá sustentação à vida dos velhos? Será que os desencarnados podem aproveitar-se deles para amenizarem os sofrimentos? Ou a transformação de saudade em desespero é que se torna o pavor do remorso?
Até aqui me mantive bastante lúcido e não me arrependi verdadeiramente de nada. Estarei despertando para as coisas erradas da vida? Estarei tomando consciência das falhas de julgamento? Deus meu, inspirai estes amigos, para que me consolem e me indiquem o que devo fazer! Deus...




Comentário



O pobre irmão, finalmente, pôde ser levado a considerações de caráter íntimo, em favor das reflexões morais a respeito da personalidade. Enquanto julgava de modo frio e calculado as próprias ações, conseguiu conviver com o erro. Ao converter as intuições em sentimento de culpa, transformou-se a ponto de não se reconhecer perante a turma. Está em transe, assistido pelos componentes do grupo, cujo objetivo era justamente proceder a seu despertar.
Não se impressione o leitor com este desmaio no plano etéreo. Aqui agimos bem próximos das fórmulas dos encarnados, principalmente se pouco evoluídos espiritualmente. O que importa considerar nas atividades de hoje é a manifestação do velho senhor, a trazer preciosas pistas a respeito do que ocorre na senectude e, principalmente, no que concerne às reações do espírito após o desenlace. É de se esperar que a purgação das doenças possa liberar a entidade dos tropeços, o que seria o inferno em vida. Isso é verdadeiro para quem confrange o coração e aceita a dor com resignação. Mas os que se sentem injustiçados, os que se revoltam, os que mantêm o mesmo padrão vibratório inferior dos tempos anteriores, esses não se adiantam e não conseguem imprimir à mente a tendência de superação da pressão carnal. Sendo assim, a velhice nem sempre significa época de grandiosidade moral e, para esses infelizes, a morte só lhes dá continuidade à infrutífera peregrinação.
Se aos velhos cabe dar lições, e este não foi modelo de virtudes, saibamos extrair de seu relato o exemplo vivo do que não devemos fazer. Infelizmente, aprende o homem, a maior parte das vezes, levando fortes safanões da vida. Esperamos ter contribuído para evitar-lhes mais um.
Fiquemos todos nas mãos de Deus!







20

EMBUSTEIRO





Bem que estava desconfiado de que iriam aprontar uma comigo quando vieram com essa conversa de que aqui estaria melhor que lá. Ainda bem que me sinto mais sossegado, porque, senão, vocês iriam ter de me pagar. Aqui tenho de ficar escrevendo e não gosto nada disso. Sei que nenhum esforço estou despendendo a mais, mas não é agradável ficar sabendo que outras pessoas sejam capazes de conhecer o que se passa em seu interior. Por mais que venha a disfarçar, ainda assim o que vou pensando vai ficando registrado e as pessoas vão ficar sabendo com quem estão tratando.
Gostaria que tudo pudesse vir a ser queimado depois. Vou aceitar prosseguir sob essa condição. Vejo que o escrevente emite vibrações, dizendo que depois terei motivos para concordar com a publicação, quando vier a perceber que haverá utilidade para alguém, apesar de estar mal redigido e de demonstrar baixos sentimentos, desde que contenha alguma lição de vida. Pois desconfio de que nada poderá servir, nem mesmo como fazer para evitar que seja punida a pretensão de esconder.
Vejam como já estou perturbado, apesar de que as palavras estão alinhadas como se tivessem sentido e importância. A escrita não é minha, só a vibração. As frases também não correspondem àquilo que faria, embora, muitas vezes, estejam dispondo-se com mais harmonia e precisão, pelo menos no que tange à gramática. Até a terminologia está vindo mais precisa, clara e elegante. Até que diria alguns palavrões, mas disso estou impedido. Pois é isso aí. Vou...
Neste ponto, fui impedido de continuar na tentativa de refrear os impulsos do escrevente por meio da rebeldia vocabular. Ao contrário, parece até que os dizeres ganharam mais elegância e a frase ficou melhor. Estou vendo que, se quiser elaborar obra de escritor, vai ser possível.
Dizem-me que sim, desde que apresente tema conveniente. Querem que inicie pela minha história particular, pois estão cansando-se de ver tanto papo-furado, propício para enganar os trouxas mas inútil, porque tudo ficará registrado e mais ainda do que querem saber.
Então, vou deixar de esticar tanto o assunto e vou ao que interessa.
Em vida, fui reles barbeiro. Saía de casa cedo e ia para a barbearia ganhar o pão. Era casado e tinha dois filhos. Não era bom de tesoura mas era bom de conversa, por isso o salão estava sempre com bastante clientela. Essa vida levei por mais de trinta e cinco anos, sem queixar-me de nada.
Era prudente e guardava o dinheiro que recebia como gorjeta, de modo que houve tempo que podia até emprestar, a troco de bom juro. Tornei-me agiota e passei a explorar os necessitados. Não permitia que me dessem o cano e nunca perdi empréstimo algum, ficando desde logo com os juros. Houve só um caso de um sujeito que desapareceu, mas fui buscar o que me devia com o fiador, pois nunca dei nada sem garantia. Sei que houve desavença séria entre os cunhados, havendo até cena de sangue. Mas fiquei de fora.
Em casa, tudo correu sempre da maneira melhor possível, pois meus filhos cresceram e deram muita satisfação na escola e na profissão. Até meus netos eram estudiosos e não desmentiram o sangue da família.
Ia dizer que minha mulher respeitou a honra de meu nome, mas estou impedido de mentir. Durante a encarnação, não fiquei sabendo de nada e nós vivemos juntos por mais de quarenta e cinco anos, os dois dizendo-se fiéis um ao outro. Eu dizia a verdade, menos por dois ou três casos antigos, de antes d casamento, que revivia de quando em vez e pelos quais paguei a língua, pois foi a resposta que obtive quando fiz as minhas queixas e acusações. O pior de tudo é que meus filhos bem sabiam o que se passava e não disseram nada para mim. Fui atrás deles depois de morto, mas estavam velhos e embrutecidos para saber o mal que tinham feito, não tendo contado os deslizes da mãe.
Agora, nada mais importa. Não quero mais saber dos casos que aconteceram, mas não acredito mais nas palavras de ninguém. É por isso que não gostei de ter de ficar escrevendo, pois, da mesma forma que não iria acreditar, as outras pessoas poderão desconfiar que é tudo balela o que deixei aqui registrado.
Peço ao escrevente que volte atrás e leia a parte a respeito de queimar as folhas. Não é verdade que não existe nada instrutivo nisto que foi a minha vida, apesar de ter vivido bastante, de ter envelhecido com alegria no seio da família, até com minha mulher, pois ignorava que portava chifres, feia expressão que me traz lágrimas aos olhos e aperto no coração?! Isso lá é edificante e moral?!
Sei que outra seria a história, se ficasse sabendo de tudo. Poderia até perdoar a traição. O que não consigo esquecer é a mentira, a ilusão em que me mantiveram de que tudo houvera sido mar de rosas. O pior é que tive vernizes de espiritismo, tendo imaginado que iria parar no espaço, na companhia da doce companheira...
Qual não foi minha surpresa quando aqui cheguei e não a encontrei. Fiquei desesperado e pus-me a procurar por ela. Não foram poucos os que se riram de mim, pela ingenuidade. Não queria acreditar nos fuxicos, conforme era a minha impressão. Mas, por fim, ouvi dela mesma a longa história de seus amores clandestinos. Meu Deus, se tivesse sido um só! Se ela tivesse tido a coragem de me abandonar, eu até poderia recompor-me. Quando quis dizer que ela não valia nada, recebi como resposta chorrilho de acusações e de impropérios, dizendo que valíamos os mesmos vinte réis cada um. Disse-me que fui mal-agradecido, pois nunca me faltou a comida no prato e a casa arrumada. Disse que até na cama me manteve satisfeito. Mas isso qualquer mulher faria por um marido trabalhador e honesto. Nunca reclamei de nada, tanto que me acreditava o mais ditoso dos mortais. A surpresa só aconteceu depois e aí já não havia mais nada para agradecer.
Os meus casos foram a pedra de toque que me impediram de fazê-la verdadeira escrava. Durante muito tempo, lamentei o fato de ter tido os meus desvios, o que me impedia de jogar todo o fel sobre ela. Um dia, ao procurá-la para mais uma cena, ouvi que se sentia muito mal pelo que fizera, o que a impedia de jogar contra mim todas as injúrias do mundo. Era uma batalha de monstros; dois seres que se abraçaram e se disseram apaixonados uma vida inteira e que só foram descobrir todo o ódio que os amarrava depois do desencarne.
Que situação esquisita!
Após mais de dez anos nessa surda perseguição, um dia ela me propôs irmos elucidar tudo junto a um grupo de amigos, para saber se não se tratava de algo que havia acontecido em outra encarnação. Pois me recusei a acompanhá-la, xinguei-a muito e lhe disse que quem havia saído da vida com o nome manchado era eu. Ela que se virasse sozinha. A partir daí, nunca mais pus os olhos nela e lá vão para mais de cinco anos...
Não havia atinado que faz tanto tempo que estou neste desesperado debater até hoje de manhã, quando tive estranha sensação de inutilidade.
O período da aposentadoria serviu para esquecer-me um pouco da profissão, embora cortasse o cabelo de todos os membros da família. Fazia-o para congregar o pessoal em torno de mim, mantendo os vínculos afetivos estreitados. Desse modo, não cheguei aqui com a mania de querer ficar cortando o cabelo ou fazendo a barba de ninguém, conforme vários que achei pelos salões, aonde ia em busca de novidades.
Aliás, o costume de ficar ouvindo conversa não abandonei quando parei com a profissão, mesmo porque não vendi o salão, mas aluguei. Ia lá para observar o trabalho dos mais novos, que admirava muito, pois tinham habilidades maiores que a minha. Mas o papo não era tão agradável. Ao mesmo tempo, garantia o dinheirinho dos juros e fazia a minha fezinha no jogo do bicho.
Esses foram os hábitos que se arraigaram fortemente em minha estrutura mental e até agora sinto forte empuxo para ficar ao lado dos fregueses dos salões, ouvindo o que dizem. É pena que as minhas histórias ficaram esquecidas. Sempre que encontro alguém que comparece, no plano espiritual, para o trabalho, sinto que não me escuta, e ficamos os dois a falar, jogando fora a conversa. Mas acho que deve ser assim mesmo, porque são sempre as mesmas histórias.
Hoje, pela primeira vez, revelei o meu drama. É tão simples que não me importa mais se for publicado para outras pessoas ficarem sabendo o que se passou comigo. Talvez achem até engraçado que duas pessoas fiquem juntas a vida inteira, sem qualquer ligação afetiva. Eu até que saio da barbearia quando fecha e automaticamente vou de volta para casa. Mas isso faço de propósito, para demonstrar a mim mesmo o quanto de fidelidade havia em meu procedimento. Ultimamente, as caminhadas se enchiam de lágrimas e o coração ficava muito triste, apertado por saber que não havia mais lar, esposa e filhos para me receberem. Nestes derradeiros dias, nem mais me preocupei em procurar o salão. Deixei-me ficar pelas ruas, observando as pessoas. Quantas não havia, como eu, enganadas a respeito dos outros! Eu é que não soubera direito o que se passara ao meu redor.
Agora que tenho esta oportunidade de conhecer a verdade, vou pedir aos amigos que me expliquem muitas dúvidas que me surgiram na mente a respeito do espiritismo, pois via as entidades gritando e sofrendo na hora das sessões, enquanto eu estava aqui tranqüilo, embora não satisfeito com tudo o que me foi reservado pelo destino.
Será que Deus tem alguma coisa a ver com tudo isso? Que razões podem existir capazes de me fazer perdoar minha mulher e esquecer o que fez para mim? Será que não serei eu que estou totalmente errado em não aceitar o que se passou? Vejam que estou tentando lembrar-me das lições que aprendi no centro, onde me diziam que Jesus havia pedido para perdoar setenta vezes sete e que praticasse a caridade, pois todos os pecadores eram irmãos e que o pecado era somente doença espiritual.
Quero agradecer toda a assistência que recebi e pedir desculpas pela chegada tão voluntariosa. Deveria saber que era um ato de amor o que esperava por mim.
Se o escrevente quiser encerrar com chave de ouro, escreva que os leitores devem ler este escrito, lembrando-se de que o que se diz na vida não serve somente para os outros, mas pode significar muito para quem tiver ouvidos de ouvir e olhos de ver. Que esta minha última frase seja de esperança e de consolação, pois quando se virem, um dia, na condição de contarem o que se passou com vocês, saibam que a finalidade é devolver-lhes o sossego moral, que é o bem de que estou desfrutando agora.
Fiquem todos na paz do Senhor!




Comentário



O bom homem que veio trazer seu depoimento não nos disse tudo. Omitiu várias cenas trágicas que se constituiriam em razão mais forte para as suas reações tão desencontradas relativamente ao perdão que se nega a dar a quem o ofendeu. Não estamos quebrando o sigilo da confissão com o intuito de diminuí-lo. Ao contrário, é até bom saber que sua vida teve lances mais agudos e a estadia na erraticidade se viu eivada de tribulações e correrias, para que se possa concluir o quanto avançou na caminhada rumo à salvação.
Irá ter de se internar em instituição para entidades em desarmonia moral, para obter as respostas às perguntas que nos fez. Não nos interessa dar noções intelectualizadas, mas impregnar o ser com a verdade, para que a compreensão se lhe integre definitivamente na alma.
Eis que rogamos encarecidamente pelas preces dos irmãos, a pedido da esposa, que, ferida de morte, procura reintegrar a família em torno de seu patriarca. Para que a oração possa obter o resultado do amor, será preciso relevar a história no que tem de fantasiosa, mecanismo de defesa de quem não quer admitir as próprias falhas. Vejamos no amigo aquele irmão em Deus que se encontra doente em virtude de seus pecados.
Oremos.

No que respeita aos fatos narrados, é a história, sem tirar nem pôr, de outra personagem citada, que ocultaremos, pois ainda não se deu o desfecho, no plano terreno. Foi o recurso do irmão: contar algo que se passou com outro, como se tivesse acontecido consigo mesmo, mas só o relativo à estrutura familiar. O mais está psiquicamente correto.
Não precisávamos chegar a este extremo de revelar a malícia do amigo, mas temos severo compromisso com a verdade, de modo que não podemos deixar-nos embair por lorotas, ao passo que temos de elucidar os leitores, para que saibam dar sua contribuição, sem envolvimentos de caráter emocional negativo.
Fiquemos todos, com nossas reflexões e cuidados, nas mãos do Senhor!







21

LUZ INTERIOR





São poucas as pessoas que têm a possibilidade de dizer que são impulsionadas na vida por suave luz interior. Sem menosprezo por nenhum ser que conhecemos, devemos dizer que não há ninguém em nossas relações que tenha tal apanágio.
Vamos dizer mais: não há ser encarnado no mundo que tenha recebido missão de caráter superior nessas condições. Eu, por mim, não tenho e isso, talvez, se constitua na chave para abrir esse misterioso cofre: é que a pouca visão do comentador não lhe permite enxergar as bem-aventuranças alheias. Eis a trave a embargar a vista, como nos ensina Jesus em seu evangelho.
Poderá o amigo leitor dar-me a conhecer alguém que tenha força muito grande, capaz de desmentir-me? Que atributos são necessários para perfazer a glória de possuir esse bem? O principal deles, evidentemente, é o amor a Deus, cumprindo-se o mandamento principal da lei, conforme explanação cristã. O segundo é o afeto dedicado à humanidade, como expressão maior da possibilidade de expansão, mais do que sentimental, altruística, em perfeita sintonia com o anseio da vida, que nos põe lado a lado para que construamos o mundo.
Há outros indícios claros: a boa vontade, a paciência, a comiseração, a fraternidade, a virtude atenta para o bem, o belo e o justo, o apego ao trabalho produtivo e honesto, o respeito à causa comum, em apoio às iniciativas esclarecedoras, para que os vícios sejam debelados, a formosura de caráter, a singeleza de atitudes, a modéstia, o recolhimento espiritual, a humildade e a dedicação do próprio tempo ao crescimento dos atributos. Esses são, dentre outros, os combustíveis que permitem à vela do bem maior manter-se acesa no íntimo de cada um.
Pedem-me para ser mais claro relativamente às minhas intenções de sermonário. Se me interpretarem como religioso a pôr em dúvida a seriedade das atitudes de seu rebanho, vão enganar-se, porque não sou qual pastor disfarçado de ovelha, à espreita de surpreendê-las no desvio de conduta. Tenho para mim que os objetivos superiores da vida devam ser rigorosamente respeitados no relacionamento entre as pessoas.
Fui criatura cordata e absolutamente tranqüila durante a última passagem pela carne. Conforme declarei, não possuo aquela luz que tentei caracterizar a pedido dos amigos socorristas. Fui padre, sim, e obtive para a religião muitas vitórias morais, sem que, entretanto, tivesse tido, ao regressar, a ventura de ser recebido por nenhuma legião de anjos, anunciando-me a abertura dos portais do céu, por meio dos claros e festivos toques dos clarins. Mas sempre hei de purgar alguns deslizes, pois não há quem seja perfeito.
No inferno, não me vi arremessado e isso me satisfaz plenamente. Por enquanto, a convivência pacífica com os amigos me tem oferecido motivos para manter viva a esperança em que esteja bem próximo o dia da redenção.
Salvem o Cristo—Jesus, o Espírito Santo, o Senhor de Israel e Maria, Virgem Santíssima! Não me canso de orar em favor dos pobres e dos desvalidos, no santo desejo de ver todos adquirindo méritos para elevá-los diante dos olhos do Pai. Serão ouvidas as minhas preces? Com certeza, pois Deus não deixa, como bom pastor, ovelha alguma desgarrar-se.
Um dia, um gaiato perguntou-me, como gosto muito de falar metaforicamente, o que faz um pastor com as ovelhas. E lhe disse que conduzia o rebanho ao Senhor. Aí me perguntou o que fará o Senhor com o rebanho. E lhe disse que o protegerá do mal. Mas o indivíduo não entendeu a figura e insistiu em dizer que o Senhor deseja as ovelhas para tosquiá-las, para utilizar-se da lã para se vestir, para ordenhá-las e de seu leite alimentar-se e para matá-las, para oferecer ao seu povo a carne e o sangue. Disse-lhe que era ridículo estender a figura, tão harmoniosa e tão dentro dos preceitos evangélicos, de modo tão demoníaco. Tentei expulsar aquele ser asqueroso para as trevas, mas insistiu em ridicularizar-me a imagem, dizendo algumas pornografias que o pastor fazia com as ovelhas, etc.
Não é que essa idéia se me fixou na mente?! Não tinha o menor trabalho em vida de encontrar meios para rejeitar as tentações. Era-me extremamente fácil, pois, forte como os touros, puxava o cabo da enxada como qualquer trabalhador da roça e fazia-o no intuito de exaurir-me, não dando oportunidade de os problemas psíquicos se constituírem em estorvo para o meu desempenho eclesiástico. Quando falei em cabo da enxada, entendam-me, por favor: é que se trata de linguagem figurada. Quis dizer que me dedicava extenuadamente aos serviços da paróquia, não me dando tempo de perquirir dos descaminhos que a maldade intentava abrir em meus pensamentos e em meus sentimentos.
Estão a argumentar comigo que fugia da evidência de que algo havia dentro de mim a exigir solução. E pensam que me estão a dizer novidades? Bem sei que os homens têm um demônio a lhe assoprar maldades. Mas também é dotado de um anjo bom, que se chama consciência, que lhe dá pleno domínio da vontade. Além do mais, quando algo não ia ou não vai bem para a pessoa, restam os recursos da oração e da meditação a respeito da vida dos santos, para demonstrar que é possível superar-se o mal, onde quer deseje instalar-se. Se isso for fugir ao problema, então deverei dizer que se enganam, pois jamais irei dar ouvidos aos péssimos conselhos, uma vez que sei muito bem quais são os atributos que conduzem o homem à santidade e deles não me afastarei um milímetro, enquanto não me vir na condição de possuir aquela luz interior.
Se acham que estou perturbando-me com as questões, podem insistir o quanto queiram, pois a paciência citei como uma das primeiras virtudes que devem estar presentes no caráter dos indivíduos. E paciência não me falta. Se quis expulsar o demônio que me tentava, é que não era perfeito como Jesus, que sofreu as tentações do deserto, até que obrigou o demo a se afastar. Eu também ouvi a voz do maligno, só que não fui capaz de rechaçá-lo. Esse é o sinal da diferença entre o ser superior, o deus feito homem, e este mísero e infeliz que luta por tornar-se santo.
Querem saber se me martirizei para conseguir as regalias dos anjos. Fiz tudo que estava ao meu alcance e ajudei muitos pobres. É verdade que minha cama era macia e minha mesa, farta. Mas isso é o mínimo que toda pessoa deve ter. Repartia tudo com os padres da congregação e jamais pude dizer que tal ou qual objeto fosse meu, tal a minha consciência de que tudo pertence ao Pai. Não será por aí, meus filhos, que vocês irão fazer-me cair em suas armadilhas.
Não existem armadilhas de amor. Vocês querem mais é ver-me em combate íntimo, por ter dito que não possuía luz alguma e que desacreditava que houvesse alguém encarnado com essa condição. As suas tentativas de me enredarem em sua bondade...
Dizem-me que a armadilha de amor foi aquela que eu mesmo preparo para mim. Teria caído em esparrela santa? Não terei agido sempre pelo amor de Deus e dos homens? De que me adiantou orar tantas vezes para que o Pai afastasse de mim o cálice das tentações e das dores, se não sou capaz de reconhecer que está muito longe o momento de adentrar o paraíso? Será que todo o meu aparato intelectual e sentimental de nada valerá para demonstrar os méritos de minha peregrinação?...
Verdadeiramente, aplicando o sinal da modéstia a tudo quanto venho escrevendo, sou obrigado a considerar o orgulho do dever cumprido como uma das falhas de meu caráter. Mas não poderá o grande Francisco de Assis julgar-se, ele mesmo, merecedor de seu lugar no céu, ao lado direito do Senhor? Se assim pensar, será sinal de pecado, de orgulho, de egoísmo? Não será permitido ao ser superior reconhecer os próprios méritos?
Que méritos são os meus? Os do orgulho certamente não são, pois não iria vangloriar-me por ter servido ao Senhor. Sei que muito precisarei fazer pelos homens, para poder ascender aos páramos celestiais.
Começar desde já? Pois eis aí algo que me entristece, pois, como encarnado, era fácil distribuir amor, na forma de esmolas e de caridade. Não havia lar nas redondezas do convento que se visse no sofrimento da fome ou do frio. Em verdade, os que adoeciam mereceram sempre a nossa atenção, pois conduzíamos o viático até as choupanas mais humildes e jamais deixamos alguém sem a extrema-unção. Era a nossa possibilidade e o nosso afeto por todos se distribuía.
Se, às vezes, alguém batesse à porta e não atendíamos é porque nada havia na despensa. Nesse caso, repartíamos a fome. Querem saber se se trata de figura de linguagem ou se estou empregando os termos em sentido próprio. Pois lhes disse que nunca nos faltou do que nos alimentar, então, estou dizendo em tese, como hipótese a ser desenvolvida para a compreensão de nossa intenção. Em casos concretos, a congregação assumia a responsabilidade do atendimento, ou do encaminhamento, ou do resguardo das entidades enclausuradas, para honra e glória do Senhor. Por isso é que as pessoas do sexo feminino eram simplesmente aconselhadas a procurarem as freiras que existiam ali perto.
Dizem-me que faltou, na minha relação do santo, a pureza da manifestação; que era melhor ter calado a relação dos atributos, pois podia parecer que era só para me convencer da necessidade de cada qualidade, uma vez que não as encontrava em mim e, por isso, buscava em outras pessoas.
Tentei aceitar, honestamente, a sua posição, mas não vou, desde logo, derrogar o meu direito ao livre raciocínio. À medida que o tempo passar, prometo que tentarei estabelecer os nexos para a compreensão dos dizeres, pois acredito estar diante de pessoas decentes, já que o meu exorcismo íntimo não as afastou da decisão de ajudar-me. Parece-me santa sua intenção e, no entanto, ainda acho que não estão certas em me considerarem tão necessitado de auxílio.
Relendo o que deixei escrito, posso perceber que as idéias foram bem expressas e que pude dizer tudo o que sentia. Mas tenho muito mais para revelar e, por isso, solicito permissão para voltar outras vezes, não precisando que as palavras sejam escritas. Percebi que a mediunidade me foi colocada como óbice ao meu raciocínio católico de que os mortos não podem contatar o plano dos vivos. Essa lição, levo claramente expressa. Não há como negar que tudo o que se registrou se deveu às minhas vibrações, embora alguém, na Terra, pudesse dizer que foi invenção do escrevente. Fique-lhes a sua certeza, pois não serei eu quem irá convencê-los para o espiritismo.
O que quero é aproveitar a oportunidade de trabalho. Pareceu-me ter ficado claro que o cansaço produzido pela minha dedicação às tarefas era o meio de me levar à alienação das forças energéticas que não conseguia controlar. Era só produto da fantasia para forçar-me a aceitar algo que a consciência me revelava imperfeito. Pois bem que desejei aceitar a oferta de trabalhar, para ver se voltava a privar-me da necessidade desse constante exame do que me vai na alma. Mas promessa é promessa. Podem levar-me com vocês que demonstrarei que tenho força de vontade e que sou capaz de cumprir os votos de obediência e de silêncio, se me forem exigidos.
Deus abençoe a todos vocês, caríssimos irmãos, e ao amigo escrevente, cujo coração se viu apertadinho por tê-lo feito trabalhar com tanta pressão, para que as impressões morais fossem realmente aquelas que se punham nas palavras! Sinto muito por não ter tido força suficiente para produzir algo melhor, que pudesse satisfazer-lhe os desejos de bom escrevente. De qualquer modo, entretanto, sinta-se feliz por estar amparado por tais protetores. Se eu tivesse mais desenvolvimento, talvez pudesse enxergar neles a luz interior cuja existência desacreditei nos humanos. Quem sabe seja esta a primeira merecida lição que aprendi.
Deus os abençoe!




Comentário



Típica manifestação que enseja muitos comentários, vamos simplesmente dizer que o resultado foi satisfatório. A entidade buscava, no recolhimento íntimo, no disfarce de suas forças intelectuais, a modéstia, diante da criação e da Divindade.
Durante a última encarnação, foi coagido a aceitar princípios que forcejou por introjetar. Esse foi mérito profundo de quem tem por retrospecto tendências à rapinagem e à guerrilha. Se todos os encarnados pudessem progredir tanto em cada encarnação, para breve teríamos a Terra como planeta de restabelecimento e de felicidade.
Não se perca o leitor, pois, imaginando o duro cenho de quem se apresenta como representante de Deus a fustigar os pecados. Antes, estime o irmão como a um igual, filho de Deus, criatura bem amada, que, mais rápido do que se possa imaginar, irá descobrir que carrega dentro de si, também ele, centelha de amor.







22

UM CASO DE AMOR





Não primei na vida pela plenitude do bem, mas fui protagonista de um caso de amor, única prenda de que me orgulho.
Saí de casa cedo e bati a cabeça no mundo, para poder arranjar-me. Como não era dotado de muitos dons, apenas sofrivelmente consegui sobreviver, por meio do que arrecadava em pequenos empregos de serviçal. A sorte não me sorriu com casamento de dinheiro e eu me dizia:
— Jorge, meu filho, vê se te cuida...
E aí estendia a vontade para mais além e tudo ficava numa boa. Mas a vida tem seus altos e baixos e houve um tempo em que fiquei bastante doente. Por cuidados do meu patrão, fui internado num desses hospitais do governo, onde os doentes são amontoados, sem carinho e sem afeto.
Foi aí que conheci encantadora mocinha, enfermeira ou atendente, não fiquei sabendo direito na época, porque estava realmente passando muito mal. Não era, contudo, a moléstia que iria levar-me ao túmulo, mas me deixou transtornado.
Era ela quem vinha atender-me, dando-me a medicação no horário certo.
Eu, que nunca tivera nada assim na vida, fiquei maravilhado com a jovem e, febril, fazia planos miraculosos para o futuro. Não cheguei a me recuperar totalmente, quando deixou de me acompanhar. Foi um acréscimo de sofrimento que não sabia como aturar. A que a substituiu era feia e velha e não tinha a mesma delicadeza para tratar de mim. Mas sempre consegui vencer a doença e, um belo dia, eis-me fora do hospital.
Quis saber do paradeiro da mocinha, mas pouca informação obtive. Só fiquei mesmo sabendo o seu nome, que guardo no íntimo do coração (Marcela). Houve outra notícia que me deixou amargurado: era casada e tinha deixado o emprego.
Fiquei com aquela impressão de amor o restante da vida e, ainda agora, tremo de emoção ao relembrar aqueles momentos em que via aquelas feições por entre as brumas do sofrimento, terno anjo a tutelar-me a cura.
Pedem-me para referir-me a outros fatos. É verdade que morri cedo, antes de poder constituir família. Querem saber por que morri cedo ou por que não constituí família? Ambas as coisas. E se me negar a dizer? Estou à vontade para isso.
O escrevente está aguardando uma decisão. Pois vou dizer exatamente o que aconteceu comigo. Não sei se terei forças para a narrativa. Pois foi o caso que encontrei Marcela; nem foi muito difícil, pois fiquei sabendo que deveria comparecer para receber o restante do salário e fiquei rondando o local. No dia marcado, lá estava eu, pronto para assaltá-la com minha paixão.
Como gostaria de dizer que fugimos e que vivemos felizes para sempre! Pois foi o contrário. Fui repelido pela jovem, que não quis saber de mim. Ficou até muito admirada com minha insistência, porque, dizia ela, foram só duas ou três vezes que me havia dado o remédio, estando eu praticamente inconsciente.
Não houve jeito. Não se deixou envolver sentimentalmente e me afastei para nunca mais me encontrar com ela. Não fiquem imaginando que tenha feito algo disparatado, como persegui-la e, finalmente, matá-la. Isso quem ama não faz. Mas fiquei aborrecido e jamais me recuperei por ter levado aquele não na cara.
Hoje, curto a mágoa de me ter desgraçado por amor, pois, depois daquilo, dei de beber e larguei o emprego. Foi aí que me envolvi com drogas e com os crimes, porque não podia pagar o vício e precisava ter dinheiro para isso. Morri cedo, vítima de superdose de cocaína e fui enterrado como indigente.
O que me atemoriza nesta história é que não termina no túmulo. Se fosse vivo, escreveria de modo bem comovente. Faria um drama bonito e colocava uma cruz na sepultura modesta, pela mão carinhosa de algum amigo, e fim. Agora, do jeito que me encontro, não consigo terminar de forma a encerrar o mistério, sem revelar algo que estou tentando esconder. Disseram-me que não preciso dizer nada, mas acredito que, se deixar para trás algo tão importante, vá ter de voltar a este ponto crucial da existência, ainda com o peso de ter desejado passar por bonzinho.
Quando disse vida de crimes, realmente foi. Matei e roubei. E fumei maconha. E estuprei — justamente aquela que muito amava.
Penso que agora vão mandar-me embora, pois não correspondi à expectativa dos que me trouxeram aqui, na esperança de estarem tratando com alguém de certa importância, pois lhes dei a impressão de que era um pobre coitado arrependido por ter amado muito e de me ter suicidado moralmente, por não ter sido correspondido.
Dizem-me que sabiam desde o início quem era e o que fizera, pois estão na companhia de meus pais.
Santo Deus! Será que terei de aumentar a vergonha?... Não desejo ver o sofrimento dos velhinhos, que deixei para trás, longe, na cidadezinha de onde parti muito cedo. Sabem que nunca mais escrevi para casa para saber notícias deles?! No começo, até que recebia uns trocados, mas depois esse dinheiro não significava mais nada, diante do preço que pagava para me manter drogado.
Nunca fui preso e nunca precisei de advogados, mas o infortúnio me perseguiu, pois os malandros que estavam comigo não me ensinaram a livrar-me das drogas. Até desconfiei de que tinham colocado veneno, para ficarem com a minha parte do último assalto. Foi aí que me perdi nas trevas, na busca de persegui-los, o que fiz durante muito tempo.
Na verdade, não sei quanto tempo faz que deixei a Terra. Procurei a família que havia desgraçado, mas fui impedido sequer de chegar perto. Acho que desconfiaram os guardiães de quem eu era, pois me escorraçaram. Houve luta, mas saí perdendo, recebendo increpações de miserável, de ladrão e de assassino.
Mas estas coisas não vêm ao caso, pois, se meus pais estão aqui, já sabem o que fiz na vida. Terei agora de lhes pedir perdão e de lhes agradecer o fato de me terem providenciado ajuda, pois, se estou aqui, será por sua causa. Mas acho que os pais têm obrigação para com os filhos e, se abandonei minha casa, foi porque não conseguia viver naquela miséria.
Obrigam-me a dizer que estou exagerando, pois meu pai era professor primário e até recebia melhor salário que muita gente. Mas, com oito filhos?... O que sobrava para nós era muito pouco. Ele até queria que eu trabalhasse, mas eu era exigente e não respeitava os patrões que punham os filhos na escola. Enquanto meu pai cuidava das crianças, eles me maltratavam, mandando fazer isto e aquilo.
Sei que o pensamento era daquela época, quando a minha capacidade de reflexão era bem pequena. Mas a verdade é que meus pais não me deram nada especial, a não ser o fato de me porem no mundo. Isso não estava contratado?
Que o amor tem de ver com isso? Foi por me quererem bem que me deram a oportunidade? Mas que sentimentos tinha eu anteriormente? Que me lembre, gostava muito deles, que tinham boa dedicação para com todos os filhos, pois o pouco que possuíam distribuíam para todos. Eu talvez tenha chegado em má hora, pois era o caçula. Será que os mais velhos sofreram mais ainda? Pois todos os meus irmãos ficaram na cidadezinha. Eu é que não suportei a situação.
Não tenho mais nada para dizer, a não ser que invente. O que sinto é muita vontade de ir embora, mesmo que tenha de voltar para a escuridão de onde vim, porque não sei se poderei encarar os velhos, que devem ter sofrido muito ao saberem quem realmente fui.
Agora, no entanto, é tarde para lamentar. Se não consigo arrepender-me, é sinal de que não mereço ficar com vocês.
Desejo arrepender-me, mas não tenho essa força. Parece que nem sou eu mesmo que estou relatando esses casos, ou melhor, que os casos não correspondem à minha própria vida. Estou sentindo forte dor de cabeça e tudo começa a girar, como se estivesse prestes a desmaiar. Não consigo raciocinar direito e temo que não vá muito além.
Ah! Se pudesse internar-me de novo, e refazer tudo do ponto em que me encontrei com ela... Sei que não iria mais cometer todos os erros, mesmo que tivesse de retornar frustrado para o lado de minha mãezinha.
Está ela aqui para receber-me. Por favor, não façam isso comigo...




Comentário



Nosso assistido acaba de cair nos braços dos pais.
Não sabia definir o tempo que esteve na erraticidade, mas foram mais de trinta anos. Com esta informação, cremos que satisfizemos a curiosidade do leitor desejoso de conhecer o quanto de tempo é necessário deixar passar até receber socorro. Pois isto é muito relativo. O amigo até que ficou perambulando em sofrimento por muito pouco tempo. A intensidade do desespero, contudo, não era grande, de forma que pode considerar-se apaniguado por ter recebido o conforto da presença dos familiares, agora que irá ter de enfrentar a parte mais aguda dos dissabores da consciência culpada. Longe está o dia em que poderá dizer-se equilibrado e são. Há muitos débitos para serem saldados.
Sendo assim, pensamos ter desarmado possíveis cálculos, em função das perversidades que necessitem ser resgatadas. O que devemos acrescentar é que, para o devedor, o momento do pagamento é justamente aquele em que descobre a necessidade do reatamento afetivo com os seres que magoou. Enquanto perdurar a sensação de que haverá maneira de se subtrair ao castigo, não se deu a exata compenetração do que é a divina justiça. Esperamos que não seja esse o caso do caro leitor.
Oremos pelo pobre irmão desarvorado, que chora nos braços carinhosos dos pais; este, sim, verdadeiro caso de amor.







23

CONFISSÃO ESPONTÂNEA





Nem bem eram passados alguns dias do meu trespasse e já me encontrava desperto, pronto para pespegar uns puxões de orelha naqueles malvados que me enviaram para cá. Não sei como dizer isso, mas me sentia bem leve e achava que era hora do acerto de contas. Contudo, não consegui acercar-me dos facínoras, pessoas desqualificadas socialmente, que não tinham pudor algum em aliviar o bolso dos transeuntes e em encaminhá-los de volta à pátria espiritual.
Pois bem, eu fazia parte do grupo, mas jamais matei ninguém, nem permitia que fosse maltratado. Só o que eu queria era o dinheiro, porque era com ele que comprava as coisas de que necessitava para ficar numa boa. Os seres que estão comigo estranham muito que seja capaz de acusar os outros e que me diga inocente dos crimes de sangue. Na verdade, contribuí para que alguns passassem para o lado de cá, tanto que, quando aqui cheguei, fui assediado por eles, que me chamavam de assassino e de louco.
A verdade, porém, é que não me sentia assim; é que tudo o que fazia era depois de alguns tragos e de algumas doses de coca. Aí ficava bem corajoso e não tinha medo de mais nada. No meio de uma sortida, demos de cara com uma força policial, mas pusemos todos para correr, pois não se atreveram sequer a responder ao nosso fogo. Uns covardões. Mais tarde, vim a saber que pegaram um dos nossos e executaram. Eram tão bandidos quanto nós.
Pedem-me para não ficar inventando histórias e querem saber por que demorei tanto para me apresentar ao grupo, já que faz muito tempo que perambulo sozinho, sem ter ninguém mais a me perseguir. Não sabia que era muito tempo. Na verdade, o pessoal da Terra andou escasseando ultimamente e eu já não achava mais graça nenhuma nas perturbações que promovia. Penso que, se perguntarem para os da turma, saberão responder melhor do que eu às questões.
O que estou estranhando muito é o sentido que têm as minhas frases. Isso é que é vida boa: ficar só ali, naquela de escrever os pensamentos dos outros. Quero é ver quando se tratar de vir aqui deste lado, o que vai ter para contar.
Não acho nada a respeito de ninguém. Quando era vivo, não sabia sequer distinguir as pessoas boas das más; para mim ninguém prestava. Aonde ia, via as pessoas fazendo de tudo para prevalecerem, para ganharem mais, para ficarem com a melhor parte. Não preciso citar ditado nenhum, pois existe um para cada tipo de raciocínio. Há aquele que tudo perde, mas há o que não é tolo.
O que queria dizer é que, do lado de cá, as coisas mudaram muito, pois ia a todos os lugares e via gente que roubava e matava, mas via outros que não faziam nada disso. Era fácil de influenciar no espírito dos primeiros. Quanto aos últimos, alguns me ofereciam meios de contacto e os punha de sobreaviso com relação às coisas ruins. Aí é que não queriam nada comigo. Quando rezavam, pedindo ajuda, eu era escorraçado bem depressa. Era assim que via porque não acreditava em que fosse ser auxiliado a entender o porquê de haver pessoas com tanta defesa e outras tão desprotegidas.
Mas chegou o tempo da compreensão e pude ver que nem todo mundo sabia exatamente o que fazia, embora agissem honestamente. Era curioso adverti-los das intenções de ganhar o céu. Eles se fechavam em orações e ficavam dias e dias recolhidos numa espécie de capelinha particular, fechando os ouvidos e os olhos para as algazarras que fazíamos, meus colegas e eu.
O mais interessante eram as brigas que desfechávamos uns contra os outros, pois cada um tinha uma idéia diferente do que fazer e não queria ficar por baixo. Eu mesmo achava divertidas essas desavenças, até que enjoei. Não sofri com a separação desses grupos de baderneiros. O que me fez pensar um pouquinho na existência foi que, sem eles, não tinha mais ninguém e viajava sozinho pelo espaço.
Esse sentimento de solidão é que me trouxe o despertar de que não era do grupo dos bonzinhos, pois tudo o que fazia me levava a ter sempre alguém em quem tinha de desforrar a minha inferioridade. Tinha inveja de tudo. Cada pessoa bem colocada na vida me fazia rilhar os dentes de ódio. Era assim que agia em vida e até pouco tempo atrás.
O que me fez deixar que se aproximassem de mim foi a idéia de que está na hora de deixar de ser tão atrasado, já que me disseram que todos somos irmãos por parte de Deus. Não é sem tremor que digo esse nome, pois tenho muito medo dele pelo que fiz. Agora vejo que os castigos foram muito tênues perto da extensão de minha maldade.
Acho que estão certos os amigos que me dizem que os sofrimentos ainda nem começaram e que não conheço sequer a extensão dos males que pratiquei. Fazem referência à interrupção de vários projetos importantes de grupos espirituais de valor que prejudiquei, com minha ignorância, insensatez e insensibilidade. Estas palavras não conhecia e puseram na minha boca. Ao tentarem explicá-las, supliquei que parassem, para não interromper esta manifestação, em que me sinto tão bem.
O médium me diz que está percebendo certa sensação de medo, certo susto e mal-estar em minha pessoa. Pois se trata de minha indecisão em acatar as recomendações dos amigos com quem deverei seguir. Que acha você: vale a pena o futuro em troca de promessas de muita dor e sofrimento? Não há alternativa: ou é agora ou será mais tarde? Deverei tomar logo a decisão. Se deixar para depois, haverá maior quantidade de resgates a serem feitos? Não há dúvida possível: terei de aceitar o quanto antes. Mas não são esses sofrimentos controláveis, ajeitáveis, menores, segundo algum projeto sem dor que se possa estabelecer com os que estão mais acima? Dependerá só de meu entendimento das leis da justiça e do amor?
Eu que me esfregue! Vou aceitar para ver no que dá. Se não for possível, acho que terei o direito de escapulir.
Dizem que não entendi direito o que vai ocorrer e que, quando estiver melhor preparado, poderei tomar a melhor deliberação. Pois seja; vou acompanhar os irmãos, prometendo, conforme me pedem, respeitar os ambientes senão perderei a oportunidade. Tudo bem. Em matéria de palavra dada, apesar de no sentido negativo, sempre cumpri a minha. Espero que não seja esse mais um defeito que tenha de eliminar.
Fiquem todos à vontade para continuar com suas tarefas. Adeus, irmãozinho — desculpe-me e aceite meu desejo de que sua prova de fogo não seja tão pesada quanto tem sido a minha. Fique em paz!




Comentário



Tinha um mérito o irmão que deixou seu relato: disse desabridamente o que fez de errado. Nem tudo registrou, porque a lista dos atos criminosos foi muito extensa, mas a verdade é que nada escondeu, a partir do momento em que percebeu não ser vantajoso para o auxílio que lhe prestávamos.
Que dizer a respeito do infeliz? Quase nada, a não ser que esteve longo período na erraticidade e que seus crimes eram, do seu ponto de vista, bem menos cruéis do que aqueles que via o povo perpetrar nestas derradeiras estrepolias. A nós nos disse que a maldade que observou no coração o punha até com medo de volver a peregrinar sobre a face da Terra. Disse que, se tiver de cometer crimes tão absurdos, prefere transformar-se em vítima. É o exemplo que nos restou de tudo o que pudemos observar no meio da negritude de seu caráter. Que nossos leitores tenham sobre que aplicar suas reflexões!
Fiquem na paz de Deus!







24

EIS-ME AQUI





Pobre ser inferior, pretendo também ter o privilégio de vir trazer a minha palavra. Bem que quis falar aos meus antigos companheiros na Terra, mas fui impedido, quer por quem reage tão mal quando me aproximo, quer por estes amigos de agora, que me dizem para não fazer qualquer referência específica às pessoas ainda internadas na carne.
Pois bem, se me disserem para que serve esta comunicação, ficarei feliz.
Primeiro, para conhecer a extensão de meus crimes. Vocês, é claro, pois sei muito bem o que fiz e o que desejei fazer mas não fiz. É claro que tudo o que disser pode oferecer a dificuldade da inverdade. Dizem que não, pois estão capacitados a surpreender as mentiras. Então significa que a confissão terá efeito como quando as pessoas vão à igreja. Quer dizer que nisto os padres estão certos? Só se souberem dar segura orientação aos fiéis. É verdade.
Em segundo lugar, irá oferecer oportunidade de promover uma espécie de exemplificação aos mortais que lerem o caso. É digno de nota. Sendo assim, pretendo esmerar-me nos conceitos e expor com elegância, em linguagem fluente e moderna. Dizem-me para não me preocupar, pois o que se pretende é o máximo de autenticidade. De qualquer forma, em respeito aos leitores, posso caprichar.
Por último, o trabalho doutrinal valerá como recurso para a aprendizagem dos irmãos socorristas que se encontram em estágio na Escolinha de Evangelização, à qual pertence o grupo. Pois eis aí finalidade mui plausível, pois as pessoas não podem exercer qualquer atividade sem que estejam preparadas. Se existe instituição para isso, é altamente digno dos melhores encômios.
Peço ao irmão escrevente que releve o distúrbio de dar preferência a este ou àquele vocábulo, mesmo que seja necessário riscar o que se viu repudiado. Desejo ainda, se me for possível, estar presente no momento em que se irão escoimar os principais defeitos, para exercer o papel de autor, de segunda mão, embora, mas cônscio da importância de minha participação.
Vejo com interesse que, por meio de minha voz, foi possível aos mentores demonstrar aos amigos encarnados os diferentes objetivos desta sessão de amparo a espíritos carentes. Estão de parabéns, apesar de merecerem ralhos por se utilizarem de método indireto, malicioso, posto inteligente.
Querem que me limite a relatar os fatos principais de minha vida, os de que me arrependi e que se constituíram em objeto de culpa consciencial, a ponto de me impelirem a apresentar-me diante dos amigos, para aconselharem-me. Pois o tacho ferveu lá no fundo, quando admiti ter errado na conceituação da vida que levava. Enquanto os assassinatos simplesmente representavam atos de sangue em vingança de toda espécie, ainda arranjava os acontecimentos de forma a fazerem-nos evoluir por si, a tornarem-me joguete do destino. No entanto, quando percebi que fora a mola propulsora dos eventos e que tudo residia na minha iniciativa livre de realizar a vontade que sentia, por força dos impulsos íntimos, aí verifiquei que, se não me reconduzisse à presença daqueles a quem ofendera, para requisitar deles o perdão, não teria mais sossego.
Mas tal ocorreu há muito tempo, tendo ficado curtindo as dores das acusações que me vinham de todos os lados, personificação evidente de meus fantasmas morais. Era o inferno e, por isso, comecei a caracterizar os seres que perpassavam por mim como demônios ou possessos, segundo desejavam perseguir-me ou fugiam de mim, espavoridos.
O dileto confrade da escrita vem surpreendendo-se com a facilidade com que escolho as palavras que melhor expressem o conteúdo silogístico de minha exposição. Claro está que, dentre o repertório lexical que me é apresentado, fica fácil para quem teve muito trato com as leituras optar pelos termos, segundo o reflexo psicossocial em que se irá inserir. Mas não se espante o amigo. Quando chegar a sua vez, em sendo bom e honesto o mediador, verá que não há grande emoção nem sabedoria, dada a precariedade do momento. Isto necessariamente significa que, se o texto estivesse adrede montado, possivelmente iríamos poder conduzir-nos com mais harmonia e equilíbrio, o que não é possível assim abruptamente, empolgado ainda pela novidade do exercício.
Prosseguindo sem delongas, para não dar a sensação de que tudo não passa de farsa para iludir os companheiros do auxílio, devo acrescentar que obtive da vida, no derradeiro encarne, tudo o que desejei. Se fiz menção a certos crimes é porque não fui feliz no matrimônio e essa foi a desgraça que me conduziu ao patíbulo dos infelizes criminosos.
Na última hora, a pena que recebi foi comutada para simples prisão e pude ficar penando atrás das grades, no fundo de fétida masmorra, a desonra moral. Mas fugi de lá, com o auxílio dos companheiros de cela. É aventura que daria para preencher diversas páginas e que, realmente, se constituiu em motivo de orgulho para mim, pois safara-me às garras da rapaziada da polícia. No entanto, o emprego da força resultou em diversas mortes, das quais participei ativamente, vindo a ser outro sangue derramado em desfavor de minha compostura lá no ermo da prisão espiritual, verdadeiro e terrífico inferno.
Confundido entre os marginais, fiquei à deriva no mundo por algum tempo, até que me despacharam, sem protocolo, para as terras do além. Sem visto de entrada, desde logo fui perseguido por quanto mequetrefe se apercebia de meu noviciado. Foi época de tristes recordações, pois me vi humilhado ao extremo. Mas com os dotes de inteligência de que estava munido, logo reverti o processo e me tornei tremenda besta-fera a rechaçar quanto incauto se enganasse com o intuito de me perturbar. Aí não perdoava. E esse é o terceiro evento de que me arrependi, estando esquecido, na profundidade mais escura do Umbral.
Não perdoei e me atrevo a pedir perdão. Sei que não alcançarei tal privilégio de graça e, por isso, propus-me a acompanhar quem tão gentilmente se ofereceu para o início do resgate de minhas culpas. Aceitei, temeroso de que deveria passar por crivos dificultosos, mas, de imediato, tranqüilizaram-me, dizendo que somente haveria de sofrer o corolário das atrozes dores que me haviam purgado os principais sentimentos de culpa.
Daqui por diante, a caminhada será aplainada, facilitada pelo conhecimento que deverei adquirir das falhas reais da personalidade. Naquela esfera virtual, criada pela imaginação arrebatada pelas paixões em desalinho, a mente se confundia e o aparato crítico não permitia manter viva a chama da esperança. Agora, a lhanura de trato dos parceiros e a luz benigna do sol serão a fonte que me revitalizará o organismo corroído pelos vermes das culpas.
Peço perdão por não oferecer algo de novo ao amigo leitor. É que, por instantes, me preocupei demasiado comigo mesmo, sinal evidente de que grassa em meu caráter o pior egoísmo, revelado, drasticamente, pela vaidade transubstanciada neste pretensioso e efêmero ditado.
Desditosa criatura, este ser que lhes fala. Lembrando-me de minha juventude até certa altura da maturidade, posso vislumbrar pessoa amável e cordata, cuja aspiração maior era deixar impressa na memória do planeta personalidade de vigorosa luz intelectual. Arremeti-me, deveras, pelos meandros do jornalismo de fundo e realizei diversos trabalhos de cunho editorial promissor. Se me fora permitido revelar o meu nome, iria conduzir as pessoas de maneira mais fácil até o ponto em que compreenderiam a verdade deste relato.
Pedem-me para restringir-me ao estado atual, pois a alternativa que propus muito tem de ufania e de vaidade. Concordo plenamente, mesmo porque a empolada linguagem de que me utilizei nesta simples narrativa improvisada não está de acordo com as modernas normas de escritura.
O escrevente pede esclarecimentos, pois está a parecer-lhe que existe flagrante contradição temporal, uma vez que a prisão em que fui encerrado não existe desde há muito nas diversas paragens da Terra. Pois a minha linguagem acabou constituindo-se em verdadeiro óbice para a compreensão dos informes. A cadeia era a mais vil dos tempos atuais. A descrição dela é que, lamentavelmente, se inscreveu entre os diversos deslizes que procedi, ao intentar burilar demasiado a contextura frasal.
Quanto ao conhecimento dos autores modernos, apenas significa aqueles de meu tempo, pois os atuais desconheço completamente; pelo menos não me entretive com a leitura das recentes produções literárias, pobre ser das cavernas morais que tenho sido nos últimos quarenta anos.
Mas valha-me a experiência desta maravilhosa tarde primaveril, para voltar a ouvir os pássaros a chilrear e o bulício da vida a fremir em toda a cidade.
Queira Deus possa ser aceito novo integrante dos grupos de serviçais deste piedoso instituto de ensino e de socorro. Com certeza, um dia estarei de volta a esta pena, com mensagem mais condizente com a expectativa dos bons amigos mentores, para que possa vir a ser útil em relação aos encarnados que peregrinam desatentos por este vasto mundo de Deus.
Sinto-me bem melhor e despeço-me, exalçando aos céus minha humilde frase de despedida: muito obrigado, verdadeiramente, a todos, principalmente ao Criador, sem cuja misericórdia não teria conseguido vibrar este pouquinho em harmonia com os demais. Fiquem todos em paz!




Comentário



Como se pode notar, nem sempre a desenvoltura vocabular e a presteza da inteligência são méritos capazes de elevar o indivíduo moralmente. Por injunção de nossos preceitos, devemos dizer que muito do que nos relatou o amigo é fruto de sua candente imaginação. Nem foi tão mau, nem teve tantos brilhos e aspirações de grandiosa realização intelectual, pobre revisor de fundo de redação.
No dizer dele, deveríamos encerrar os comentários, com esse rude desvelamento; entretanto, sem pretender executar qualquer agressão, temos sérios compromissos com a divulgação das mensagens, não podendo deixar o espírito dos leitores a debater-se em ânsias, na expectativa de estar reconhecendo a identidade do autor do relato.
Digamos, simplesmente, que a sagacidade do amigo está bem desenvolvida e mal direcionada, devendo dedicar-se, a partir de agora, à reflexão a respeito da maneira de ser, buscando, com o menor sofrimento possível, caracterizar, com perfeição, os aspectos essenciais do caráter, para imprimir-lhe no cerne as notações evangélicas adequadas.
Eis que chegamos ao ponto básico das atividades, o costumeiro pedido da prece, em alívio das aflições que tomaram de assalto a pobre vítima da presunção.







25

SACRIFÍCIO INÚTIL





Muitas vezes, na Terra, eu atendia os pedidos de socorro dos enfermos da alma e ia ajudar a descascar o abacaxi. Era médium e não me satisfazia com o fato, deixando sempre para depois a idéia, que não me saía da cabeça, de que havia necessidade de praticar a caridade. Ia ajudar a levar os espíritos para o caminho do bem e não regateava orações para ninguém. Mas enfiar a mão na bolsa, para dar algo em troca da felicidade dos outros, era impossível para mim.
Na verdade, era bem pobre e tudo que desse iria fazer-me falta. Era como sentia a doação, de modo que me reservava para depois, quando julgasse que tinha muito e pudesse distribuir o que estivesse a me sobrar. Mas a vida deu seu turno completo e fiquei sem essa parte importante da formação do caráter dos indivíduos.
Quando aqui cheguei, vinha com o coração opresso, pois sabia que não agira bem. Embora não ganhasse o céu, na verdade, essa faceta impediu-me de emergir para o conhecimento das pessoas mais abonadas moralmente e tive de compartilhar o ambiente com os infelizes e impuros, de molde que me senti vazia. Comecei a contar, então, todas as vezes que saí para prestar auxílio aos infelizes, como se isso pudesse amolecer o coração aos que deveriam fazer-me subir de plano. Foi o pior para mim, pois acabei acusando o Senhor de injusto, tantos foram os favores prestados.
A custo compreendi que era sina minha a participação nas mesas de recebimento mediúnico; era trabalho obrigatório, para me revelar que a verdadeira vida é a espiritual. Sendo assim, deveria ter compreendido, desde logo, que o proveito que deveria ter tirado era o saneamento de minhas atitudes. Tão próxima da intelectualidade e da emoção desprendida da matéria, e fui incapaz de perceber que tudo aquilo era lição pura.
Hoje me apresento, humilde, a este grupo, na esperança de vir a merecer sua comiseração e conforto. Sei que ouvirei palavras de muita sabedoria e orientação de muita oportunidade, pois, na Terra, era o que mais ouvia dos doutrinadores, que recomendavam aos sofredores que se contivessem e se ajustasse inteligentemente às diretrizes evangélicas do Cristo.
Como lamento não ter tido suficiente discernimento para entender que tudo aquilo servia direitinho para mim! Eu não entendia por que me julgava a coberto das tentações e perigos; afinal, era quem, com maior presteza, entrava em transe e dava as comunicações mais pungentes.
Saí da vida com esse tolo orgulho, agasalhando ainda a vaidade de considerar-me superior aos demais. É incrível como me foi de todo impossível a percepção de que estava arruinando-me. Durante certo tempo, acusei os doutrinadores de relapsos, pois me deixavam partir sem se advertirem de que estava totalmente errada. Mas isso durou pouco, pois logo me fizeram ver que não demonstrava os sentimentos, sempre taciturna, enfezada, recolhida, não dando trela às conversas, interessada em realizar logo os trabalhos, para voltar correndo para casa.
Um dia, fui visitar o centro em que ajudava nas tarefas de recepção das comunicações, mas não tive coragem de me dar a conhecer. Fiquei muito envergonhada das pessoas que ali trabalhavam e me senti verdadeiramente diminuída, vendo a eficiência com que se dispunham na recepção dos espíritos. Havia até certa pessoa que eu pensava que mistificava, mas que recebia os piores casos de assassinos. Do nosso lado, pude penitenciar-me por ter tão mal interpretado a pobre criatura, só porque era bem falante e posuda. Na verdade, eu não atingira a compreensão e ousara exercer julgamento e lavrar sentença.
Saí sem saber por que tinha lá comparecido, até que me veio à mente o fato de que poderia ter sido evocada pela saudade de alguém. Foi isso que me deu coragem para aproximar-me desta turma, que trabalha com companheiro isolado e que dá guarida a qualquer que se aproxime, não escolhendo a quem atender. Sei que os que são colocados para a psicografia têm tratamento especial, pois não podem correr o risco de perturbação do médium. Disto entendo um pouco. Não foi por acaso, portanto, que me designaram para a mesa. Há, entretanto, que se ressaltar que são muitos os atendidos, que ficam como que fascinados com a possibilidade da comunicação entre os planos.
Ao falar a respeito destes temas, vou ficando entusiasmada, pois vejo que isso se constituiu, de fato, em algo importante, que me ficou profundamente gravado na consciência.
Os amigos pedem para dizer quanto tempo faz desde que desencarnei. Não sou capaz de fazer cálculo exato, pois parece que peregrinei durante muitos anos na nebulosa condição de errante e, no entanto, pareço estar ainda nas vascas da agonia, na separação do perispírito da carcaça corpórea. Pelos dados que me estão fornecendo, decorreram oito meses, pelo calendário dos humanos. Não é tanto tempo assim, tanto que, ao visitar os meus familiares, pouca alteração percebi em seus costumes.
Estão a me propor estágio em instituição de recomposição perispiritual. Graças a Deus, irmãos, que era o que vinha pedindo a Deus em minhas preces. Vejo que, finalmente, vou ter a ventura de poder abrir o meu leque de esperanças para sentir no rosto a aura bafejada das bondosas vibrações dos irmãos que por mim muito pediram.
Dou graças ao Senhor e oro em fervorosa prece, a fim de me prevenir quanto a possíveis dissabores provocados por meus péssimos defeitos, como demonstrado ficou ao tecer os diversos comentários. Sei que não disse tudo, como também tenho a certeza de que é do conhecimento do pessoal a verdadeira coloração de minha aura. Mas me conformo com o destino, pois ao trabalho não me furtarei, para resgatar os débitos.
Quero desejar aos irmãos que, porventura, lerem este pobre depoimento que prossigam na leitura dos textos espíritas, pois são de muita moralidade e amor. Eu não sabia disso e pouco tempo dediquei às leituras, mas peço que não parem, pensando que já se compenetraram de tudo. Quem sabe, um dia, recebam advertência inesperada quanto a possíveis defeitos ou viciações, por menores e mais sutis possam ser, e aí se fará a luz que os impedirá de penetrar nas sombras das dúvidas e do horror da culpabilidade da consciência.
Fiquem, portanto, amigos, na paz do Senhor e continuem esforçando-se pela compreensão de suas sacratíssimas leis. Cumpram os mandamentos do Cristo e não se esqueçam de que a divisa do Espiritismo é essencial para que o indivíduo logre progredir: Fora da caridade não há salvação.
Pelo solerte médium, que teve a bondade de me conduzir nestas manifestações, rogo a Deus, que o esclareça e que lhe dê melhor facilidade de entender que sua tarefa é, a um tempo, missionária e expiatória, pois está o destino de cada qual na mão do Senhor. Por isso é que deve, quando orar, dar ênfase à frase que diz: ...faça-se segundo a sua vontade, assim na terra como no céu, para que não imagine, como eu, que deva prevalecer a própria vontade.
Estou a exercer papel de doutrinadora e conselheira, quando, meramente, deveria ajoelhar-me e pedir perdão pelas minhas faltas. Que se leve em conta mais este defeito, para que me seja proporcionada oportunidade de depuração. Contudo, peço que não se esqueçam de mim em suas preces, lembrando-se daquela médium que não aprendeu as lições a tempo.
Graças a Deus, irmãozinhos! Fiquem na paz do Senhor!




Comentário



A amiga, verdadeiramente, está impressionada demais com os defeitos que soube reconhecer na personalidade. Trata-se de espírito altamente crítico. Se todas as pessoas do mundo tivessem agido conforme o seu procedimento, acreditamos que muito em breve o orbe terráqueo não apresentaria mais condições de ser chamado de planeta de dor e expiação.
Fiquemos na impressão da alegria que terá a companheira quando descobrir que era muito querida de todos, de forma que sua suposição de agora se transformará em força de vontade para prosseguir ascendendo rumo ao Senhor.
Para encerrar, devemos dizer que foi a irmãzinha encaminhada para nós por diversas entidades a quem assistiu na condição de médium, de forma que a valorização superior que deu às imperfeições deverá suplantar-se em pouquíssimo tempo.
Apesar de todo esse amparo, deve ser levado a sério seu pedido de orações, pois nunca será demais enfatizar que esse recurso é de máximo proveito para todos os seres, mesmo quando iluminados pelo Senhor. Aliás, foi esse o dom de superior qualidade que nos permitiu reconhecer na companheira alguém merecedor do contacto imediato que lhe iremos proporcionar com a família. Bastará que vença o temor de parecer pobre de espírito, o que, de resto, não é verdadeiro, como demonstrou tão lucidamente em suas declarações.
Oremos, pois, irmãos, com muito fervor.







26

O MEU GRITO DE GUERRA





Quando aporrinhado pelos que me queriam fazer de tolo, costumava gritar:
— Cuidado, amigos, porque vou me vingar!...
E não tinha vez em que não conseguia atingir o intento.
No espaço, entretanto, por mais que deseje reaver os meus direitos, que, a toda hora, são postergados, só ouço o ecoar de minha voz, sem repercussão em qualquer ato que possa ferir os adversários.
É estranho que assim aconteça comigo, pois é um horror o que passo nas mãos dos outros, sem poder dar o troco.
Agora que estou com estes seres bondosos, que trataram de mim com carinhoso cuidado, eu me sinto sem aversão pelas pessoas e demais entidades e não tenho vontade alguma de lançar o meu brado de guerra.
Sei que sou um pobre infeliz, rude demais para perceber a grandiosidade das coisas, só preocupado comigo mesmo, sentindo forte atração para continuar vagando pelos desertos espaciais, como se fora ali o meu habitat. Algumas vezes, temi sair de lá e não encontrar a mesma liberdade, apesar de constantemente me ver atacado pelos lobos ferozes, que me despedaçavam e contra quem não tenho poder de reação.
O interessante é que a luta me atrai, sem que, contudo, me vanglorie dela, pois estou em frangalhos e jamais obtive qualquer sucesso em que pudesse considerar-me vitorioso.
O pessoal daqui está dizendo-me que há muita contradição entre a lucidez com que exponho a minha condição de inferioridade com os castigos destinados a quem foi brutal ao extremo no trato com os semelhantes. Para quem sofre tantos entreveros, é bem claro que existem muitos inimigos, adquiridos em lutas para a obtenção de prioridades e poderes, a gerar injustiças e maldades.
É bem esse o meu caso, só que acontece que faz muito tempo desde que peregrinei pela Terra pela última vez. Já devo ter tido todas as reflexões possíveis a respeito de tudo o que fiz contra as leis e os homens.
Pedem-me para examinar o fato de que, se continuo brutalizado, quer dizer que meus inimigos perduram em condições de inferioridade a ponto de não terem, eles mesmos, progredido nada, conforme o tempo que tem decorrido para todos.
Não sei dos outros, mas quer parecer-me que a malta se renova. Certa vez, precisei fazer crescer os dentes, pois era a única forma de poder reagir à altura. Sei que não foi boa a atitude, pois aí os indivíduos tomaram estranhas formas humanas e, com cajados e varapaus, me bateram muito.
Dizem-me para contar o último crime de que me lembre. Pois me recuso a formular qualquer mau pensamento a meu respeito. Que direito têm vocês de exigir isso de mim? Só se for para o meu próprio bem...
Pois foi uma surra que dei em um dos meus filhos, pequeno ser indefeso. Bati tanto que ficou doente e morreu. Quando aqui cheguei, aguardava por mim com uma trempe, esperando-me para a desforra. De nada adiantou o meu grito de guerra.
É claro que me arrependo de lhe ter provocado a morte e ele sabia muito bem que eu havia pedido perdão ao seu espírito muitas vezes. Mas, mesmo assim, tinha maus pendores e não me deu chance alguma de justificação ou de reparação. Partiu logo para a agressão, dizendo que nunca havia obtido de mim qualquer carinho ou benquerença.
Acho que tudo ocorria comigo porque era guarda de cárcere e estava habituado a ver as coisas mais grosseiras. Lá precisava defender-me com muita rudeza, pois, se me apanhassem desprevenido, morria. Aliás, foi assim que acabei partindo, no fim, pois fui atacado e morto por uns indivíduos que me haviam jurado de morte.
Disse que não queria falar, mas agora parece que estou tendo um pouco de alívio. Como gostaria de poder ajudar o pessoal a compreender as minhas necessidades, para me darem o remédio certo para o tratamento!
Certa vez, um grupo tentou orientar-me, pedindo-me que aceitasse a sorte e propondo-me a acompanhá-los numas rezinhas mal feitas. Eu ia lá querer fazer papel de bobo? Eles queriam é rir de minha cara. Parti para a agressão, mas fui muito mal sucedido, pois ninguém encontrei em quem pudesse desferir os golpes. Acho que a turma tinha poderes para me ajudar e fui realmente tolo em não ter atendido.
Dizem que não estava tão preparado como me encontro agora. É possível. Por isso, não tenho vontade alguma de reagir e até contei o último crime. Acho que já posso conseguir o auxílio de que necessito.
Pedem-me que tenha bastante paciência e dizem-me que é meu filho quem está desejando refazer os laços de amizade. Acredito, porque eu é que me senti ofendido no fim, embora não devesse, porque o maior prejudicado foi ele.
Espero em Deus que nós possamos encontrar-nos em melhor situação, pois não estou conseguindo vê-lo dentre os diversos indivíduos que estão ao redor de mim.
Pois esse não é o meu filho. Não foi ele quem me perseguiu com o grupo de malfeitores. Não estou entendendo o que se passa...




Comentário



Depois de alguns minutos, o espírito acabou por reconhecer a entidade que vinha resgatá-lo com muito amor. Verdadeiramente, era o filho que fora espancado até a morte, mas não se tratava da entidade que se vingara. Ao contrário, conduzira o pai até o primeiro grupo de socorristas, pois de há muito via que o infeliz ser da erraticidade estava imerso em fantasias de vinganças a desafetos monstruosos, que criava na imaginação.
A última encarnação lhe fez muito mal, pois desperdiçou a oportunidade por atitudes de descalabro moral agudo. Não paga a pena relatar os diversos crimes que praticou. Basta dizer que se manteve em inércia consciencial por mais de quarenta anos, fazendo mais de duzentos que não progride um passo, onerando-se cada vez mais com os adversários.
Quando o fizemos imaginar se os demais não haviam progredido, chegou ao ponto que esperávamos: supôs que tudo se passava em sua mente culpada, em virtude de graves acusações, mas não aceitou, de imediato, o resultado do raciocínio. Terá muito ainda para crescer, para poder compor-se ao lado daqueles seres que o estão ajudando.
Vamos orar por ele, irmãos, para lhe dar o conforto íntimo necessário para enfrentar o próprio patrulhamento moral, já que tudo indica que irá passar por períodos de grande depressão psíquica, uma vez que adquiriu consciência dos males e é capaz de se arrepender. Grande passo é esse em direção ao caminho do Senhor. Se todos os humanos pudessem compreender a força que advém desse simples movimento da alma, teriam mais consideração pela realidade psicológica como veículo da salvação.
Em todo caso, pensamos ter vindo com esclarecimentos suficientes para enaltecer a dor e o sofrimento como alavancas para o progresso. O que não podemos admitir é a necessidade que muitos apresentam de volver à prática dos crimes e só isso pode explicar a razão daquele gesto de guerra. Fujamos, irmãos, da vindita; saibamos compreender as palavras do Cristo a respeito do perdão e façamos por imitar o Mestre em sua atitude de desprendimento no alto da cruz, pelo menos simbolicamente, metamorfoseando o ato de sangue em ato de profunda vontade de sacrificar os desejos impuros, à custa da sufocação das tendências ao mal, que formos capazes de surpreender na personalidade.
Contrariando o desiderato de deixar os exemplos da dor falarem por si, levamos as considerações a ponto muito avançado, para o que pedimos escusarem-nos os amigos, já que reflexões deste tipo qualquer mortal bem intencionado é capaz de fazer e quem não tem esse dom dificilmente se postará na companhia de nossos leitores. De qualquer forma, sufoquemos o grito de guerra, por amor a Deus e aos nossos irmãos.
Fiquemos todos com o Senhor!







27

DE GENERAL A SOLDADO RASO





De manhã, segui o amigo até o bulício do banco. Queria ver como é que as pessoas costumam reagir diante do dinheiro; afinal de contas, na minha derradeira passagem pela Terra, tive de tudo, sem precisar fazer força alguma. Era só manifestar o desejo e lá vinham com o que determinara. Era mais ou menos como ocorre aqui, quando não tenho outro trabalho senão pensar e já está o amigo escrevendo o que me der na vontade.
É claro que não vou abusar dele como abusei dos serviçais a quem obrigava à satisfação até de caprichos tolos, conforme se poderá avaliar da narrativa a seguir.
Era ladino e não consumia muitas energias, mas estive bom tempo nas mãos de médicos ávidos por abocanhar parte da minha fortuna. Não dei importância nenhuma a essas migalhas e fui informando-me do que estava fazendo mal à saúde. Aos poucos, saí dessa influenciação perniciosa, especialmente quando cheguei à adolescência e tive necessidade de me firmar por meio da própria personalidade, para obter da vontade dos outros que se ajeitasse à minha.
Não preciso descrever as emoções dos encontros libertinos que tive, mas é importante que se fixem essas diretrizes de comportamento para entender-se o que se seguiu. Assim, tive muitas aventuras com as mulheres, até que resolvi, por determinação familiar, que deveria casar-me e procriar. Na verdade, estava um tanto cansado das facilidades que encontrava.
Minha esposa foi mulher divina, que soube compreender-me em todos os desejos. Não poderia ter conseguido alguém melhor, só que não me acompanhava nos arremessos de fantasia e me vi, de repente, nos braços de outras, amantes de improviso, que o hábito me forçava a possuir. Eis que minha esposa engravidou seis vezes e teve quatro filhos lindos e duas meninas primorosas.
Nesse meio tempo, as coisas, no meu país, desandaram e precisei fugir, pois a rebeldia da população atingiu toda a minha família, acostumada ao comando político. Não perdi os haveres que possuía no exterior, mas o transtorno absorveu tudo que nos prendia à terra natal.
Sei que esses eventos podem não significar nada para quem agora se debate nas trevas, mas, se não explicar tudo, talvez não venham a perceber o porquê de não ter alcançado nenhuma evolução, tendo permanecido infeliz desde que desencarnei até o momento em que a turma me foi buscar lá no canto em que me debatia.
É que, do exterior, mandei para a minha pátria muitas armas, apetrechos bélicos com que fomentava a rebelião contra-revolucionária. Eu mesmo não atirei em ninguém, mas as balas que adquiri foram responsáveis por inúmeras mortes, até de seres inocentes, crianças e mulheres que se postaram em meio ao trajeto dos balázios, quando não assassinados a sangue-frio pelos agentes de minha família.
Não pretendo revelar minha identidade, para que não haja explorações, pois minha gente até hoje permanece no poder, após o vitorioso revide.
Eu mesmo consegui regressar, afinal, e pude refazer as indústrias e recuperar as terras que se haviam perdido. Mas nunca fui o mesmo. Tomei a revolução como algo feito contra mim, pessoalmente, e aos meus, e não tive sossego até que pude comprovar que os adversários todos tinham sido passados a fio de espada, por assim dizer.
Quando tudo ocorreu, eu era maduro e a minha volta encontrou-me encanecido. Portanto, minha estadia nas terras recuperadas não perdurou por mais de quinze anos, até que, por meios naturais, deixei a vida, pranteado pelos familiares, que temiam ter perdido o pulso forte que os mantinha seguros. Eu expedia as ordens de execução, mas todos se sentiam bem aliviados pelo que lhes representavam de diminuição da pressão psicológica.
Não quero ir mais além. Só preciso dizer que tudo se passou há muito tempo. Hoje, após muito sofrer, estou recebendo esta oportunidade e pretendo aproveitar-me dela, para refazer os compromissos com a verdade. Não me sinto tentado a recompor a vida nas bases em que me vi situado anteriormente, já que não tive força para refugar as más tendências.
Tenho para comigo que, se for reingressar na carne, deverei solicitar oportunidade para refacção dos princípios da humildade que nunca senti. Sei que não deverei regressar tão logo, pois estão acenando-me com a necessidade de obter certos progressos na compreensão dos deveres cármicos e evangélicos. O que me atemoriza é que foi por vaidade que me deixei conduzir para encarne de alto risco.
Por incrível que pareça, em vida anterior, lembro-me de ter sofrido várias injustiças e que me mantive abstraído do desejo de vingança, tendo guardado esse terrível sentimento no fundo da consciência. Quando me vi em condição de revide, aproveitei-me para proporcionar aos desafetos as piores derrotas. Como fui tolo e mesquinho!
Que esta lucidez de agora possa manter-me desperto, pois estou compreendendo estar chegando a hora da recuperação das qualidades e dos valores que deixei esvaírem-se, por não ter tido os devidos cuidados com o poder que se punha à minha disposição.
Podem ficar admirados, mas não senti o passamento de nenhum de meus filhos, tanto que não me interessei por qualquer um mesmo sabendo de seus paradeiros. Fui pai extremoso e muito amei aquelas criaturas; no entanto, floresceu em mim tão forte o egoísmo que me desliguei totalmente de qualquer sentimento de afeição. Até em relação à minha cara esposa, Carmelita, fiquei absolutamente frio e distante. Penso que fará parte da restruturação moral, que deverei empreender, a necessidade de reatar esses laços desfeitos.
Eis aí, em rápidas pinceladas, o quadro geral de minha vida física e moral. Não tenho mérito algum a oferecer em troca dos favores que venho recebendo, no entanto, creio que o muito sofrer em busca da pequena compreensão que alcancei pode falar por minha sinceridade.
Peço, encarecidamente, que creiam em minha promessa de que irei esforçar-me por reaver um pouco do que já possuí e atirei ao monturo das insignificâncias, como se o importante fosse fazer prevalecer minha vontade.
Ousarei até dizer que estive em condições de vitorioso sobre o mal, como alguém que consegue subir em alto e escarpado monte, mas, sem sustentação verdadeira, cai fragorosamente. Temo que as imagens possam sugerir que esteja fazendo cena, para representar-me alguém superior ou com condições de vir a ser. Certamente, existe essa pretensão, pois me está sendo dificílimo esquecer minha preponderância sobre os pobres e infelizes analfabetos de minha terra. No entanto, amigos, peço-lhes que relevem essa tremenda falha de caráter e me deixem passar por alguns testes em sua instituição, já que meu passado fala profundamente contra mim.
Não creio que me tenham trazido até aqui para escarnecerem-se de minha queda, pois noto, em todos, traços de cavalheirismo e nobreza. Portanto, irmãos, procurem compreender-me de verdade, pois esgotei todos os argumentos.
Falta pronunciar suave oração, para tornar tudo bem claro. Pois eu o farei, se me ajudarem a relembrar-me das palavras, já que, incrivelmente, não me ocorreu nunca que a religião pudesse ser a tábua de salvação deste náufrago do egoísmo e da prepotência.
Peço, pelo amor de Deus, que me façam parar de escrever, pois isto está tornando-se verdadeiro castigo para mim, desacostumado a pôr-me de joelhos diante das pessoas.
Sei que houve muitas falhas em meu relato e que cheguei ciente de que iria tornar as coisas muito fáceis com as lorotas que inventei. Mas agora é chegada a hora da encruzilhada, pois estou vendo que o caminha se bifurca e que só poderei obter a ajuda dos companheiros, se eu mesmo me propuser a ajudar-me.
Pois bem, desconsiderem a história e se atenham a saber que manuseei as armas com que abati os inimigos. Saibam que dos seis filhos que tive, todos eram meus antigos adversários que procurei continuar prejudicando em todas as esferas. Minha esposa, desprezei com arrogância, fazendo dela verdadeira escrava. Que mais querem que confesse? Que jamais fui rico e que passei boa parte da vida no cativeiro da prisão, onde me deixei embalar pela imaginação para não ficar louco. Que não faz tanto tempo que rolo pela escuridão, magoado por estar tão infeliz, por saber que os parentes rogam por mim e que não consigo perdoá-los. Pois aí está toda a verdade. Peço desculpas por ter oferecido tanta falsidade. É que vi que poderia estar a escrever e isso me deu a idéia de que a história pudesse comover os socorristas e os leitores. Não me queiram mal por isso e se, de algo do que disse, se puder tirar proveito, que todo este depoimento seja impresso, para que as pessoas não tenham intentos de enganar os que estão aqui só para nos ajudar.
Quando pedi para me afastar da escrita, estava tentando um último arremesso no caminho do erro e da falsidade. Como é fácil de inventar histórias! Como é difícil de iludir os que estão a oferecer esta oportunidade! Graças a Deus, fizeram-me entender a tempo que estava pondo tudo a perder.
Acho que agora sim poderei dizer a prece solicitada, rezando para que meus filhos e minha esposa me perdoem, pois sei que muito os fiz sofrer. Aos demais, a quem devo muito, prometo que irei ressarcir, moeda a moeda, lágrima a lágrima, sangue a sangue, todo o mal que lhes propiciei.
Ponho-me à disposição dos irmãos para o relato de todos os casos que preencheram a minha vida, pois já não me desespero com o fato de estar aqui a expor as minhas misérias.
Devo agradecer e me retirar.
Pois muito agradeço a todos, especialmente ao irmão que teve tanta tolerância para as asneiras que tentei impingir como verdades. A ele, sobretudo, peço perdão; que aceite, pois, a palavra deste infortunado ser de que um dia desejarei regressar para dizer-lhe que minha condição melhorou, conforme a leitura que acompanhei da Revista Espírita, por determinação dos que comigo estiveram desde hoje cedo, em minha caminhada até o banco.
Aceito a reprimenda de que estou sendo repetitivo e cansativo, mas peço vênia para, de novo, dizer que era mentira que fui tão rico. Sinto que me estou confundindo e rogo que me permitam retirar-me.




Comentário



O irmãozinho leitor deve estar atento para os dizeres deste amigo, pois, pareceu-nos, foi bem convincente em suas armadilhas psicológicas. É essa atenção que se deve ter ao estar diante de espíritos que não primam pelas virtudes da humildade, da consideração pelos semelhantes e da boa vontade. Prece bem feita, com a natural tendência ao auxílio, brotada do coração compungido e com o interesse despertado pelo socorrismo, ajudará a manter o tônus elevado da moralidade evangélica, de forma que não há temer os embusteiros e os obsessores. Vamos, isto sim, dar curso ao atendimento, vibrando suavemente em favor desse amigo sofredor, bem como de outros mais que estão ansiando por obter nossa comiseração, pois somos o primeiro sinal de que poderão livrar-se do peso de suas cargas.
Mesmo que a pessoa esteja tomando conhecimento deste trabalho muito tempo depois do instante da transmissão mediúnica, nunca será desperdiçada qualquer vibração que venha a realizar em prol dos infelizes em vias de receber ajuda, para o resgate primeiro de suas carcomidas figuras. Basta que se concentre e ore com devoção, para que se realize algo em favor de alguém, pois haverá quem esteja em condições de canalizar as boas ondas magnéticas em benefício dos irmãos necessitados.
Fiquem, amigos, nas mãos do Senhor!







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OS PRIMOS POBRES





Sabemos que os amigos leitores se preocupam com o teor dos textos que vêm lendo. Há já diversos dias, temos visto desfilar diante dos olhos uma série de irmãos sofredores, a quem pouco mais fazemos do que lhes dar oportunidade de refletir a respeito da própria condição. Nada lhes proporcionamos que possa vir a ser considerado de caráter superior. É que não temos os recursos da grandiloqüência nem a facilidade da verberação fraterna dos grandes moralistas. Somos os primos pobres da historieta cômica que reside na mentalidade do homem.
Sem que estejamos reclamando por não termos a mesma capacidade de vibração, em função dos benefícios, é bem evidente que tudo fazemos ao nosso alcance para dar aos infelizes o conforto da prece e a esperança da salvação. Não nos afastamos jamais do lema do kardecismo, qual seja, fora da caridade não há salvação, para o que pregamos o amor e a comiseração entre os seres.
Do ponto de vista religioso, não damos preferência a qualquer credo instituído entre os homens, mas colocamos a palavra do Senhor como premissa de comportamento, para que o homem venha a ser, verdadeiramente, considerado filho de Deus, pois não há negar que nos Evangelhos se contêm o caminho, a verdade e a vida.
Fora daí, não há como realizar grandes coisas mais. Basta isso para nos deixar satisfeitos com nós mesmos, pois a vida pautada pelas diretrizes evangélicas, levada a sério como norma geral de procedimento, será proveitosa mesmo quando se trata dos espíritos na erraticidade do espaço maior.
No que tange, portanto, a definirmos as nossas atitudes de modo diferenciado, nem pensar, posto que haja aspiração de novidade no fundo do coração de cada amiguinho, que se atreveu a dedicar sua atenção a estes escritos.
Vamos deixá-los, agora, na companhia de ser muito infeliz, para conhecer outro tópico penoso da realidade de quem se incapacitou para seguir na vida as exortações cristãs que lhe foram como que imantadas no ser, pois, inequivocamente, estão todas as diretrizes da moral superior impressas na consciência de cada um.
Ei-lo, portanto, aqui, ávido por utilizar-se deste momento de psicografia para demonstrar, pelo ato, o que não se deve fazer.
Sabemos que o dia se reservou para a apreciação de espíritos inferiores, que pudessem vir demonstrar cabalmente que era chegada a hora da recomposição do caráter, mas como não havia nenhum disponível, os irmãozinhos deram-me esta oportunidade única. Lamento que tenha sido logo a mim, que não tenho outras informações a prestar que já não estejam todas ditas e examinadas com profundidade doutrinária.
O que fui capaz de repetir, na primeira parte desta dissertação, é o que tenho aprendido nas peregrinações pelos centros espíritas, pois sou assíduo freqüentador, desde que desencarnei. Já fui queimado, torturado, massacrado, baleado e pude incentivar a quanto médium se deixou envolver pelos meus eflúvios. A bem da verdade, ouvi muito doutrinador me dizer para me conter, que a verdade da existência logo se revelaria a mim. E eu incentivava os gritos lancinantes, ciente de que estava realizando obra de mérito.
Quanto me enganei, bons amigos, pois agora que procuro ser sério, nada encontro que possa representar de bom para o chamamento dos irmãozinhos que estão na ignorância. Quando comecei a escrita, pensei que iria poder executar obra de vulto. Aos poucos, porém, fui entendendo que o único mérito real de tudo que escrevi foi o título, sugerido, aliás, por um dos irmãos presentes, quando do início dos trabalhos, dizendo-me para que começasse daí a caracterizar o grupo de socorristas, para estender-me convenientemente a respeito dos temas que estão na ordem do dia destas manifestações. Disse-me, também, que o pessoal que aqui se apresenta vem cheio de chagas morais, e isto me deu a idéia de que os leitores estivessem esperando por explicações teóricas.
Peço perdão pelo atrevimento e espero em Deus que minha pobreza seja o símbolo da inaptidão e da incompetência de quem não conseguiu cumprir na vida o mínimo de tarefas para engrandecimento moral e intelectual.
De fato, até que tenho alguns atributos, pois sou bem capaz de ir desenvolvendo estes tópicos, com bem pouco auxílio do médium ou de qualquer componente do grupo. Até que tenho alguma verborragia e isto se deve ao fato de ter tido a necessidade, na última encarnação, de falar muito para convencer as pessoas a adquirirem os bens que punha à venda em meus estabelecimentos comerciais. Mas cobrava muito caro por tudo o que impingia à freguesia, de modo que não fui capaz de reparar me que estado de penúria ia ficando a minha alma, ao passo que engordava as contas bancárias e aumentava a quantidade de posses materiais, especialmente de edifícios, os quais alugava com usura.
Não tenho no passivo qualquer débito de sangue, apesar de ter intentado diversas vezes contra a vida de minha consorte. Acho que exagerei nos ciúmes que sentia, ao ponto de oferecer-lhe, finalmente, separação litigiosa, em que busquei evidenciar que havia sido traído por ela, para não ter que lhe pagar pensão alguma. Na verdade, gastei com os advogados muito mais que lhe passei às mãos, e isto me deixou bastante indignado comigo mesmo, quando percebi que o fato de ter desamparado justamente a quem deveria apoiar e ajudar foi uma das causas mais poderosas de meu desequilíbrio emocional, quando me dei do lado de cá.
É interessante que ainda agora surpreendi-me na expectativa de deixar de registrar os meus maus fluidos e as péssimas vibrações — as palavras me parecem ocas —, para anunciar a vinda de algum ser de inferior qualidade, inadvertido para o fato de que eu é que sou esse miserável sofredor que está a demonstrar aos encarnados que não devem fazer nada contrário aos dispositivos da moralidade superior, mesmo que sejam simples aumentos gananciosos nos preços.
Devo estar exercendo triste papel nesta altura da comunicação, pois nem bem caracterizei os meus pecados, nem expus com proficiência as virtudes que deixei de adquirir. Peço perdão, dado que de forma atrasada e indireta, por ter falseado tantas apresentações aos irmãozinhos ignorantes das lorotas que lhes passava. Pensava que era por essa forma que lhes dava a satisfação de ter contatado o plano da espiritualidade, enquanto era fortemente reprimido pelos encarregados da sessão, em seu aspecto espiritual.
É interessante, no entanto, deixar escrito que nunca percebi qualquer deles assumindo a palavra para desmentir-me perante as assembléias. O máximo que faziam era pedir-me para prestar atenção nos dizeres dos amigos que desejavam despertar-me para a realidade superior. Isso eu fingia que fazia e cheguei até a decorar alguns chavões muito repetidos, o que me deu condições de desenvolver uma página inteira, pois, de início, quis passar por espírito de alguma luz, para prosseguir na mistificação costumeira. Como se pode observar, não deu certo, principalmente porque não me permitiram afastar-me, obrigando-me a prosseguir ditando as frases que iam ocorrendo-me, sem me deixarem válvula de escape para ocultar as mazelas concentradas no caráter.
Agora, sim, depois deste longo discurso, não tenho mais nada a oferecer. Se me fosse permitido colocar o coração na mão e fazê-lo ditar o período final, diria que estou imensamente feliz por ter conseguido chegar ao ponto de demonstrar a falsidade de meu ser. Estejam cientes de que outros males deixei de mencionar, alguns com bastante gravidade, o que me determinou dez anos de internamento incomunicável no setor do báratro destinado aos homicidas furiosos, de onde só saí após ter recebido o perdão formal da vítima. Como fiquei atarantado com a condição de pária da sociedade para a qual contribuí com minha insensatez, passei a perambular sem destino, sendo muitas vezes levado por seres bondosos a apresentar-me nos centros espíritas. Mas meu procedimento me fazia voltar à erraticidade. Por isto, estou estendendo este último parágrafo: para pedir aos irmãos que não permitam que regresse à peregrinação da dor, mas que me indiquem o real caminho da cura dos sofrimentos, pois estou muito cansado desta alucinante desventura. Piedade, irmãos!
Em breve oração dita pelos que estão presentes, vi que as minhas vibrações de infelicidade surtiram efeito e agora me ponho em condição de seguir em frente, com o peito arquejante ainda, mas com a mente serena. Agradeço muito a todos e peço perdão por ter, de maneira tão arrevesada, chegado ao término desta exposição, que deveria ter merecido outro cuidado. Ao irmão escrevente, a minha respeitosa consideração.
Fiquem com Deus!




Comentário



O irmãozinho deixou tudo bem claro relativamente à sua personalidade, dando-nos, inclusive, oportunidade de estender-nos um pouquinho a respeito dos atributos dos infelizes que temos selecionado para a mediunização. São seres dotados de inteligência e cheios de artifícios de comportamento, acostumados ao engodo, mesmo diante dos irmãos desencarnados. São indivíduos que se sentem todo-poderosos, pensando, cheios de orgulho, estarem com as rédeas na mão, a conduzir o carro da existência, não percebendo que rumos vão dando à jornada.
Não nos interessamos em trazer à psicografia casos mais simples de desvios comuns de conduta, conforme outras narrativas registradas pelos confrades, em obras anteriores. Esperamos que nossos casos possam servir para ilustrar tipo muito encontradiço de procedimento entre os encarnados, de sorte a propiciar devido alerta a algum leitor desprecavido, que não tenha atentado para as tendências ao embuste e à tergiversação aos temas das reais virtudes e dos verdadeiros sacrifícios.
Valha-nos Deus no empreendimento, pois não suportaríamos ter de enfrentar a censura dos irmãos, por imaginarem que nossa atividade possa estar eivada de presunção e orgulho. De tudo o que escreveu o atendido, aquilo a que não se pode colocar dúvida é a citação de que o nosso grupo é o primo pobre das equipes socorristas, pois, deveras, nossa luz tem pouco brilho e nossa atividade se limita a, com esforço, procurar levar os irmãos à compreensão do que torna seus fardos pesados.
Fiquem todos nas mãos do Senhor!







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GRATA FRUSTRAÇÃO





Ouso dizer que não me convém ficar aqui à disposição dos amigos, uma vez que, com certeza, irei ser inconveniente e, portanto, prejudicial a mim mesmo, se não for ainda grosseiro o suficiente para magoar as pessoas que entrarem em contacto com esta comunicação mediunicamente transmitida.
Vou ser sincero e espero igual demonstração de franqueza de todos. Não estou disposto a ouvir ais-coitadinhos de ninguém, pois, se disser que fui mau, que despertei a fúria incontida de muitos desafetos, foi porque tinha em mim vermezinho ruim que me corroía o fígado e me inundava de bílis todo o organismo. Era supremamente vaidoso, tanto que, até agora, tenho a presunção como norma de procedimento.
Insistem para que fique. Caso o texto não possa ser aproveitado como reflexo desse problema sério que tanto me desandou a personalidade, será jogado ao fogo, que o consumirá, restando só cinzas do papel ora manchado por estas palavras mal dispostas.
Podem ter a certeza de que, em vida, teria rejeitado in limine este trabalho como tendo origem espiritual. Não admitia a possibilidade da vinculação entre os mundos espiritual e carnal. Só aceitava como plausível o ato de vontade do Senhor ou a manifestação pegajosa e maligna dos dominadores do inferno. Hoje, o que escarnecia com rudeza parece a salvação para os que se encontram enganados, até mesmo neste lado das sombras.
Não fui mau quanto ao relacionamento com as pessoas, quando tratadas de igual para igual. Mas fui soberbo, orgulhoso e despótico para aqueles que rastejavam socialmente diante de mim. Da mesma forma que rejeitava a teoria espírita, também abominava os seres das classes inferiores. Não tinha comiseração para com os sofredores e reiteradas vezes determinei que se escorraçassem os miseráveis que se postavam nas redondezas de minhas propriedades.
Como gostaria de esquecer aqueles dias de glória terrestre! Se me fosse dado transformar o passado em pasta para converter em algo disforme, irreconhecível, amoldável e transferível, eu o faria imediatamente. Nem por isso, no entanto, irei mentir, para não deixar escapar esta oportunidade de restauração dos laços que me unirão aos bons. Sei que não devo transgredir as normas de relacionamento entre nós para não ter de voltar a vagar sem destino pelos campos imensos da erraticidade.
Aos poucos, as forças vão faltando-me e me sinto esvair. Não estou conseguindo imprimir vibrações ao cérebro do bondoso escrevente, pois não encontro energia para suplantar as dores que se avizinham rapidamente. Sei que vou desmaiar. Prendam-me, por favor, fortemente a vocês, já que estou...




Comentário



Este exercício de reencontro com a verdade fez muito bem ao amigo. Antes de mais nada, é preciso rogar para ele a misericórdia divina, para que possa criar coragem para enfrentar o verdadeiro monstro em que se tornou, por causa dos inúmeros crimes que promoveu.
Em vida, foi o que realmente tentou passar e nenhuma de suas palavras refletiu algo que não tivesse sido verdade. Contudo, as lembranças foram demasiado fortes para que pudesse retratá-las, pois ainda não se desvinculou realmente do sofrimento que o arrastava pelo etéreo.
Há quem compareça à sessão com a mente desanuviada das pressões morais, de forma que se conduzem exteriormente em consonância com as diretrizes gerais do procedimento ético entre os seres. Há aqueles que nos chegam em desespero absoluto. Os primeiros conseguem administrar a vontade, dando-nos ensejo de conduzi-los à psicografia, momento em que dão vazão aos sentimentos e pendores intelectuais, demonstrando, através de seu relato — direta ou indiretamente — quem são e o que os levou a moldarem as personalidades. Os últimos, simplesmente, estão impedidos de se comunicarem, pois não saberiam o que fazer, produzindo vibrações sem nexo, impossíveis de serem traduzidas com proveito. Para se ter idéia, teríamos algo assim:
"Por favor... eu me enganei... estou sofrendo... rezem por mim... salvem meu filho... não fui bom... estou doente... sinto-me..."
O amigo de hoje, tudo indicava, iria proporcionar-nos tarde de intenso trabalho psicográfico, pois veio dotado de aparente segurança e seu cabedal de conhecimentos incluía até noções seguras da doutrina que rejeitara durante o encarne. No entanto, o rigor excessivo contra si mesmo, o acérrimo sentimento de culpa e o remorso incrível provocado pela angústia da vaidade exacerbada culminaram por obrigá-lo a largar o posto em estado de depressão aguda.
Isto não foi bom para o desenvolvimento do relato e para a exata compreensão da extensão dos problemas, na elaboração do processo de causa e efeito para a produção de suas reações e de sua personalidade, o que exigiu de nós este prolongado comentário. Mas para o tratamento das afecções morais, a reação nos ensejou a melhor oportunidade, pois no-lo colocou nas mãos, para que efetuássemos o socorro oportuno, sem resistências descabidas.
Eis em que deu esta tarde de psicografia. Esperamos que não tenha gerado decepção. Antes, aproveitamos para incentivar as preces em favor destas desgraçadas criaturas. Oremos, irmãos, e façamos pelos semelhantes como gostaríamos que se fizesse conosco. Lembremo-nos de Jesus em seu calvário de dor e saibamos dar aos acontecimentos o justo valor, para se reconhecer neles o dedo de Deus.
Fiquem na paz do Senhor!







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À SOMBRA DO OUTRO





— Vá em paz, meu filho, realizar o que você tem para fazer. Não se prenda por nós. Sempre haverá tempo para que nossas manifestações se produzam. É bem verdade que devemos dar importância ao nosso trabalho, caso contrário não conseguiremos passar aos mortais a idéia de que devam trabalhar pelo bem do próximo.
Este que escreve é um pobre sofredor que veio espontaneamente trazer sua contribuição, na expectativa de merecer um pouco de carinho deste grupo harmonioso, que se dispôs a receber-me. Não vemos, contudo, como podemos contribuir com nossas míseras luzes, diante de tanto esplendor.
De início, pareceu-nos que a tarefa seria fácil, pois os compromissos do escrevente valeram-nos para que redigíssemos algo proveitoso. Agora, pondo a razão para funcionar, percebemos que até ali se pode ver algo de malicioso, pois era intenção nossa dissuadi-lo de persistir efetuando o apanhado do ditado.
Temos, portanto, que aceitar a perspectiva da censura e nos colocamos à disposição para o que quiserem saber.
Desejam principiar pelas informações do porquê temos tido este procedimento nefasto para o progresso.
É simples. Nós não nos atrevemos a romper as cascas das feridas para colocar nelas o medicamento adequado para a cura. Chegamos ao mundo purulentos, com graves pústulas a exalar péssimo odor. Era nossa ambição conseguir fazer com que cicatrizassem, através de muito trabalho penoso de recomposição moral. Entretanto, ao invés disso, embalados por vida gostosa, plena de pequenas felicidades materiais, empenhamo-nos por dar continuidade ao prazer de viver, esquecidos de que havia algo mais a realizar.
Querem que discorramos a respeito desta capacidade de auto-análise, quando a nossa percepção na Terra se manteve ofuscada pelas premissas próprias do encarne.
É que nascemos em lar abonado, devendo ter feito de tudo para repartir as benesses do nascimento afortunado com os pobres. Ao invés disso, tornamo-nos ásperos e mesquinhos.
Como é que, agora, sabemos reconhecer a falta de virtude, sendo que nada que dissemos indica a possibilidade de termos tido esclarecimento?
Pois aí está a parte triste da história. Nossos pais eram criaturas piedosas e tudo fizeram para que absorvêssemos os princípios religiosos da fé católica. Sabíamos, desde pequenos, recitar de cor o catecismo e tínhamos noção exata dos deveres morais do bom cristão. Não era crível que pudéssemos perder-nos com tão suave tratamento. Tudo possuíamos: dinheiro, inteligência, conhecimento e, no entanto, fomos incapazes de perceber que deveríamos aplicar o capital em favor do desenvolvimento da capacidade de amar. Conhecíamos a doutrina teológica e sabíamos que haveríamos de praticar a fé, a esperança e a caridade, virtudes essenciais para o bem espiritual, no entanto, azedamos a massa através de levedação impura, conforme chafurdávamos cada vez mais nos vícios.
Durante mais de trinta anos pudemos refletir a respeito disso tudo. Pode parecer muito para quem estiver lendo, mas pedimos que considere a esquematização da escrita como necessária para que passemos os pensamentos, embora não seja este o método mais eficaz para demonstrar os sentimentos e os sofrimentos que nos atenazaram a consciência culpada.
Adentramos a vida em condições de inferioridade moral; dela saímos em estado muito pior. Evidentemente, estamos falando de modo genérico, pois tememos adentrar profundamente em cada acontecimento que, de per si, falaria em desfavor de nossa compostura atual. Chegamos a praticar diversos crimes, mas estamos inteiramente cônscios desses males e da necessidade que tivemos de expiação. A isenção emocional de hoje não diz dos tremores infernais que sentimos. Quem já se sentiu impaludado, com febre terçã, sabe que os frios da desesperação são terríveis de suportar, a ponto de tornar o indivíduo variado, em vias de enlouquecimento. Após, entretanto, a aplicação do quinino, a malária vai cedendo, os tremores vão diminuindo e o bem-estar que se sente não demonstra toda a angústia da crise. É por isso que já não nos estamos demonstrando aflitos; é que o mal maior passou.
Acreditem em nós e saibam que o plural que estamos utilizando não se deve de fato à nossa modéstia: é que falo em nome também de outra criatura que comigo tem partilhado todos os sofrimentos, desde o rompimento do invólucro carnal. Generosamente, o Senhor nos possibilitou rigoroso amparo de um para com o outro. Sofremos juntos a angústia do suicídio. Tivemos de nos amarrar um ao outro, acorrentados pelo destino. Não que fôssemos amigos no plano da espiritualidade. Na vida, tivemos a idéia da desfeita ao Senhor em conjunto. Sabíamos que se tratava de pecado capital e que iríamos ser punidos com as chamas infernais. Mas desafiamos, ainda assim, tudo o que nos haviam ensinado na Igreja Católica.
Seria imensamente tedioso ficar expondo todos os pensamentos que nos assaltaram durante este período de loucuras e de dor. Basta que se compreenda que não houve firmeza na concepção do mundo como criação de Deus e nos atolamos no lodaçal da amargura e das acusações, quando da descoberta de nossas fraquezas.
O amparo que agradecemos a Deus, aquele que dávamos um ao outro, era o das lágrimas pelo esclarecimento que nos proporcionávamos das extremamente infelizes condições a que nos víamos rojados.
Neste instante, somos capazes de definir os erros e somos capazes de suportar um ao outro, sem saber bem o que fazer para restaurar os princípios saudáveis para merecermos novo encarne.
Querem saber se não nos importaríamos de nos separar. Por mim, tudo bem, embora vá sentir alguma saudade, pois me afeiçoei a esse ser, já que não nos foi possível atar relações de amizade com mais ninguém, desde que nos vimos perdidos nas cavernas do Umbral.
Sabemos que devemos ter recebido ajuda externa, pois ouvimos, muitas vezes, vozes amigas a recitarem preces por nós, mas nunca conseguimos retirar-nos do estranho mundo por onde perambulávamos em busca de algum refrigério para o sofrimento. E esse era o motivo das divergências, pois, enquanto um queria ir para um lado, o outro o arrastava para outro. E isso perdurou por longos anos. Hoje, as cadeias da corrente estão rompidas e conseguimos estar afastados por algum tempo, sempre voltando a nos encontrar ao ouvir o apelo do companheiro. Mas creio que, se for esse o preço que deveremos pagar pela recuperação, estaremos de acordo quanto à separação.
Temo que a exposição não tenha deixado rastro claro que se possa percorrer para nos reconstituir a vida. Mas fiz de propósito não citar passagens da vida conjunta, pois não quero ofender de novo o amigo, para não revoltá-lo. Sei que faria o mesmo por mim. Peço, portanto, aos irmãos que me perdoem se me furtei à curiosidade dos que desejariam conhecer melhor o nível de nosso relacionamento, para poderem extrair algum ensinamento que lhes serviria de alerta, para não caírem na mesma armadilha, em sua conjuntura de vida.
Apenas como indício, devo dizer que tudo se fundamentou em profundo amor homossexual, o que não teria sido nada perverso, se não fosse baseado em profundo egoísmo e em louca animadversão por tudo o mais santificado que existe no mundo, especialmente a formação de um lar em que se pudesse dar guarida a outras entidades que, agindo como o fizemos, ficaram na expectativa frustrada do atendimento.
Qualquer desenvolvimento que venha a executar relativamente a possíveis considerações de caráter espiritual iria obrigar-me a estender-me largamente, portanto, peço que me liberem do peso das más recordações, permitindo deixar o escrevente livre para as tarefas domésticas.
Tenho vergonha de confessar os crimes, os pecados, a péssima formação. Extremamente vaidoso, jamais me permiti qualquer censura, acusando, antes, a sociedade pela incompreensão do nosso enlace sentimental. Só agora, depois de tanto sofrer, é que me deixei levar pela fantasia, uma vez que, estando aqui a confessar-me, imaginei algo como que acontecido com outras pessoas, para poder manter-me lúcido e equilibrado.
Ocorreu-nos que poderíamos volver à Terra, sem o peso da homossexualidade — perdoem-nos os leitores que passam por esse crivo moral —, para formarmos lar poderoso moralmente, onde pudéssemos refazer os sentimentos que nos prenderam, de forma mais consentânea com a moral vigente, dando a outros seres a oportunidade de volverem à luz para a realização de planos de recuperação e progresso.
Relendo tudo o que escrevi, achei que não fui feliz nas expressões que utilizei em relação ao meu amigo. Por isso, gostaria que oferecessem a ele também a oportunidade de manifestar-se, pois acredito que irá expor o seu lado do nosso sofrimento mútuo, de forma mais correta e elucidativa.
Peço-lhes perdão e me proponho a orar a prece dominical, para demonstrar que sou temente a Deus e me ofereço ao sacrifício pessoal, se isto for proveitoso para o meu amigo.
Vejo que não está por perto, mas será só chamar pelo nome, dizendo que estou aqui, que comparecerá em seguida.
Como é que não vem? Será que se dispersou pelo mundo ou vocês estão a me esconder algo terrível? Ele me acompanhou até chegarmos aqui, tendo ficado sentadinho durante boa parte do tempo. Não estará ao lado de outro médium, levado pela equipe? Pois gostaria que me elucidassem o mistério, pois o amigo a quem tenho atormentado com minhas vibrações está suspeitando que, desde há muito, tenho vindo criando a imagem daquela criatura com quem partilhei as fugazes alegrias terrenas. Pois estou a querer até acreditar nessa possibilidade, pois tudo o que dizia era repetido por ele, automaticamente, quando era possuidor de forte personalidade, tanto que foi quem me induziu ao suicídio.
Vejo que minhas palavras estão perdendo-se no vácuo, tendo sido só pequena parte transposta para o papel! O amigo não é mais capaz de ficar inteiramente à disposição. Sinto-me volver ao estágio de sofrimento das trevas. Cuidem de mim, pelo amor de Deus!




Comentário



O assistido precisa de atenção redobrada do grupo. Toda a harmonia espiritual que tinha criado, com base em elaboração fantasiosa, fundiu-se, de repente, e a angústia do passado volveu a sufocá-lo, não tão intensamente quanto quando estava perdido no espaço, mas, com a perturbação da consciência, evolou-se o sustentáculo que o mantinha coerente, a partir do raciocínio de que estava destinado a recompor a existência por meio do encarne que pleiteava.
Evidentemente, a complexidade dessa personalidade extrapola as linhas definidas na exposição, de sorte que é preciso caracterizar a etiologia dos males que lhe produziram as feridas que mencionou de início.
Cremos que a curiosidade do amigo leitor vá ficar insatisfeita, pois o que nos traz a este trabalho é a esperança de auxiliar na restauração perispiritual dos sofredores. Quanto ao assistido, pensamos ter-lhe oferecido condições de reflexão adicional, para elucidação do ponto crucial de sua saga, qual seja o de que a imaginação deveria finalmente ceder diante da realidade.
Oremos, irmãos, pelos que fantasiam a existência, sonhando poder concretizar amores, quando só vestem os egos supervalorizados com os trajes da vaidade e da presunção de superioridade.







31

PENITENCIO-ME





Quando para aqui fui conduzida, não esperava receber tanto influxo de amor e consideração. Sempre me julguei superior aos demais e nunca admiti pertencer ao grupo dos infelizes. Até mesmo nas sombras, em meio a tanto sofrimento e dor, até ali, por entre as imundícies dos criminosos, sentia-me orgulhosamente acima dos demais, pronta para merecer, de um momento para outro, o influxo da benemerência divina.
Desde logo, é preciso que diga, pensei estar sendo injustiçada e, quanto mais demorava o momento desta redenção, mais afirmava, de mim para comigo mesma, que Deus era o protetor dos imbecis e dos bajuladores. Tal disposição moral me conservou por inúmeros anos junto às mais execráveis criaturas do báratro. Pelo menos era assim que via o fato de ter de aturar as inconveniências dos seres que comigo habitavam aquelas tenebrosas regiões.
Às vezes, eram pinçados alguns elementos e eu julgava, erroneamente, que nada tinham feito para produzirem reações de benemerência. E isso ainda mais me enchia de ódio e desesperação. Xingava, abertamente, a providência divina e fazia minha vociferação repercutir pelas escarpas mais elevadas das montanhas, de modo que o eco de minha voz atingisse e comovesse quem estivesse encarregado de conferir os desígnios do Senhor.
Tudo isto parece fabuloso, contado sem as luzes da intelectualidade abalizada dos literatos. Em outros tempos, até me atrevia a burilar o estilo, para aproveitar-me dos recursos que me estão à disposição; hoje, porém, fico feliz só com o fato de poder demonstrar o quão injusta fui para quem tudo me proporcionou.
Sabem como é que consegui ascender até aqui? Pois foi com a simples pronúncia de pequenina prece, dita no fundo da minha alma:
"Senhor, tende piedade de mim!"
No começo, dizia todas as orações conhecidas: o pai-nosso, a ave-maria, as ladainhas que acompanhava na igreja, vários responsórios consagrados a diversos santos, especialmente a Santo Antônio, a quem me consagrei durante a vida. Tudo, porém, era dito sem devoção, como a cumprir simples ritual capaz de atrair a atenção divina sobre mim. Orgulho puro de quem passou a vida a renegar ajuda a quem quer que fosse bater à minha porta.
Pode parecer, pelo espírito de revolta e pelo local a que fui atirada, que perpetrei os maiores crimes. Jamais! Eu até que cuidei com razoável boa vontade de minha família. É bem verdade que não me interessei muito pelo progresso de ninguém, sempre preferindo ficar batendo papo pelas esquinas a realizar as tarefas rotineiras dos trabalhos domésticos. Se podia fugir, fugia, deixando tudo sob o encargo das cunhadas, da sogra ou até das filhas, quando estava velha e caducava, de olho em que os meus transes terminassem quando tudo estivesse guardado nos devidos lugares.
Jovenzinha, gostava de ler as revistas em que se descreviam as vidas das personagens famosas da época, pessoas endinheiradas que podiam ostentar vantagens e poder. Eu era reles filha de pais pobres, que lograra casar-me com pessoa remediada, mas infeliz, porque me recusei a compartilhar dos serviços, querendo, antes, obter as regalias do bem-estar. Ainda assim, dei à luz a três belas garotas, que foram o amparo de minha velhice.
Naquele tempo, achava que cuidavam de mim para ficarem com as propriedades que, viúva, herdei de meu marido. Hoje, vejo que não tinham nada mais para fazer, pois as três permaneciam solteiras, acusando-me intimamente pela culpa de suas desditas, pois lhes interferi demais nas vidas, prendendo-as junto a mim, no intuito claro de ter quem me desse amparo, no desespero de ter de vir a trabalhar na velhice, o que jamais fizera durante toda a vida.
Realmente, fui mesquinha a esse ponto. Só após doze anos de martírio, contudo, é que percebi a maldade que se insinuara em meu ser. E aqui estou para receber esta bênção de amor e consideração. Prometo melhorar e permito a que me submetam a qualquer teste, para que me possam avaliar direito as intenções.
Pedem-me para contar a respeito do episódio da morte de meu marido. Eis o que mais temia, pois foi crime de sangue que ocorreu. Não puxei o gatilho da arma que lhe levou a vida, mas foi por minha influenciação que meu amante executou o infeliz, planejando imitar latrocínio. Bastou, no entanto, ter realizado o crime, para eu dar com a língua nos dentes, mandando-o para a cadeia. É que havia prometido dar-lhe parte das posses, mas era mentira; o que eu queria era ver tudo passado para o meu nome e das minhas filhas. Com isso, afastava os familiares de meu marido, pois tudo estava em seu nome e no meu, pois nos uníramos com comunhão de bens. Fiz tudo para parecer acidente, mas não deixei de apontar o autor dos disparos, fazendo-o acreditar que sua descoberta havia sido feita pela perícia policial. Fiz ainda mais: prometi ao pobre presidiário que cuidaria bem de tudo para dar-lhe quando saísse da cadeia.
Entrementes, passei nos cobres o que consegui do inventário, inclusive as posses que passariam para as meninas e me mudei de cidade, escondendo-me para sempre do criminoso, que jamais me encontrou.
Eis minha real história, já que, para efeito de atendimento, estou sendo levada a ser completamente sincera. Já muito sofri para deixar de atender aos reclamos da benemerência, só que acho que Deus não faria isso com os filhos pecadores. Esta exposição de minha maldade é, de fato, verdadeiro acinte em relação aos infelizes que comparecem para o ingresso no paraíso.
Estão a me dizer que não haveria necessidade alguma de contar os fatos; bastava demonstrar as intenções. Dizem-me para que reflita sobre o que disse acima, pois pode parecer que esteja sendo forçada a humilhar-me, quando o que se requer é simples compreensão para a necessidade da exemplificação dolorosa, para o alerta às pessoas que estão em vias de procedimento indigno e oneroso em relação à salvação.
Senti o sermão penetrar-me na alma, não tanto pelas palavras mas pelo sentimento que me veio de estar ainda com o velho hábito de acusar os outros pelos males que eu mesma realizei. Se não tivesse agido tão mal em relação às pessoas do meu convívio, por certo não teria passado por nenhuma situação constrangedora. Reconheço que, verdadeiramente, estou a merecer as recriminações e a exposição à execração pública. Se os amigos me tivessem poupado, com certeza eu mesma não me pouparia. É melhor assim.
Não estou dizendo isso da boca para fora para me livrar da vergonha pelo método da falsificação das reações, de molde a induzir ninguém a ter pena de mim, para me afastar logo deste local de torturas. É do que vem a seguir que tenho horror, pois, se relatar todo o mal que pratiquei na vida, aí sim terei a desconsideração de todos, pois me julgo monstro a...
Ainda bem que me fizeram desviar os pensamentos para outra linha de rememorações e considerações. É certo que estive bastante ligada à Igreja Católica, ao final da vida, e que contei tudo o que fiz ao padre, para receber o perdão de Deus. Dizia-me o confessor que deveria deixar de atormentar-me pelas maldades em relação à família de meu marido, que deveria estar bem no paraíso, que minhas filhas iriam herdar finalmente as propriedades, que a minha sogra e as minhas cunhadas estavam bem arranjadas com suas famílias, que eu só precisava rezar algumas preces — e foi aí que decorei os responsórios e demais ladainhas —, que precisava dar esmolas para a construção da igreja e para a manutenção dos sacerdotes, o que fiz, contando as quantias para não exagerar. O que pretendia era comprar o céu, que me foi prometido muitas vezes, até no momento da extrema-unção, quando estava bastante lúcida, com o terço na mão, fingindo agonia que, na realidade, nada tinha de desesperadora, pois as dores tinham desaparecido, mercê da morfina que o médico vinha aplicando há vários meses, porque o câncer me havia comido as vísceras e atacado todo o organismo.
Penso não ter mais nada para expor. Peço só que me perdoem as más palavras e que orem por mim, pois estou muito cansada de carregar tanto peso na consciência. Dizem que Deus só dá a carregar o fardo que o indivíduo é capaz de suportar. Mas exagerei e sobrecarreguei-me de culpas e quase não estou agüentando minha própria insensatez. O escrevente não quis escrever imundície, preferindo insensatez; mas não me perdôo e ficarei estancada até que veja o termo devidamente registrado.
Como se vê, estou totalmente descontrolada e não percebo, inclusive, exatamente o que se está escrevendo. Peço aos amigos permissão para me retirar, pois acredito ter-me penitenciado pelos males que provoquei.
Adeus, irmãos. Fiquem na paz do Senhor e não se esqueçam desta irmãzinha infeliz!




Comentário



Fizemos questão de trazer alguém extremamente machucado por dentro, pelos atropelos de alma que se tem proporcionado, por ter descoberto que se tratava de ser orgulhoso, pretensioso e despótico.
Está claro que a irmãzinha, em boa parte da vida, esteve navegando em águas tranqüilas, pois obteve inúmeras comodidades. Havemos, no entanto, que reconhecer que, a partir de certo momento, por invigilância, se deixou empolgar pelas facilidades que encontrou em obter prazer fora do convívio conjugal. Com certeza se viu obsidiada por espíritos maldosos, dado que sua guarda permaneceu abaixada. O que nos estranha é o fato de não ter percebido que deu acolhida a essas entidades maldosas, que persistiram acossando-a mesmo depois do desencarne.
Esse é o mistério que deverá desvendar para poder refazer os laços com a existência anterior, pois ainda mantém a lembrança única da derradeira encarnação. Haverá, portanto, de realizar longa caminhada, em função da recuperação da verdade e da recomposição da condição de esclarecimento moral para reavivar as diretrizes existenciais, no sentido de equilibrar-se para novo encarne regenerador, uma vez que este último só trouxe acréscimo de débitos.
Será caso de difícil solução, se não for a irmãzinha ajudada por algum companheiro que lhe dedique amor e consideração, pois o respeito perdeu completamente em relação a todos os que lhe compartilharam a companhia. Iremos avaliar as condições do marido, para verificar se está apto para o socorro íntimo. Mas esta é providência ulterior ao tratamento de urgência de que necessita para sanar os prejuízos maiores que causou ao perispírito.
Estejam os amigos leitores especialmente atentos para os diversos aspectos da malícia feminina que conduziram a assistida em sua vida de equívocos e perdoem-nos o atrevimento das observações.
Fiquemos todos nas mãos de Deus, rogando-lhe misericórdia para todos nós, sofredores.







32

DESAFOGO





Um pouco mais e o liberamos por hoje. É bom sabermos que temos uma pena sempre disposta ao atendimento, de forma a concretizar o ato mediúnico, de maneira salutar para os amigos desencarnados.
Aos poucos, vamos aprendendo a manipular as energias, de forma que o trabalho vai apresentando-se cada vez mais promissor. Eis-nos aqui, hoje, para ditado curto, consentâneo com a promessa que fizemos da liberação do médium, que se sente fatigado por não ter tido descanso conveniente nestes mais de dois anos seguidos de psicografia.
Vamos ter de reavivar-lhe a memória, pois insiste em permanecer à disposição, mesmo que seja para ir escrevendo só que lhe extraímos do inconsciente, tudo a que está muitíssimo acostumado.
Ultimamente, os companheiros sofredores têm-lhe esgotado os fluidos, mas, mesmo assim, renitentemente, reiteradamente, insiste e persiste, inutilmente para os que desejam desviá-lo do mister, a oferecer-se para o trabalho.
Ainda há pouco esteve lendo obra que o interessou sobremodo. Por que não volta à leitura, deixando-nos à vontade para prosseguir no que vínhamos fazendo?
Os amigos que para cá nos trouxeram impacientam-se conosco, achando que estamos perdendo precioso tempo e excelente oportunidade para melhorar. Pois nós não pensamos do mesmo modo, já que muito aprendemos com as perturbações que provocamos nos médiuns, uma vez que ficamos sabendo que grandes santarrões eles são. Não encontramos jamais alguém de que pudéssemos dizer:
"Esse, sim, é um camarada superior, dotado das virtudes que apregoa."
O amigo aqui é metódico e volta sempre no mesmo horário. Agora, estamos sendo impedidos de prosseguir, pois nos dizem que é falta de civilidade tentar revelar as pequenas mazelas que fomos capazes de observar. Certamente, não primamos pela perfeição do procedimento, mas também não temos grandes responsabilidades diante do conjunto dos seres existentes.
Só de vez em quando nos vimos investidos de funções ou de cargos superiores, de modo que de nossas atitudes muitos dependessem. Devemos dizer que nos saímos relativamente bem, apesar de, a bem da verdade, por várias vezes, termos falido completamente, pois desejamos aproveitar-nos das condições favoráveis para lucros pessoais.
Vejam que estamos delatando-nos claramente, não porque quiséssemos mas porque o pessoal daqui não aceitou que nos disséssemos maus e, ao mesmo tempo, pespegássemos alguns safanões em outras pessoas. Disseram que não estávamos aptos moralmente, com o que devemos obrigar-nos a concordar.
A nossa malícia é muito superficial diante da forte argumentação que nos é apresentada, de modo que pouco irá sobrar para dizermos, a não ser contar casos, o que, de resto, nos parece absolutamente inócuo para os fins visados, com a iniciativa de nossa condução até este trabalho mediúnico. Sabemos das vantagens que os leitores poderão obter da exemplificação, mas achamos que existem casos muito mais significativos e interessantes. Insistem em que relatemos algo para bem caracterizar nossa atividade na última encarnação e que nos propiciou o fato de estarmos vagando sem rumo pela erraticidade.
Pois fomos meros açougueiro. Vendíamos partes dos animais e o fazíamos com bastante consciência de que o peso deveria corresponder exatamente às medidas oficiais.
Vemos que o mediador se mexeu na cadeira, interessado em saber se nos foi penoso reconhecer que a morte dos animais poderia onerar nossa expiação. Pois, para seu gáudio, podemos dizer que refletimos muito a respeito da alimentação carnívora, depois que vimos a nossa carcaça ser devorada pelos vermes.
Durante o encarne, jamais nos ocorreu que poderia haver algo de ruim em abater as diversas qualidades de animais comestíveis. Parecia-nos que tudo se estruturava de acordo com os princípios insertos nas leis superiores do Senhor. Nunca, portanto, nos sentimos diminuídos por estar constantemente com as unhas sujas de sangue.
O que nos magoou, no princípio da estada na erraticidade, foi o fato de termos deixado várias pessoas perecerem de fome no país, enquanto nos desfazíamos de muitas peças para obter lucro maior. Era assim que fazíamos lingüiça e que doávamos a pessoas de nosso relacionamento mas não cedíamos no preço às entidades que nos procuravam, dizendo que não tinham fundos suficientes para a compra das quantidades de que necessitavam.
Esse foi o nosso tremor: o de que deixamos de atender às pessoas. Não nos aterrorizou o fato de estarmos a manipular os cadáveres, embora, posteriormente, nos ocupasse o cérebro tal preocupação.
Se há correlação entre o nosso atraso de vida e o fato de termos desconsiderado esse aspecto da piedade e da misericórdia, não sabemos explicar. Vamos deixar isso a para os filósofos e os cientistas. Nós só sabemos que não nos dá vontade de retornar à Terra na mesma condição, pois sentimos uma como que repulsa íntima pelo que fizemos. Por certo, haverá meio mais eficaz de ganhar a vida.
Agora que estamos desenvolvendo estes tópicos, sem muita coerência mas elucidativos da personalidade, estamos adquirindo maior confiança. É interessante perceber o temor que se sente diante da novidade, bem como a segurança que nos dão estes irmãozinhos, pois a escrita vai aparecendo e não nos parece que os assuntos não apresentem importância, para quem deseje estudar os irmãos sofredores, segundo a atividade profissional.
O que está a estranhar o amigo médium — desculpe-me esta última referência às suas vibrações — é que lhe parece que está havendo contraste entre a rude função que exercemos com o jeito de nos manifestar, pois as frases lhe parecem estar bem concatenadas, a ponto de nos atribuir certa inteligência, certa facilidade conceitual. É que não fomos meros donos de açougue. No começo, sim, pois herdamos de nosso pai — meu irmão e eu — pequeno estabelecimento comercial. Mas expandimos os negócios, a ponto de estabelecermos rede de lojas, onde a venda de carne foi tornando-se até secundária. Mas o que me ficou mais fortemente impregnado na mente foi o período em que, pessoalmente, procedia ao corte dos animais, que eu mesmo escolhia no curral, uma vez que tinha acesso às fazendas dos pecuaristas.
É difícil para nós deixar de dizer que chegamos a possuir muitas cabeças e que fomos também criadores de gado de corte. Não pretendíamos tanto, pois parecia-nos que dificilmente se poderia chegar a tais revelações. De qualquer forma, respondendo à questão proposta pelo amigo, podemos dizer que cursamos uma faculdade, não tendo concluído o curso. De qualquer maneira, ficamos com o hábito das leituras e obtivemos verniz cultural, uma vez que não podíamos fazer feio junto aos demais fazendeiros, congregados para o desenvolvimento da pecuária. Agora, vemo-nos coagido a dizer que não voltamos para o etéreo tão inocentes. É que, por várias vezes, nos vimos à testa de empreendimentos grandes, incluindo frigorífico e industrialização da carne, onde desrespeitamos os direitos dos empregados, recebendo a maldição de muitos deles, pela ferocidade com que os tratávamos.
Não vemos como este escrito tão irregular vá poder servir de exemplo do que se não deve fazer na vida, mesmo porque são pouquíssimos os indivíduos em nossas condições, pois nós mesmos nada líamos que viesse do espiritismo. Sendo assim, pretendendo fugir ao desgaste das rememorações inúteis, solicitamos a comiseração deste povo, para que nos seja permitido sustar a nossa participação.
Sabemos que estamos endividados e prometemos compor-nos diante das recriminações que nos serão feitas, mas não gostaríamos de correr o risco de sermos reconhecidos pelos mortais, cujas péssimas vibrações nos perseguiram na erraticidade.
Pedimos, humildemente, perdão pelo transtorno que provocamos e reafirmamos que não somos superiores, deixando de manter, contudo, a afirmação de que não conhecêramos ninguém que merecesse consideração. Várias pessoas vimos atuando com amor, só que nos causavam profunda inveja. Por isso é que não nos púnhamos em condições de análise de sua verdadeira personalidade.
Outro ponto que temos a destacar é o fato de que não fomos tão puro e ingênuo quanto a descrição de nossa personalidade possa fazer supor. Houve crimes e haverá castigos. Eis tudo.
Para encerrar, devemos dizer que o título que demos a este escrito foi-nos sugerido pelos irmãos que estão a nos amparar, mas que, neste momento, passa a ter significado forte para nós, pois nos sentimos bastante desafogado das pressões mentais que sentimos desde que viemos para este lado, há bons anos passados. Querem que definamos o número deles, mas para nós esses quatro anos pareceram quatro séculos.
Fiquem todos com o Senhor e saibam que muito agradecemos o incentivo que recebemos para reformular a maneira de pensar. Estão a nos dizer que muitos quatro anos passarão até que nos compenetremos da verdade do Cristo, mas que, se nos esforçarmos por compreender a existência, poderemos abreviar o tempo da mesma forma que nos pareceu estender-se indefinidamente. Tudo o que ocorre, dizem-nos, está em função do que se passa dentro de nós. Muitas vezes, refletimos a respeito disso, mas só agora parece que tais pensamentos estão a ganhar sentido.
Oremos, amigos, em conjunto, para que tudo se realize segundo a vontade do Senhor.




Comentário



O assistido não nos apresentou, de fato, qualquer novidade marcante de caráter, à vista das atividades na vida. Entretanto, pedimos vênia para lembrar aos leitores que as atitudes foram determinadas pela norma de conduta mais habitual entre os encarnados e que, nem por isso, chegou ao nosso lado em condições de receber, de pronto, a assistência dos socorristas. Estamos a afirmar que nem sempre o que parece acertado e justo entre os mortais é o que se lhes requer do ponto de vista evangélico.
O drama do amigo passou por diversas etapas, terminando pelo reconhecimento das próprias falhas. Quanto não adiantaria na caminhada, se lhe fosse dado à consciência reconhecer antes os péssimos atributos da personalidade, a tempo de reformulá-los. É esse o nosso objetivo maior com os exemplos de procedimentos irregulares que temos deixado registrados.
Oremos, com o irmãozinho, solicitando ao Senhor que se façam as luzes nas mentes, em momento propício para o conhecimento das falhas e dos meios de corrigi-las. Ergamos a Deus súplice pedido de misericórdia, mas empenhemo-nos, por nosso turno, em proceder de forma a demonstrar que estamos sinceramente interessados em palmilhar o cominho do Senhor.







33

O CRIME NÃO COMPENSA





Rapidamente, o homem pulou o muro de volta para a rua, crente de que o que fizera não fora observado por ninguém, àquela hora da noite. Fora esperto em escolher casa rica e vinha com os bolsos cheios de dinheiro e de jóias. Tomaria o mesmo cuidado em gastar e não se exporia diretamente, pois era hábil o suficiente para desfazer as jóias, aproveitando o ouro separadamente das pedras preciosas. Tudo estava perfeito em sua mente.
Mas os dias se encarregariam de provar o contrário. As investigações policiais deram como resultado seu próprio nome, pois foi encontrado um fio de cabelo e a polícia foi sagaz o suficiente para, através dele, descobrir o verdadeiro autor do crime de morte necessário para manter em sigilo a identidade do assassino. É que o poder econômico da família da vítima exigiu que se conseguisse exame químico e espectral, de forma a conduzir as investigações em direção ao DNA do criminoso, exame invulgar e caro, mas realizado sob os auspícios de equipe perfeitamente treinada. Reconhecido o caráter do DNA, restou estabelecer a comparação com os padrões existentes em todos os indivíduos suspeitos da população. O trabalho seria insano se não houvesse banco de dados fornecido pela Marinha, cidade portuária em que habitavam as personagens de nossa história.
Um belo dia, batem-lhe à porta e o prendem, sem que pudesse esboçar qualquer reação.
Eis história simples que causou hilaridade entre diversas pessoas com crimes absolutamente impunes. Achavam miraculosa a descoberta do autor do latrocínio e riram muito da ingenuidade do famoso moralista e pregador que propunha que os crimes são sempre passíveis de elucidação, dizendo que não compensariam e concluindo pela virtude como arma superior, para enfrentamento das dificuldades da vida.
Pois o tempo passou e tudo caiu no esquecimento. Aos poucos, os indivíduos foram envelhecendo, adoecendo e partindo para seu destino irretorquível. Ao irem chegando do lado de cá, eram recebidos pelo pastor itinerante que se interessara nas possibilidades técnicas da investigação criminal. Sem que pudessem esboçar reação, eram catalogados pelo espírito irmão e encaminhados para instituição de recomposição energética perispiritual, independentemente de sua vontade, pois a boa criatura estava de posse de alvará dos espíritos superiores para a suspensão temporária dos direitos de livre iniciativa da parte daquele grupelho.
No ambiente sagrado do instituto correcional, foram mantidos em estado sonambúlico até que todos se vissem reunidos novamente, momento em que lhes foi colocada na frente uma tela branca, sobre a qual se projetaram as histórias de seus crimes, extraídas diretamente das consciências das vítimas. Dentre eles, havia esperto ladrão, que jamais foi apanhado por qualquer pessoa no ato mesmo do furto. Pois aí não se apertaram os investigadores do etéreo, que puderam expor minucioso relato de todas as atividades, pois lhes foi permitido vasculhar a memória do infeliz.
Após o despertar para a realidade das ações, o nosso amigo reproduziu a historieta, deu voz de prisão a todos, transformando o sagrado recinto em perfeita cadeia, com todos os requisitos de segurança dos mais modernos presídios.
Era tal o estado de desolação das criaturas que nem sequer foram capazes de imaginar os recursos utilizados para o efeito da elucidação de todos os crimes nem que a realidade do local em que se encontravam era bem diferente daquela que lhes foi mostrada. Aí se desfez a ilusão e foi dada permissão para se recomporem mentalmente, ficando livres para prosseguirem em sua existência, segundo os critérios que haviam aceito como padrões ideais de procedimento. Enfim, viram-se de novo donos do destino.
Este que vem narrar a história completa pertencia a esse grupo, tendo sofrido na alma todas as vicissitudes causadas pela superabundância das provas. Depois da soltura, elaborei todos os capítulos da longa novela de minha vida, para submeter à apreciação dos chefes das diversas organizações espirituais a que tenho acesso, segundo meu poder vibratório. Eram indivíduos maus e não foram capazes de compreender o alcance das palavras.
Corri de ceca em meca e jamais obtive sucesso, até que me compenetrei de que todas as frustrações só terminariam se desse ouvidos às palavras do pregador, que havia desprezado. Saí em busca das vítimas e convenci-as todas a me perdoarem, pois também eram pecadores e, se não perdoassem, não haveria como obter o perdão de ninguém. Logrei êxito nesta tarefa, mas precisei acrescentar alguns capítulos mais à história, o que a tornou inviável para ser contada de uma só feita. A história adquiriu muita substância, pois houve necessidade de demonstrar todas as causas emocionais, sociais e psicológicas que levaram cada criatura a estar justamente naquele local em que as encontrei, para vitimá-las de acordo com meu instinto assassino.
Em suma, para não cansar o leitor, ao me deparar com este grupo de irmãos que se dispuseram a editar o meu atrevido gesto, uma vez que me reconheço muito pobre intelectualmente, fui obrigado a reduzir tudo aos aspectos mais significativos, tendo de acrescentar este ponto novo no próprio evento em desenvolvimento, sem supor o que irá ocorrer daqui para frente.
De tudo o que disse, a realidade é que fui apaniguado com a atenção de certo indivíduo que me fez a demonstração de meus verdadeiros crimes, que julgava terem ficado no esquecimento da carne, através da morte. Até a historieta do pregador e das investigações é falsa e pretensiosa, pois imaginava que, dando a forma de narrativa impessoal ao drama de minha vida, iria escapar da análise espectral da consciência. Para isso, abri a mente ao irmão escrevente e, sem lhe pedir licença, fiz com que me fornecesse alguns elementos para a composição do ato psicográfico. Vejo que não me dei bem, pois, do mesmo modo que pude conduzir-lhe a pena pelos caminhos que determinei, fui induzido a repetir as cenas que descrevi, no sentido de demonstrar que havia muita incoerência, em função de não ter havido tempo para os indivíduos se compenetrarem de suas condições morais inferiores, uma vez que a metodologia da descoberta dos criminosos pela análise de seu DNA é recentíssima. Por outro lado, a apresentação do banco de dados da Marinha é indício de inverossimilhança, uma vez que não há nada nessa instituição que possa favorecer a pesquisa policial.
Sinto muito, pois pensei que pudesse despertar a consciência das pessoas, da mesma forma que fui despertado para a minha. Achava que estariam cansados das histórias das trevas e julguei que pudesse deixar de oferecer a negritude de minha alma à observação dos curiosos.
Dizem-me que não havia necessidade de nada disso, bastando chegar aqui e dizer que me arrependia, sem citar os fatos, propondo-me a trabalhar pelos irmãos que havia ferido. Sinto que a lição não me tenha chegado antes. De qualquer forma, pretendo deixar tudo escrito do jeito que está para servir de modelo a outros seres que tenham a intenção da malícia. Evidentemente, se não concluir dizendo que o crime não compensa nunca, não me verei contente. Pois aí está a história deste espírito sofredor. Fiquem, amigos, nas mãos de Deus e rezem muito por mim e por todos os irmãos impenitentes que estou a ver neste grupo.
Gostaria de ficar mais um pouco para dizer que o título que quero ver no frontispício é O crime não compensa, como já intuiu o irmão escrevente. Até mais ver, quando pretendo trazer algo mais substancioso.
Não querem que me retire sem que agradeça a boa acolhida e sem que ore em conjunto com o grupo a prece do pai-nosso. Pois, irmãos, devo dizer que venho fingindo estar de bem com a vida, pois julgava que as minhas emoções eram domináveis. Agora que me colocam diante de Deus, sinto-me tremer de medo, pois a relação de meus crimes é muito grande, tendo ficado muito tempo na escuridão para saber que dificilmente me controlarei, a ponto de atender à solicitação da prece.
Em todo caso, tenho boa vontade e me disponho a ouvir a turma em silêncio. Estendam-me as mãos em sinal de compreensão e iniciem a oração, que devo repetir por minha vez. Aguarde-me, irmãozinho, que pretendo voltar a escrever...

Agradeço muito a prece que o irmãozinho disse por mim e lhe peço desculpar-me terem minhas vibrações perturbado a sua emoção, a sua dignidade, pois não me foi permitido desvincular-me do ato mediúnico, sem que deixasse bem expressa esta parte dos trabalhos, como exemplo aos leitores do que possa ocorrer a quem esteja com o coração limpo, atendendo aos irmãos sofredores. É que o médium esteve bastante perturbado durante seu momento de reflexão e recolhimento, incapaz de prestar atenção profunda nas palavras da oração, embora todas as palavras lhe brotassem do coração. Não sou a pessoa mais indicada para realizar este tipo de comentário, mas estão obrigando-me a perceber os males íntimos que causo às criaturas com o vezo de querer ver prevalecer minhas opiniões, em viva demonstração de que muito tenho de melhorar para provocar o inverso da reação, ou seja, o de tornar as pessoas que se encontram em litígio moral mais assentadas e dignas, de forma a torná-las afáveis à benemerência. Mal ou bem, recebendo ajuda, dei o recado que me pediram, devendo agora refletir profundamente a respeito desse tema, pois a lição foi dada mas não aprendida.
Envergonhado, deixo o local, propondo-me a trabalhar pelo meu crescimento, no sentido de dar às vítimas de minha inconsciência a tranqüilidade de poder ver em mim provável protetor.
Fiquem todos sob o amparo de Deus!




Comentário



Não há muito a acrescentar às palavras do irmãozinho, no intuito da elucidação dos fatos. Não vemos necessidade de explicações, pois empenhamo-nos em fazer com que tudo dissesse, uma vez que se manifestou acessível à influenciação. Aos leitores advertimos para o modo enviesado com que se manifestou, de sorte que haverá precisão de enérgico exercício para a compreensão exata dos mecanismos psíquicos que determinaram os princípios de sua comunicação. Mas não é difícil de perceber que havia chegado ao ponto do arrependimento, apesar da invencível vergonha de descrever seu estado caótico, uma vez que não se desligou da vaidade e do egoísmo.
Há casos em que a desfaçatez da narrativa ultrapassa os limites da compostura, quando os assistidos pretendem deturpar a sua presença, pelo terrorismo e pelo engodo. Em outros, há maliciosas apreciações de compreensão da realidade, apesar da falsidade que transparece em cada palavra ou entonação. No caso em pauta, o amigo supôs que pudesse enfrentar o desvelamento da realidade através de sua superioridade emocional relativamente ao tônus que se via necessitado de manter diante do fato mediúnico. Mas as vibrações o traíram, de maneira que deu no que vimos. Esperemos em Deus que venha a se restabelecer em breve, a tempo de vir a tornar-se protetor de alguns companheiros que permanecem encarnados.
Fiquem na paz do Senhor!







34

PEQUENOS-GRANDES DÉBITOS





Esta irmã que vem apresentar-se para o tratamento sabe qual é a função do relato verdadeiro que lhe é pedido, para que o trabalho a realizar-se possa vir a ser o mais eficaz possível. Não foi uma só vez que estive acompanhando estas sessões em que as pessoas relatam suas vidas para receberem em troca influxos energéticos capazes de recuperá-las para a luz.
Não compareci antes por achar que minhas dívidas eram inexpressivas e, por isso, passíveis de superação sem este tratamento mais intensivo. Entretanto, como o tempo está passando sem que meu estado se recomponha pela forma que pretendia, resolvi atender ao chamamento dos irmãos socorristas, apresentando-me.
Informei-me exatamente o que se pretendia de mim, tendo eles dito que só boa vontade e disposição para firmar o compromisso de acompanhá-los para instituição de benemerência, onde se exige disciplina e força de vontade para suplantar os verdadeiros horrores que se instalaram no fundo do coração, por causa do remorso pelos fatos que contrariaram as normas do bem viver, especialmente os relativos às demais pessoas do meu convívio.
Sendo assim, não será difícil referir-me a mim mesma como pessoa mediana em tudo: nos desejos, nas aspirações, na inteligência, na capacidade de realização, não me tendo destacado em nada na vida. Agi em concordância com as diretrizes sociais e não ofendi as leis em nenhum grave tópico que me visse às voltas com a polícia, principalmente porque, sendo do sexo feminino, não tendo necessidades financeiras, pude levar a vida de mansinho, formando no lar na companhia de meus pais e, depois de casada, regularmente, em conjunto com o esposo e os filhos.
Houve uma época em que freqüentei a igreja evangélica, mas não gostei da companhia daquelas pessoas, porque exigiam de mim certa postura física que achava pouco inteligente. Não me deixavam usar pintura nem calças compridas, cortar o cabelo e coisas assim. Eu não estava habituada com essas restrições e, no começo, fingia atender, mas sempre que precisava comparecer a alguma festa, punha batom e ruge e rezava para não encontrar ninguém conhecido. Na verdade, consegui fazer passar alguns anos assim, até que houve a necessidade de me arrumar um pouco melhor e, aí, cortei os cabelos. Na festa, foi tudo bem, mas, ao regressar, não deu certo a trança que pretendi fazer, de modo que perceberam que estava fingindo e me acusaram de estar em pecado contra Deus.
Não via maldade naquilo e, quando o pastor me disse para voltar ao templo só depois que o cabelo estivesse comprido, achei que estava havendo abuso de autoridade e nunca mais compareci à assembléia para rezar. O meu pobre marido, contudo, no começo, ficou muito atrapalhado, porque me havia pedido para não ir à festa e depois sofreu muito por me ver de cabelo curto. Quando inventei a trança falsa, se pôs a chorar, pedindo que não fizesse isso, que seria a sua desonra. Mas deu no que deu e até que achei bom, pois minhas filhas não gostavam de se ver de vestidos compridos, já que desejavam freqüentar a sociedade dos pescadores. Mas isso escondido, pois as infelizes não tinham condição de reclamar.
Aí tentei levá-las comigo, pois a vida em casa foi tornando-se um inferno. Não que o coitado do infeliz me atirasse qualquer palavra de desagrado; mas é que seu silêncio me dizia que não estava contente em ter de conviver com uma pecadora. Resolvi sair e levar os filhos, mas se opôs, dizendo que estava arruinando-lhe a vida e que não tinha mais a perspectiva de ir para o céu. Para resumir, arrastei as duas mais velhas comigo e nunca mais pude ver os três mais novos. Um dia, fiquei sabendo que se juntara a outra crente da comunidade, a qual estava esperando filho. Não me magoei com isso, mas rompi a proibição de me encontrar com os mais novos, só que não consegui arrastá-los comigo, pois estavam de cabeça feita. Disse uns impropérios contra o covardão, como achava que era na época, e nunca mais me preocupei com as crianças.
A minha teimosia, contudo, não me favoreceu. Eu, que tanta falta sentia das festas, acabei cansando-me de aturar as pessoas mais jovens e tive um triste fim, na companhia de um senhor que se atreveu a levar-me para viver com ele. Não era a mesma taciturnidade do anterior, mas a alegria era barata; não se falava em outra coisa senão em que o time venceu o jogo, ou se bebia até se embriagar e outras discussões tolas, com ameaças de pancadarias.
Minhas filhas, quando viram que ia perdendo-me nas orgias da matéria, pediram perdão ao pai verdadeiro e me deixaram sozinha junto ao grande mundo do pecado. Até que foi bom para elas, que conseguiram reequilíbrio e casamento frutuoso junto a trabalhadores pertencentes à seita que eu abandonara.
Certa feita, fiquei muito doente e estive à beira da morte durante várias semanas. No hospital, conheci pessoas bondosas que iam rezar pelos que estavam muito mal. Um dia, o padre me pôs na mão um terço com crucifixo e fiquei abestalhada com a necessidade que tinha de ouvir alguém dizer que Deus gostava de mim e que ia receber-me no paraíso. Naquela hora, achei tudo muito bonito, mas, quando me vi do lado de cá, recusei-me a acompanhar o anjo que foi buscar-me, com medo de ficar inutilmente gozando as delícias do céu, quando tinha cinco filhos que necessitavam de mim.
No começo, perambulei pelo etéreo, meio tonta, acreditando que jamais iria encontrar-me com aqueles que tanto amara. Não suspeitei que meus pais estivessem disponíveis para me receberem e, por isso, recusei-me a entender o que me diziam a respeito deles. Eu queria mesmo era acusar-me por ter perdido a vida, ficando absolutamente sozinha naqueles últimos anos. Não queria ouvir falar em nada; só me interessava em ir à procura de meus filhos, embora tivesse muito medo de me encontrar com meu marido, que sabia estar velhinho, na companhia da terceira esposa, pois a segunda faleceu no parto, não permitindo que lhe dessem o soro sangüíneo salvador. Morreu de religião mal administrada.
Mas não vou ser eu quem irá fazer a crítica da instituição cujos deveres e obrigações não fui capaz de suportar. Durante os primeiros tempos no etéreo, até que me voltava contra mim mesma, chamando-me de pecadora e irresponsável; mas, quando finalmente pude encontrar os meninos, aí fiquei mais tranqüila, pois percebi que rezavam muito por mim; não da boca para fora, porque foram proibidos pelo rigor da crença, mas no íntimo do coração, porque sentiam saudade. Esse sentimento tão puro causou-me muita dor, porque aí pude perceber quão estúpida fora ao trocar a companhia daqueles seres pelas ilusões do mundo. Apesar de tudo, entretanto, após ter sofrido bastante com esses remorsos, conforme disse no começo, aí foi possível reatar comigo mesma, de modo a poder aceitar o que os espíritos amigos me vinham dizendo há muito tempo.
Eis-me pronta para realizar as tarefas que me forem atribuídas, pedindo que acreditem na minha honestidade de propósito, esquecendo que um dia fui instável, não tendo sido fiel aos compromissos com a congregação religiosa. Acho que isso aconteceu porque cresci na fé católica e passei para outra religião, porque o rapaz que me convidava para sua vida era bonito e alegre. Depois que achei que deveria partir para o mundo é que se transformou. Parece que tudo está voltando à minha memória e as tristezas ameaçam dominar-me. Terei sossego algum dia?
Pedem-me para recordar-me das orações que repetia e para rezar convictamente, com o pensamento firme na bondade de Jesus e na presença misericordiosa do Pai. Se conseguir concentrar-me, devidamente, receberei aquelas vibrações a que fiz referência e serei guiada para o local do tratamento.
Sendo assim, peço aos irmãos que tenham um pouco de paciência, pois quero deixar registrado o meu agradecimento a todos e a este que vem reproduzindo-me a fala, orientando-me as expressões para que se coadunem com o meu modo de ser, de forma a tornar o mais honesta possível a manifestação. Devo dizer-lhe que muito do que escreveu tirei de sua própria cabeça, pois não me via segura para a comunicação pelo sentimento de temor que se apossou de mim. Vejo que me libertei e que consigo expressar-me desenvoltamente. É como quando saí da religião e me atirei nos braços da vida. Tenho a sensação da liberdade, mas não sei o que fazer com ela, pois não adquiri conhecimentos para demonstrar o valor do que estou sentindo. É demais complicado para mim, por isso acho que prefiro rezar a prece que me pedem, para receber as orientações que pretendo seguir à risca. Não me considerem desobediente por ter prolongado esta última etapa da conversa e aceitem forte e comovido abraço de agradecimento.
Ia dizendo o meu nome, mas me pediram para calar-me, pois não é bom que seja investigada por alguém que possa ter-me conhecido. Aceito a recomendação e encerro a minha parte.
Fiquem todos com Deus, em sua paz e amor!




Comentário



A irmãzinha deixou de narrar alguns eventos mais fortes que a obrigaram a permanecer no etéreo, durante os doze anos que intermediaram o momento de sua morte, até que lhe foi possível rever a família. Não seremos nós quem irá desvendar o mistério, mas não podíamos deixar de passar a informação, para não se crer que a só decisão de abandonar a religião ou a família possam ter as graves repercussões do tremendo remorso que a corroeu. A justiça de Deus não é cega como a dos homens, no sentido de ferir a quem não vê. Tudo o que nos ocorre, em qualquer fase da existência, está correlacionado às atitudes e pensamentos. Por isso, é bom não se iludir com o fato de se estar seguindo os preceitos desta ou daquela confraria; se o coração não participar com gosto dos atos de benemerência e da necessidade de fazer crescer o amor às pessoas, de nada adiantará deixar os cabelos e as saias compridas.
Nada do que poderíamos dizer seria mais expressivo que a narração da irmãzinha; é preciso, contudo, não estabelecer precipitados juízos de valor sem conhecer as circunstâncias que envolveram os acontecimentos psíquicos, e isso não ficou esclarecido em profundidade. Vamos, portanto, suspeitar de que o melhor seja cumprir os deveres, pois pode estar aí a chave da felicidade. Para isso, principiemos abaixando a cabeça diante do Pai, oferecendo-lhe contrita oração em agradecimento pela possibilidade de compreensão dos fatos da vida.
Fiquemos todos em suas mãos!







35

DE OLHO NO CARDINALATO





Reservo-me o direito de pronunciar as palavras que tenho na mente e impeço o escrevente de determinar qualquer vibração que não corresponda ao meu enunciado. Sinto-me forte para obter do amigo as melhores disposições e evitarei tudo que possa contrariar os aspectos mais sadios da doutrina. Vejo que consegui vir bem até aqui e prosseguirei pela forma que melhor expressa o meu vigor intelectual e emocional.
Há bem pouco tempo atrás, suportei muitos reveses de porte, coisa graúda para um mísero servo do Senhor, encarregado de pequenos serviços no âmbito da nunciatura apostólica. Era um bispo auxiliar e não podia oferecer muitos arremessos de vontade. Eis que agora tenho em mim esta força poderosa, pois notei que deste lado as coisas se desenrolam de modo muito diferente.
Através de investigações a que procedi no báratro, pude constatar lá vários religiosos até melhor situados que eu mesmo na escala hierárquica da Igreja. Não tenho muito, portanto, do que reclamar por me ver inferiorizado. Não suporto o fato de não ter tido razão nos prognósticos durante o sacerdócio, pois prejulgava-me em condições de subir diretamente aos pés do Senhor, em seu trono de luz. No entanto, reconheço que pouco fiz em favor dos irmãos na carne e que fui egoísta a ponto de me recusar a prestar socorro pessoalmente, enviando subalternos em meu lugar, pois me dava suma importância.
Hoje, conforta-me o fato de poder vir advertir os mortais que não temem ler as notícias do além. Sei que a maioria dos fiéis de nossas igrejas não se importam com os irmãos espíritas, levados que são pelos sacerdotes a concluírem que o melhor alvitre é dar ouvidos às suas palavras, recusando-se terminantemente a aceitar o benefício da mediunidade esclarecida.
É bem verdade que existem padres bem como superiores que reconhecem que suas luzes são poucas, mas esforçam-se por ficar longe da verdade, anulando as consciências quando os acusam de estarem cegos a conduzir cegos. Ainda bem que existe uma porção que deseja ultrapassar os limites das tarefas burocráticas da arrecadação de fundos, para irem em auxílio aos pobres sofredores que se debatem na miséria.
Se me fosse possível regressar ao mundo da carne na qualidade de protetor, como nós supúnhamos que era o papel dos santos, impedindo que os pecadores submergissem no lodaçal dos vícios, eu o faria plenamente consciente de resgatar os débitos que adquiri nessa derradeira jornada. Mas submeto-me à vontade do Senhor, que não admite que suas leis sejam burladas impunemente.
Para isso é que estou aqui: para realizar o desejo dos espíritos melhor categorizados que irão conduzir-me para os institutos e templos desta esfera, para me fazerem recuperar a memória, pois, segundo entendi, está na hora de conhecer a pessoa que fui antes do encarne para compará-la à que sou, com a finalidade de reavaliação dos ganhos e das perdas, para futuros comprometimentos com a existência.
Esta compreensão que adquiri me fez muito bem, no sentido de me fazer entender que devo depositar os paramentos do encarne eclesiástico, que não representam mais nada aqui. Aliás, é peso adicional para quem os carrega sem que tenham levado realmente Jesus no coração, durante a peregrinação no orbe.
Vejam, caros companheiros, que me proponho a tornar-me simples cidadão do etéreo, sem regalias do sacerdócio, despojado das prerrogativas da ordenação, com o último desejo de consagrar-me à verdade e à virtude. Nesse sentido, tenho pleno conhecimento de que preciso restabelecer os vínculos familiares que rompi ao rebelar-me contra a natureza, por aceitar o celibato clerical como homenagem ao Senhor e comprovação de que me sacrificava em sua honra. Pura falácia de quem almejava crescer perante a sociedade. Mas os meus péssimos impulsos devem ficar soterrados pelo sofrimento de que não me poupei, ao verificar que me tornara alguém bastante miserável no aspecto moral, principalmente porque fingia ser o que não era. Esse é o risco que não desejo correr aqui, nesta exposição sumária de alguns pensamentos desencontrados, fruto do meu desequilíbrio nestas circunstâncias.
Se fosse para elaborar alguma carta pastoral, não teria dificuldade, mas comprometer-me a revelar o que me vai no fundo da alma é muito diferente e desdiz até do brilho intelectual que procurei manter junto à comunidade a que servia.
Ponho o coração nas mãos e ofereço-me aos bons amigos para receber orientação. Faça-se em mim segundo a vontade do Senhor. Agradeço e peço perdão ao médium por tê-lo submetido tão fortemente à minha iniciativa, apesar de que, no final, acabei perdendo o élan, necessitando de sua ajuda. Quão diferente é aqui o domínio das pessoas pela vontade! Quando encarnado, bastava dizer faça isso, eu quero aquilo, ouça bem, e tudo se realizava segundo o ordenado. Nunca precisei, tanto quanto agora, reconhecer que o encadeamento das vibrações é importante para a manutenção da ordem geral. Enfim, não quero adiantar conclusões a respeito de algo para o que não estou habilitado.
Ainda bem que aprendi diversas orações e o valor de dizê-las com o coração contrito. É o que me valeu nos transes da agonia em que me via arrastado pelo egoísmo. Por isso, talvez, tenha permanecido tão pouco tempo nas sombras, pois faz pouco mais de dez anos que sofro errático pelos descaminhos da solidão. Graças a Deus, está no fim essa dura fase!
Devo confessar, afinal, que o que me conteve mais fortemente preso às cavernas foi a desonra de ter percebido, de modo tardio, que era gélido o coração, voltado para as delícias do poder, pois aspirava pelas honras do cardinalato, invejando aqueles que podiam ostentar as vestes vermelhas, com a mais subida glória de se verem convocados para a escolha eventual dos papas. Minha aspiração não chegava a tanto, pois me reconhecia pouco apaniguado intelectualmente e sem força política, no sentido de conseguir influenciar as vontades para a minha eleição. No entanto, sempre raciocinei que, se não chegasse ao conclave, não poderia ver-me diante da cadeira de São Pedro. Enfim, eis confessado o maior crime. Sei que, se não revelasse este imenso defeito, não teria sossego, pois a consciência não me permitiria olhar ninguém diretamente nos olhos.
Estou envergonhado e sentindo-me sujo, como o mais miserável dos entes abjetos; entretanto, sinto-me leve como quando me confessei perante o sacerdote, para o efeito da primeira comunhão. Como seria bom se a humanidade se pudesse manter pura como nesse momento de superior ventura espiritual!
Desculpem-me pela fragilidade com que me apresentei, pois sei que deveriam esperar de mim muito mais. Ascendi na escala da hierarquia religiosa, mas não pude crescer por dentro, conforme as oportunidades que me foram regaladas. Sinto-me bastante infeliz por isso e, sendo assim, rogo a Deus seu perdão, para este humilde servidor, que desejaria voltar à vida em condições inferiores, para não ter mais a desagradável sensação de queda de ponto tão elevado.
Pedem-me para encerrar. Estimo, portanto, que estejam satisfeitos e prontos para o socorro. Sei que não me apresentei condignamente, mas espero não decepcionar ao encerrar, propondo-me a orar a prece do Pai, com o máximo de fervor apostólico, dedicando a oração aos que vi sofrer nas trevas exteriores.
Muito obrigado, irmãos; Deus os abençoe e ilumine!




Comentário



É sempre com muita apreensão que trazemos para a escrita representantes e dignitários das fés religiosas que perpassam pelas sociedades da Terra. Dá a impressão de que estamos enfatizando a superioridade dos que, desde logo, se filiam ao Espiritismo, principalmente na linha da orientação kardequiana. Se esse for o sentimento do leitor, pode esquecer qualquer pensamento de supremacia doutrinal ou de apanágio em virtude dos conceitos mais próximos da verdade revelada. Todos os humanos são iguais e merecedores de nossa irrestrita atenção. Tanto nos faz trazer aqui ex-detentos, criminosos arrependidos, membros de seitas esotéricas, sacerdotes e pastores, como os irmãos médiuns que nos auxiliam nesta pregação de amor e boa vontade.
O que ocorre é a necessidade do atendimento, obrigação precípua neste momento de nosso crescimento em harmonia com as diretrizes evangélicas. No entanto, se o resultado do trabalho extrapolar a intenção e sugerir alguma conclusão aleatória da parte dos leitores, devemos refrear-lhes os impulsos, advertindo-os para o fato de que é o trabalho em prol do irmão carente que nos dará maior possibilidade de crescer em méritos diante do Pai. Sendo assim, é triste observarmos que as ganâncias humanas estendem as garras para prender todos os homens que não oram e não vigiam, desatentos para as palavras de Jesus, quando recomendam que deveriam despojar-se de tudo para merecer a glória de adentrar com ele o reino de Deus.
Não se veja, portanto, nos assistidos, mais do que almas sofredoras em vias de assunção de novos compromissos evangélicos. Qualquer outra idéia deve ser afastada como falsa e deletéria para o cumprimento das determinações de vida encerradas em cada projeto estabelecido para as criaturas encarnadas.
Perdoem-nos se não estamos a abrir facilmente a porta do céu a ninguém, mesmo aos filiados aos centros e federações espíritas. Contamos, entretanto, com sua desenvoltura moral, para que haja a possibilidade de fazer com que a sociedade venha a compreender que a voz de Jesus é que deve conduzir a humanidade rumo à felicidade eterna.







ENCERRAMENTO





Em pouco tempo, conseguimos reunir inúmeras manifestações de espíritos sofredores, procurando caracterizar vários tipos de reações diante das variegadas experiências carnais e até dos contactos entre as entidades no etéreo. Supúnhamos que a tarefa poderia realizar-se mais brevemente ainda, pois ignorávamos os rumos que poderiam os trabalhos tomar. Eis que, no entanto, estamos bem satisfeitos com os resultados obtidos, uma vez que nos parecem bastante ilustrativos para que os vários leitores possam conseguir espelhos fiéis em que se mirar.
Não hesitaremos em trazer outros companheiros de jornada, se nos forem indicadas personalidades não abrangidas pelas comunicações. No mais, solicitamos aos amigos que nos perdoem termos tão pretensamente absorvido a sua atenção, no intuito da demonstração ao vivo dos efeitos deletérios das diversas posturas materializadas da vida.
Caberia também enfatizar os aspectos saudáveis da vida evangelicamente vivida, sob o roteiro primoroso estabelecido pelo Senhor. No entanto, não temos permissão para evocar os irmãos que se sublimaram, de modo que havemos de nos contentar em fornecer só os indícios, através do que nos é dado realizar sem onerar os compromissos assumidos para com o encarne.
Temos usufruído em paz estes momentos junto ao mediador, a quem agradecemos muito a conduta séria e cordata, sempre à disposição, conforme as determinações que lhe prescrevemos. Que esta oportunidade propiciada a esta Equipe Socorrismo Ativo, sob a orientação do irmão Juvenal, possa servir para estabelecimento da cadeia doutrinária que os diversos grupos da Escolinha de Evangelização vêm desenvolvendo.
Graças a Deus, irmãozinho, temos tido sucesso no empreendimento, o que nos autoriza a agradecer compungidos à assistência divina manifestada através dos eflúvios energéticos que se espargem por sobre toda a turma, durante as sessões. Fique na paz de Deus, querido amigo, nas mãos de novo grupo de socorristas.
Saiba que nos retiramos já com saudade. Aceite estremecido abraço de toda a equipe e receba, com o coração alegre, a manifestação das entidades assistidas, que fazem questão de lhe mandar vibrações de muita fé em que Deus lhe será misericordioso.
Oremos todos a prece dominical, para encerrarmos de vez estas atividades.
Graças a Deus!


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