Não é raro alguém dizer que um poema não serve pra nada, sem suspeitar que esteja tão perto da própria definição do que seja isso que nos habituamos a tratar como sendo a lírica, e que talvez passemos a chamar, agora que os nossos cursos de letras se acham em reforma, de "literatura da expressão afetiva", sei lá.
E não é sempre que a poesia nos visita. Parafraseando Adélia Prado, às vezes a gente olha para a cidade enfumaçada e vê apenas a cidade enfumaçada, por mais boa vontade que se tenha em reconhecer as ações positivas do Setor Canavieiro, que ora se divulgam por e-mail.
Por não servir mesmo pra nada, a poesia resiste, persiste, insiste em nos fazer ver que a cidade, que a vida ainda é possível, mesmo ameaçada, sob uma espessa nuvem de fumaça. Os antigos acreditavam que o poeta era aquele que vaticinava, enxergava além das vicissitudes do tempo presente. Mas vate, convenhamos, é mesmo uma palavra muito antiga.
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Na TV, alguém cita Einstein, que, aos setenta anos de idade, teria chegado a uma formulação extremamente poética para suas conclusões científicas: "Deus não joga dados com o universo". E um espírito de porco (no caso, Gabe, personagem de Woody Allen em "Maridos e Esposas"), de passagem, mira o aparelho e resmunga: "Brinca de esconde-esconde".
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[Quando Rafael era menino, um dos nossos empreendimentos mais empolgantes ficou sendo caminhar até o final da rua, onde já não havia casas nem luzes, para desafiar o escuro.
Uma vez, propus que aprendêssemos a falar, juntos, as palavras SILÊNCIO (bem baixinho), ESCURIDÃO (um pouco mais alto, em tom de mistério) e NATUREZA (muito, mas muito alto.; as duas sílabas finais bastante prolongadas, como se fosse um eco).
Ele gostou demais. E a partir de então, sempre que estávamos juntos, saíamos para brincar de "silêncio-escuridão-natureeeezaaaaa", como ele pedia.]
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Aos olhos de um menino
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SILÊNCIO é quando
luz e sombra se esquecem
e, quieta em seu leito,
a natureza se deita
aos olhos de um menino.
ESCURIDÃO é quando
luz e sombra se aquecem
e, quente em seu manto,
o silêncio espreita
aos olhos de um menino.
NATUREZA é quando
breu e silêncio se tecem
e, no cio do mundo,
a vida se enfeita,
aos olhos de um menino.
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[Texto publicado na coluna Oxouzine desta quarta-feira, 07/07/04, no jornal Tribuna Impressa de Araraquara.]