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Artigos-->Vamos sentir saudades -- 08/08/2002 - 10:02 (rodrigo guedes coelho) |
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Todas as causas, estruturais e conjunturais, da crise
de confiança no Brasil já foram exaustivamente
analisadas - menos uma, de capital importância.
Trata-se da inquietante certeza de que, seja qual for
o próximo presidente, o País não voltará a ter tão
cedo um governante com a estatura de estadista do
atual. A perspectiva, menos ou mais nítida na
consciência coletiva, da falta que fará uma liderança
do quilate de Fernando Henrique Cardoso é um dado
crucial da sensação de desassossego, ou mesmo
angústia, que contagia setores preponderantes da
sociedade brasileira e, vai sem dizer, os meios
financeiros nacionais e do exterior. Para essa
inevitabilidade, não há acordo com o Fundo Monetário
que dê solução.
É sabido que, seja pelas amarras que lhe impôs a
pequenez da política brasileira - cujos protagonistas,
na grande maioria, são portadores de um atraso
"córneo", como diria Eça de Queiroz -, seja pela
escassa influência que o País pode exercer na presente
ordem internacional - em que uma única nação concentra
tão desmedida massa de poderes, a ponto de transformar
todas as demais em periféricas ou quase isso -, tal
liderança realizou apenas uma parte relativamente
restrita de seu potencial. Mesmo assim, a cinco meses
do término de seu mandato e em meio à turbulência dos
mercados que atordoa a população, o presidente
brasileiro ainda consegue se mostrar, por decisões e
palavras, à altura de si mesmo.
Foi o que ele provou duas vezes nos últimos dias.
Primeiro, sem estardalhaço nem patriotadas, que seriam
alheias ao seu temperamento, mas com prontidão e
firmeza suficientes para que não houvesse dúvida sobre
a intensidade de seu desagrado, Fernando Henrique fez
saber que não receberia o secretário do Tesouro dos
Estados Unidos, Paul O Neill, que inicia neste domingo
uma viagem ao Brasil, Argentina e Uruguai, por sua
rude declaração contrária à ajuda a esses países,
enquanto não assegurarem que o dinheiro que recebam
"seja bem aproveitado e não apenas saia direto para
uma conta na Suíça".
O Neill falou domingo passado. No dia seguinte, o
dólar subiu quase 6%, fechando a R$ 3,19 e
intensificando uma escalada que, até se vaporizar,
lançaria a moeda americana ao patamar de R$ 3,50.
A atitude de Fernando Henrique, decerto prontamente
transmitida a Washington pela lúcida e atuante
embaixadora Donna Hrinak, levou o governo dos EUA, por
meio do porta-voz de Bush, a externar "grande
confiança na equipe e na política econômica do Brasil"
e a prometer que "continuará a apoiar a assistência
financeira internacional" ao País. Por fim, o próprio
O Neill se derramou em elogios aos brasileiros - tão
excessivos como grosseiro havia sido o seu outro
comentário. "Tenho um sentimento especial pelo Brasil,
um grande respeito pelo lugar do País na economia
mundial", declarou-se. E mais: "Temos apoiado
claramente o que o País está tentando conseguir, que é
melhorar a vida das pessoas."
A segunda evidência de que Fernando Henrique nada deve
aos seus melhores tempos foi o discurso que fez na
quinta-feira, no Itamaraty. No mesmo tom crítico aos
Estados Unidos de seu pronunciamento na Assembléia
Nacional francesa, no ano passado, o presidente
comentou que "a transparência que nos pedem e que hoje
praticamos não parece ser assim tão transparente acima
do equador", numa também transparente alusão às
fraudes contábeis das megaempresas americanas. "Não
aceitamos essa ética de dupla face", protestou. Mas as
passagens mais densas de sua fala foram os comentários
sobre a "imprevisibilidade total" e a "falta de
qualquer racionalidade" da economia globalizada, que
"podem levar países sólidos a enfrentarem problemas
difíceis".
"O mundo enlouqueceu", disse Fernando Henrique - e não
excluiu que exista lógica nessa loucura. "Há quem
ganhe com o risco", constatou. O unilateralismo dos
Estados Unidos, a que se referiu, e a miopia de seus
dirigentes, o que deixou subentendido, completaram o
processo de asfixia do "espírito de reconstrução" que
prevaleceu depois da 2.ª Guerra Mundial, sem que
surgisse "uma visão realmente nova para discutir de
que maneira vamos dirigir o mundo". Como tem feito
desde o seu primeiro mandato, o presidente voltou a
defender uma resposta política - a "reengenharia da
estrutura institucional mundial" - à desilusão e à
revolta das ruas, "que não ajudam a consolidar uma
ordem democrática em nível mundial". Qual dos
candidatos à sua sucessão seria capaz de fazer uma
crítica ao que eles vivem criticando - a globalização
e a hegemonia dos Estados Unidos - tão contundente e
ao mesmo tempo tão elegantemente inteligente?
Por mais atribulado que seja o fim do seu governo,
vamos sentir saudades.
(O Estado de São Paulo/04/08/02-Editorial)
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