Um revigoramento da utilização de arquétipos tem sido observado nos últimos anos nos meios científicos e terapêuticos, o que tem trazido benefícios para a análise e compreensão de fatos inicialmente traumáticos e/ou obscuros que tem ocorrido em todo o mundo ao nível pessoal e coletivo. Especificamente o arquétipo trazido pela história bíblica de Jonas é um que indica pistas para a compreensão de alguns aspectos interessantes que se presenciam na ciência e na vida contemporânea.
Segundo a Bíblia, Jonas era um profeta a quem Deus se manifestou dizendo: “Levanta-te, vai a Nínive, a grande cidade, e anuncia contra ela que sua maldade chegou até mim”. Jonas, entretanto, logo em seguida ao chamado, compra passagem para a longínqua cidade de Társis, tentando fugir de Deus e, por conseguinte, de sua própria missão. Foi no caminho, em meio a uma forte tempestade, que Jonas percebe que sua negativa em atender o pedido de Deus, causa problemas a ele e aos seus companheiros de viagem. Pedido para ser jogado ao mar, foi tragado por um grande peixe, tendo ficado no seu ventre por três dias e três noites. Na escuridão, sentindo-se rejeitado por Deus, Jonas ora fervorosamente e tem sua prece acolhida, prometendo, então, cumprir o chamado do Senhor. O grande peixe o expele e ele vai a Nínive cumprir sua missão, sendo que os detalhes da narrativa podem ser acompanhados no texto bíblico.
Na versão arquetípica, Jonas é cada um de nós que recebe uma missão e dela tem muito medo, tanto medo que vai em direção contrária ao chamado, a um lugar mais distante possível representado por Társis. Diga-se aqui que, segundo J. A. Sanford, esse chamado é particular para cada um e vem do criador que se manifesta tanto dentro como fora de nós. Na verdade, Sanford, que é padre episcopal e analista Jungiano, salienta que pistas dessa missão nos são passadas por sonhos, visões e intuições que nos ocorrem continuamente, tidos como parte da linguagem (esquecida pela maioria) de Deus para nós. Por outro lado, J. Y. Leloup, sacerdote ortodoxo que discorre com maestria sobre a história de Jonas, salienta que esse chamado que representa a missão de cada um, vem do Deus vivo, ou seja, d’Aquele que É, e o seu cumprimento simboliza a nossa realização plena como ser humano.
Classicamente, então, podemos perguntar: quando ocorre esse chamado, quantas vezes na vida, onde, como? São perguntas com diferentes respostas para cada um, não havendo receitas prontas para ninguém. Porém há indicativos para sabermos se estamos ouvindo o chamado e cumprindo nossa missão ou se estamos fugindo para nossa longínqua Társis. Esta representa o local aconchegante e cômodo, o convívio com os iguais, com aqueles que pensam de forma semelhante e que, portanto, não vão nos exigir grandes mudanças, apenas eventualmente algumas adaptações segundo as regras vigentes. Fugir para Társis significa ter medo de ser diferente dos outros sem perceber que é somente ousando ser diferente em resposta ao verdadeiro chamado que se consegue aderir à vocação profunda do ser humano. Bem apropriada é a palavra de Deus quando inicialmente dirigida a Jonas: “Levanta-te, desperta-te”. A inércia, o tédio, o costume de realizar coisas aparentemente sadias sempre da mesma forma faz com que os Jonas de hoje queiram ainda “ficar deitados”. Afinal, ficar de pé é perigoso, pode-se tornar alvo, corre-se o risco de ouvir o chamado para a grande missão. E é o que ocorre! Quando finalmente o protagonista decide ficar em pé vem o chamado forte, insinuante e inesperado, algo que contraria suas próprias crenças e modelos vigentes, até mesmo os assumidos como mais corretos. Afinal, é tão bom estar no mesmo grupo, na equipe que dá total apoio às suas atitudes, acobertando-as, estar do lado das convenções, das regras e padrões estabelecidos pela sociedade ou mesmo por igrejas das mais variadas, instituições e/ou sociedades secretas que sempre existiram e que pautam por quebrar regras de outrém para estabelecer suas próprias tão ou mais rígidas. É o desafio de uma ruptura sem precedentes que invade o coração de Jonas. Para que mudar tanto, inquieta-se sem ter a quem recorrer. E a revolta inicial: essa exigência, chamado, com certeza não pode estar vindo d’Aquele que É. Não faz sentido! Os grupos estabelecidos poderão eventualmente até mesmo encorajar o levantar-se, mas com certeza darão todo o apoio para se ir a Társis e não a Nínive. No entanto, o ser humano não percebe que ir a Társis é não se realizar, não responder ao seu ímpeto interior, ao verdadeiro Deus. O fugitivo, nosso arquétipo, toma, então, o barco para Társis e ainda dorme no convés, como se esperando passiva e miraculosamente por um desenlace feliz para si por uma obra do Deus exterior, tão apregoado pelos fixadores de normas. Nesse ponto esquece-se facilmente das palavras do Mestre a alguém que se dispõe a segui-lo: “As raposas tem tocas e aves do céu tem ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça”. De fato, quem quer se realizar ou cumprir sua missão deve ser como o vento “que não sabe de onde vem nem para onde vai”. Ir a Nínive significa desinstalar-se!
Assim, ao ser acordado pela forte tempestade, a primeira impressão de Jonas é que a mesma vem do exterior, não tendo nada a ver com seu interior. São as condições do mar, o mau tempo, a precariedade do barco: causalidades externas que os paradigmas estabelecidos sempre utilizaram para responder aos infortúnios da vida. Admiravelmente, ao “jogar a sorte”, atividade geralmente proibida pelos grupos e igrejas estabelecidos, mas oferecida como possibilidade concreta nessa passagem bíblica, vem a resposta divina e o próprio Jonas é indicado por Deus como sendo responsável por aquela tormenta. Quando decide assumir o desígnio do oráculo, percebe que é uma tempestade com mensagem para ele e diz: “sou eu o problema pois não quis dar ouvidos à minha voz interior de realização, ao meu Deus. Joguem-me ao mar, preciso de tempo para meditar, para fazer silêncio, para fecundar minhas idéias e perceber o essencial”. E o grande peixe lhe propiciou esse tempo, engolindo-o e deixando-o em seu ventre por significativos três dias e três noites.
Períodos de tempo no ventre do grande peixe, todos passamos na vida. E diga-se, apesar de escuros e muitas vezes dolorosos, são períodos necessários, preciosos, de preparação para missões que a todo tempo somos chamados, as quais constituem peças do desígnio maior de nossa vida a ser edificado por nós mesmos dia após dia. Quando forçamos o destino para ir a Társis, é o medo incontrolável que nos direciona, o medo do desconhecido. Muitas e muitas vezes Társis é uma escolha inconsciente porque cômoda e amparada pelos grupos no poder, mas Aquele que É, porque ama muito, decide trazer uma tempestade inesperada, impetuosa e aparentemente incontrolável, ainda que explicada causal e racionalmente pela ciência oficial. De um outro ângulo ou dimensão, entretanto, a tempestade tem tem uma função divina: provocar em Jonas o despertar, a conscientização da missão, sem prescindir de sua liberdade de dizer não e de continuar a praguejar contra a vida que lhe parece madrasta. É somente pela busca incessante, a abertura e o desejo de conhecer a verdade a qualquer preço, que Jonas entende sua responsabilidade no acontecimento e percebe que a tempestade é, no fundo, uma bênção, um bem disfarçado de mal como todos os outros e aí decide tomar uma atitude construtiva para si próprio. Percebe que não há regras que determinem essa atitude e somente ele pode ter intuitivamente a certeza da escolha adequada. Que realidade terrível e ao mesmo tempo libertadora desse Deus desconhecido pela maioria, eis a grande descoberta de Jonas!
Arquetipicamente, o desconhecido, muitas vezes, é o outro, o companheiro de vida, aquele que tem idéias diferentes que incomodam, desinstalam, mexem com padrões e valores estabelecidos pelos grupos no poder, ou por nós mesmos. O desconhecido é, outras vezes, a maneira de encarar a vida, mais integrada à natureza, sistêmica, o que também provoca reverberações negativas na sociedade que nos rodeia e no cientificismo reinante. É evidente que o reducionismo clássico é muito mais compatível com a mórbida hierarquia vigente simbolizada pela inócua viagem para Társis, para onde há tantos mapas e rotas disponíveis. Outras vezes, ainda, o desconhecido toma a forma de métodos e maneiras drasticamente diferentes de se olhar para a sutil ligação entre ciência e espiritualidade, o que se insiste desesperadamente em negar nas escolas oficiais e na mídia dominante sob pretextos de se fazer esoterismo ou de se permitir influenciar pelas “loucuras da nova era”. Esse desespero mostra o medo e o despreparo dos grupos no poder de aceitar as famosas frases de Einstein sobre o assunto e o misticismo de Newton, para citar apenas dois dos maiores físicos que a humanidade já conheceu, fatos cuidadosamente escondidos e/ou minimizados nas aulas oficiais de Física. Afinal, mesmo amparado pela Ciência Sistêmica e Física Quântica das últimas décadas, essa é uma Nínive muito perigosa tanto para os grupos estabelecidos na Ciência como na Religião.
Sem fugir às responsabilidades inerentes às escolhas do dia-a-dia, aqueles que decidem transformar radicalmente suas vidas para atingir seus ideais e cumprir seus desígnios e o fazem sem prejudicar o outro, são aqueles que passam ou já passaram pelo ventre do grande peixe. Esses são, hoje, os Jonas a caminho da conversão, que já não tem medo de escuro e dos períodos de purificação que continuam a chegar inesperadamente. Na verdade, para os Jonas conscientizados, esses períodos são sempre bem-vindos, na linha paulina do “em tudo dai graças”, pois são eles que abrem os canais de percepção para o que é realmente essencial.
Que tal olharmos para as pequenas e grandes tempestades que estamos todos, indistintamente, enfentando no momento e termos a coragem de nos perguntarmos em profundo silêncio: estamos indo a Társis ou a Nínive?