A cabeleira candente do cometa bate de frente com meu sonho glaçado. Num susto sem sobressalto, amanheço meu acordar. Sou planta no húmus bem adubado, caçando brisa para a coreografia de meu molejo. Passa um carro e buzina - não quero carona nenhuma, por isso me oferece! -, a chuva me respinga uns pingos incômodos, aquela chuvinha de bobo, e eu, que não sou boba, corro para a primeira moita. Lama. Precisa faxina, moça? Faxina da grossa, minha filha! No dia-a-dia, só aquela limpezinha diária, varrer sujeirinha para debaixo do tapete, chupar a angústia pelo aspirador, despejar um frasco de água sanitária sobre o ciúme corrosivo, remover tanta coisa malcheirosa. Hoje é dia de faxina pesada, por isso venha de lá um vidro de amoníaco a vácuo, encalcado até o tonteio! Levar um tapa no hipotálamo, eu mereço. Sob o esqueleto da cama, o ornado inútil das teias de aranha. É nesse subterrâneo escuro que me deito. Despenteio a coberta aracnídea com ira. Boa paz só conheço no mausoléu de um armário vazio. Ainda mando o carpinteiro construir um guarda-roupa com divisões grandes, para me caber dentro, a meu gosto, lá eu deitar o espírito com conforto, ao clarume de uma luminária que me permita folhear receituários e namorar mapas de estrias. Ah, e rir um saco de risos inteiro de fotos horrorosas, má e má. O uísque fraquinho (duas colheres bem medidas para duas mil pedras de gelo), límpida fonte. Das frestas, vazaria o destilado e se formariam poças. Depois eu lamberia o chão apenas pelo prazer do nojo. Quebraria meu espelho e com ele formaria um mosaico de imagens cubistas. Fácil colar os cacos! A samambaia chorona no vaso: alisando seus cachos, rego-a com uma ducha de lágrimas sofridas, brotadas do mais fundo da minha ebriedade. Para provocar sua verdura, debulho a flor do cerrado e cato fios de cabelo nas buchas que só florescem em Brasília. Caixas de papel floral, uma amiga que fez. Imagino na marca de cola dos encaixes o empenho da moça, madrugada adentro, luz de teto, compondo suas peças, depois o implacável destino de suas obras-primas: servir de empoeirados tablados a bijus e contas, pois esqueci de me lembrar de que nunca fui de guardar meus troços dentro de compartimentos. Agora, não sei que fazer com essas embalagens lindas sem nenhum recheio. Jogá-las fora não vou, pois estaria jogando no lixo uma amizade, o sorriso doce da moça, mostrando seu lavor noturno. Enquanto ela lavorava, eu... que comparação! A calcinha molhada no registro do chuveiro é a prova cabal de que eu moro aqui, viu? Acima de qualquer hipoteca, mando eu no meu espaço. Minhas calcinhas relaxadas, de uma perna só, tortas e doidas, como eu, balizam meus 40 m2 de presença ostensiva. Repare que tudo toma uns ares da gente. Tudo meu tem algo muito feio que sou eu, e isso fede ou cheira, mas sou eu. Seco e madeiriço. Coitado do meu cachorro, perdôo-lhe o olhar súplice: não lhe dou carinho nenhum, só ração insossa! Tome, quieto aí, meu servo de afagos! Não sou eu que sai mijando nos cantos, nem pondo jarrinho de flor para disfarçar. Toalha rendada é o primeiro item da lista de presentes que ofereço a meus afetos. Receba, é de coração, não repare, que sou eu lhe dando o melhor de mim, meu desejo secreto de um dia me apaixonar por uma toalha bordada em ponto richelieu. Receba meu sagrado. Fique com o meu sudário manchado do mais puro sangue de fêmea. Eu não tenho jeito para artista, tudo o que eu pinto e bordo é feio e assimétrico, não dou para caprichos. No croché eu me acho é no miolo do centro de mesa, desprezo o arabesco. E nas cartas que escrevo me intrigam umas conjunções bizarras, ligando idéias atemporais, sem modo, sem causa. Perco bom tempo no agachar pernas cruzadas, unhas belas eu tenho, mãos sedutoras eu gosto. Não sei você, nunca lhe perguntei. Empresto-lhe meus olhos, quer? Verá a verdade que se esconde no trincado de meu espelho. Fósforos, os palitos me queimam os dedos até o fim, e esse descuido me dói a alma, como a cera da vela que remove as piores verrugas. Não fica pêlo sobre pele. Hoje estou um perigo. Vesti-me de festa para o primeiro telefonema. Não me chame para a Chapada à luz de velas, que eu aceito de pronto. Muito fácil ficar me cobrando de longe! Não lhe devo nenhuma indenização, nem me aventurei num romance a longo prazo, com beijos a perder de vista. Meu negócio é descartável. Tchau e bença. Minha escova de dentes não troco há um ano, e não tô nem aí para isso. Banguela, sou sem compaixão, correndo tonta e vesga e retorcida, carcomida entre as vielas formiguentas e concupiscentes do Conic, sem dó do que se veste de garoto-propaganda coberto de panfletos. As bonequinhas de pano são tétricas. Mais um que perdeu horas costurando vodus absurdos! Quero gritar no meio desse povo, mas posso? Não devo. Vai que um dito-cujo me acha com cara daquilo, e lá vou eu ganhando quinze minutos de júbilo e, de quebra, toda uma vida de arrependimento. Maquiada guerreira, nua em pêlo, duas gotas de Chanel número 5, espinhos doendo na orelha, maceração na bisnaga de pus inchando os lóbulos, secreções a céu aberto, logo existo. Lanhado na cara do sabonete, meu nome, a sabugo de unha. Suficiente espuma na banheira da modelo famosa que sumiu para sempre das telas: "Você se lembra da minha voz?" Meu branco total radiante iluminando a noite escura, eternamente. De minha geladeira só eu entendo, e maçã eu devoro é fazendo barulho alto e mastigando com voracidade. Quem ouve pensa que estou numa fome! Mas estou só tirando casquinha de todas as paciências que insistem nesses lindos moços de capa e chapéu. Jeans são uniformes horrendos, o que salva a figura é o desenho de um corpo macho. O bumbum sinuoso mapeia sua silhueta, é desse ponto que partem todos os seus traços, a calça fiel lhe andando sozinha, você cabendo nela ou ela cabendo em você, os dois engatados, coladinhos, rua afora, sem que ninguém suspeite de seu amor por ela. Só eu adivinho sua dor (meu amor). E choro lágrimas de uísque, grossos e pesados cristais de crocodilo por você. Sinceramente.