Depois de uma hora e meia em pé na fila de um banco, uma moça furou a fila, com aquele jeito típico de quem faz isso: disfarçando com naturalidade e fingindo-se de surda, cega e muda.
Confesso, protestei. Mas antes que você me condene por isso, explico: eu havia acordado atrasado, esquecido de usar desodorante depois do banho e passado a manhã inteira me “inspirando” com os hinos estridentes tocados na caixa de som do micro de uma colega evangélica. Evangélica muito ecumênica é verdade, mas afinal de contas quem hoje em dia pode se dar ao luxo e ao risco de acender vela para um santo só? Pois bem, como ia dizendo, cheguei à fila do banco fedendo e cheio do poder do Espírito Santo; Acho até que eu estava torcendo para que alguém furasse aquela fila. Assim eu poderia mostrar o bem que Deus havia me feito de manhã.
Adivinhe para quem todos os olhares se viraram? Claro, para mim! Afinal de contas, era eu o mau-educado que estava falando alto e quebrando a ordem. Era eu o nervosinho sem motivo. Depois de umas risadinhas e de alguns olhares condolentes, fui perdoado pelos quase 70 otários e a ordem foi restabelecida. A moça foi atendida, deixou um “obrigada” para o caixa com um tom quase ofendido e saiu como entrou, fingindo-se de surda, cega, e muda. Mas agora com dinheiro no bolso, claro. Eu fiquei na fila, esperando, como antes, para pagar uma conta. Saí de lá como entrei, fedido, nervoso e em dia com meus credores. Mas agora sem dinheiro no bolso, é claro.
O brasileiro é conhecido pela auto-superação, por seu jogo de cintura, por sua criatividade. Ele - o brasileiro – adora dizer que consegue fazer piada de qualquer situação, até das mais tristes e revoltantes. Leva tudo na esportiva, com humor. O brasileiro é craque em driblar as dificuldades, as angústias, as más notícias. Lê na manchete do jornal que um juiz lhe roubou 170 milhões e revolta-se no primeiro momento. Mais adiante, vê uma charge bem bolada sobre o juiz e cai na gargalhada. Sente-se vingado; acredita que o juiz ladrão foi punido com suas risadas, sendo chamado ironicamente de ladrão por um Caruso ou por um Angeli. Pronto, é isso. O bom-humor foi salvo, a piada está garantida, a vida continua. Se o ACM e o Barbalho forem ridicularizados no Casseta & Planeta, a justiça terá sido feita.
Será que isso é uma realmente uma qualidade do povo brasileiro?
Pra mim não é. É, senão o maior, um dos maiores motivos para os problemas do país. O Brasil prefere rir a se revoltar. Claro, é um povo alegre por natureza, mesmo sem motivo. O brasileiro não se leva a sério, não leva o outro a sério, não leva nada a sério. Seriedade é para os branquelos americanos e europeus, que não sabem fazer piadas, sambar nem jogar futebol. Pobres coitados – pensa o brasileiro. É por isso que o índice de suicídios na Suíça é tão alto. Não tem graça um país sem pobreza, sem analfabeto, sem assalto, sem furões de fila.
O Brasil nunca lutou para conseguir nada do que tem. Tornou-se independente com um grito na beira dum rio, viu-se livre da ditadura porque a ditadura quis, nunca teve ideais, bandeiras ou revoluções. Afinal - pensa o brasileiro - luta e revolução é com os branquelos americanos, aqueles lunáticos que adoram guerra e fazem aquelas patriotadas no cinema pro mundo inteiro ver como eles são heróicos. Esses americanos não têm jeito mesmo...
Bom, entre mortos e feridos, o espírito brasileiro foi preservado. Todos estão salvos, não houve tiros, protestos, bombas nem gás lacrimogêneo nas ruas. Não houve prisões, cassetetes, buzinaço ou qualquer outro tipo de violência por causas políticas, ideológicas, religiosas ou humanistas. Enfim, graças a Deus ainda não chegamos ao fundo do poço nem partimos para a apelação de ir pra rua bater panela, como fizeram os argentinos. Aliás, que povo desordeiro e sem graça – pensa o dançante e alegre brasileiro, se esquecendo que tanto a mocinha que furou a fila quanto o juiz ladrão estão com dinheiro no bolso nessa sexta-feira. A gente ficou com o bom-humor e as piadas.
De vez em quando chego a pensar que isso só mudaria se o brasileiro sofresse uns terremotos, entrasse numas guerras, fosse perseguido por algum europeu racista e xenófobo. Chego a pensar até no pior: a abolição do Carnaval. Talvez com umas desgraças assim o brasileiro aprendesse que nem tudo na vida é engraçado, que nem tudo na vida é motivo pra piada. A Tia Miriam lá no maternal já tinha me ensinado isso: “Brincadeira tem hora, menino!”.
Mas não vou fazer isso, é claro. Não sou tão anti-patriota a esse ponto. Não quero guerras, desgraças ou holocaustos na minha terra. Quero só uma coisa, que já acho que trará resultados positivos: que cada brasileiro comprometa-se a passar suas manhãs inteiras ouvindo os gritos musicais de “Ele vive! Ele vive! Aleluia!” das caixas de som da minha colega crente. Aí sim, acho que esse instinto exageradamente piadista e alegre do brasileiro ia diminuir um pouquinho. Acho não, tenho certeza. Ô se tenho!