A língua alemã não se deixa cercear por mandamentos de pureza. Por isso mesmo, permanece viva.
De Rolf Schneider
Trad.: zé pedro antunes
Os alemães descobriram uma nova paixão: o idioma. O barulho que acompanhou a introdução da nova ortografia ainda permanece vivo em nossa lembrança; criaram-se iniciativas, coletaram-se assinaturas e, até mesmo, um dos estados da federação cumpriu o seu dever, recusando-se à mudança. Diversos escritores, eles que pela própria profissão deveriam saber melhor sobre tudo isso, afirmaram que a língua estaria sendo danificada - como se a língua fosse idêntica à sua reprodução ortográfica. A discussão, por enquanto, emudeceu. A grande maioria dos impressos vem seguindo a reforma. As irritações permanecem discretas e ninguém mais fala em danos.
Em compensação, temos um novo debate. Trata-se, por conta dos anglicismos, do alardeado apego patriótico à língua. Engajados, no caso, são principalmente os conservadores. Não necessariamente pessoas atuantes na política nacional, mas é ali que têm assento os mais denodados polemistas. Tal fato muito tardiamente apenas passou a ser reconhecível, a saber, quando um senador da cidade-estado Berlim, um homem do CDU (União Cristão Democrática), propôs uma lei de proteção ao idioma, se possível punitiva. Toda sorte de politiqueiros aderiram com entusiasmo. Há quem exija, para os taxistas alemães, uma multa em dinheiro, caso insistam em manter a inscrição "fasten your seat belts" para alertar seus passageiros.
É indiscutível que a nossa língua materna experimenta, no momento, uma invasão formal de americanismos. Muitas destas palavras são prescindíveis. Anglicismos estão em moda; quem deles faz uso, quer parecer contemporâneo, internacional ou, ao menos, notável. Trata-se de uma loucura da moda e de um fenômeno de marketing. Mas já a palavra “marketing”, igualmente de procedência anglo-saxônica, não é fácil de ser substituída, não havendo nenhum vocábulo perfeitamente correspondente em alemão.
Em nossa atual práxis lingüística, alimentam-se de diversas fontes os americanismos. Uma delas é a música popular cantada em inglês e a civilização perpetrada pelo cinema de Hollywood, o que, sobretudo, toma de assalto o jargão das pessoas mais jovens. Uma outra fonte é a técnica do computador, cujas descrições, em sua maioria quase absoluta, são inglesas. E existe ainda uma terceira, que é a utilização do inglês como "lingua franca": no turismo, na ciência e na economia mundial. Muitos empréstimos são insubstituíveis. No caso, como de hábito, o signo lingüístico segue o objeto da descrição. São quase sempre de um ridículo constrangedor as tentativas de, pelo uso da força, se encontrarem e estabelecerem decisões nesse sentido.
Quem, no caso, lamenta o excesso de estrangeirismos, deveria se recordar de que, há coisa de duas gerações, tivemos uma avalanche semelhante, de galicismos. Às vezes, o que se nota é um canibalismo formal: O que, então, se conhecia como "Mannequin", hoje, é chamado de "Model", "Garçonnière" virou "studio" e o "amuse-guele" passou a ser "Snack". A língua, que não é apenas feita da convicção gramatical recente, continua sendo um organismo auto-regulador, que costuma expulsar de si mesma muitas das aberrações semânticas. Aos puristas, isso não basta. Eles são a herança de uma longa e péssima tradição. Eles seguem a União Lingüística do Alemão Comum (Allgemeiner Deutscher Sprachverein), fundada em 1895 por Hermann Riegel, que queria "cultivar o autêntico espírito do idioma alemão, bem como a sua natureza peculiar, despertar o amor e a compreensão para com a língua materna, avivar a sensibilidade para com a sua pureza e correção, para com a sua clareza e beleza, fomentando, assim, com a expulsão de partes constitutivas de línguas estrangeiras, a sua purificação, e fortalecendo a consciência do povo alemão". São de arrepiar os cabelos determinadas alemanizações como "Gesichtserker" [arcada facial] para "Nase" [nariz] e "Knallgastreibling" [impulsionador por explosão a gasolina] para "Benzinmotor" [motor a gasolina]. Sob os nazistas, ocorreu o ápice dos esforços dessa natureza, com ordens para que "Regisseur" [diretor] passasse a ser imediatamente "Spielleiter" [condutor de cena] e "Chefredakteur" [redator-chefe], "Hauptschriftleiter" [diretor principal de redação].
Ocorre que o modelo declarado dos puristas da língua não é o ministério do Doutor Goebbels, mas, sim, o país vizinho, a França. Com efeito, lá existe uma proibição legal do "franglais", portanto, do francês anglicizado; os poloneses, francófilos por tradição, seguiram nessa esteira. Num caso como no outro, a coisa acaba resultando em praticamente nada: os jovens de ambos os países se aferram a suas gírias, a linguagem coloquial mantém o uso dos anglicismos, como o fazem também as belles lettres, salvo exceções. Só a linguagem protocolar observa as prescrições e permanece, assim, tão desprovida de sangue como sempre foi em todos os lugares.
Por tradição histórica, a relação dos franceses com o seu idioma é diversa da nossa. A francofonia sempre foi e continua sendo um elemento político: no plano interno, como instrumento para a promoção da posição central ocupada pelo estado; no plano externo, como arma imperial. A Académie française, criada pelo Rei Sol, é uma instância de fiscalização do idioma. Pode-se achar grandioso o padrão por ela assegurado, mas a distância em relação à linguagem cotidiana é considerável e, em todo caso, maior do que no alemão, uma vez que este também evita qualquer ponto de contato com os dialetos regionais que nós, não sem razão, encaramos como um contínuo enriquecimento da língua culta e como algo que se ajusta a nossos hábitos federalistas. Jean-Paul Sartre via na política lingüística francesa uma horrível colonização interna, e somente a partir da gestão de Jack Lang no Ministério da Cultura é que este rigorismo declinou em favor do dialeto e da província. Ainda há três gerações, no sul da França, as crianças que falavam o “languedoc” na escola eram obrigadas a carregar nas costas um cartaz zombeteiro. Seria o caso de perguntar aos que gritam por leis punitivas para regular o uso do idioma, se igualmente pretenderiam chegar a algo desse tipo.
Pois não deixa de ser notável, de parte dos franceses, esse medo do excesso de estrangeirismos, já que a língua que eles falam, por sua vez, se produziu a partir de um fenômeno desse tipo, a saber, da ocupação do latim popular pelo dialeto franco. O inglês, idioma contra o qual as pessoas tanto se indispõem, surgiu no momento em que os conquistadores normandos, com o seu francês, imprimiram ao anglo-saxão um excesso de estrangeirismos. O alemão, desde a alta idade média, experimentou uma constante avalanche de anglicismos, o conjunto da cultura cortezã do tempo dos Staufer estava cheio disso. Até a era do barroco, havia uma contínua invasão do latim, mesmo nomes de família foram latinizados: "Kurz" [breve] passou a ser "Curtius", "Schuster" [sapateiro] deu lugar a "Sutor", "Lange" [longo] transformou-se em "Longolius". Em contraposição a isso, a atual prática (admitidamente boboca) relativa aos prenomes, com seus Kevins ou Mikes, soa infantil.
Dispensam-se profecias, para sabermos que os anglicismos atualmente em uso, um dia, em sua maior parte, haverão de desaparecer. Outros irão se acoplar ao corpus lingüístico do alemão, como já ocorreu anteriormente com os inúmeros latinismos, anglicismos, empréstimos do rotwelsch, do árabe, das línguas eslavas. Não há necessidade de superiores como vigilantes, e as pessoas que, do contrário, defendem a desregulamentação, também aqui deveriam perseguir o seu axioma. O receio do excesso de estrangeirização do idioma esconde o receio do excesso de estrangeirização étnica. Por natureza, ele carece de fundamento, sendo perigoso em suas conseqüências. A tolerância é também uma categoria lingüística.