Segundo Marilena Chauí, em ensaio publicado no livro "O Olhar" (Companhia das Letras), a palavra "visionário" nos vem imediatamente quando pretendemos designar tanto aquele que conhece o futuro, quanto aquele que sonha sonhos impossíveis, quanto aquele que vê mais e melhor do que nós, quanto aquele que nada vê. Não perguntamos, porém, segundo ela, de onde nasce nossa crença de que o tempo por vir seria dado ao olhar e a um olhar mais perspicaz. E nos parece natural que também os tempos idos possam ser vistos: diante da dor e da catástrofe, não aconselhamos alguém ou nós mesmos a "não olhar para trás"? Não cremos apenas que o tempo, futuro ou passado, destina-se à visão. Essa crença reafirma nossa convicção de que é possível ver o invisível, que o visível está povoado de invisíveis a ver e que "vidente" é aquele que enxerga no visível sinais invisíveis aos nossos olhos profanos, no dizer da autora.
O olhar torna-nos reféns de nossos próprios olhos, míopes, alterados da anestesia cotidiana que nos impede de ver sem as cataratas da visão.
"(Olhos sujos no relógio da torre." CDA)
E foi relendo esse ensaio "Janela da Alma, Espelho do Mundo", de Marilena Chauí, principalmente, entre outros ensaios sobre a questão do olhar e suas leituras, é que me surpreendi pensando no olhar drummondiano sobre si mesmo e sobre seus pares, sobre o mundo e as coisas, tão tristes quando consideradas sem ênfase, como dizia. O olhar perscrutador a observar tudo e tanto, a catalogar, a registrar dissabores, desenredos e dores escalavradas, fragmentos em vivo sangue de noites alongadas em amores insones e insanos em suas retinas talvez já um tanto fatigadas. Olhar prestidigitador que capta, surrealísticamente, a prosaica realidade. Olhar que caminha com os desiludidos do amor e do mundo, com os sobreviventes, os que insistem em continuar a crer numa possibilidade de esperança de ser feliz.
Esse olhar permeia os subterrâneos de sua poesia: olhar perspicaz, inteligente, agudo e determinado o suficiente para resgatar dos abismos de sombras, a negação da interdição da esperança, por mais fugida que possa nos oferecer em plenilúnia ventura.
Drummond, com certeza, concorda com Marilena Chauí e crê também ser possível. O invisível e que o visível está povoado de invisível a ver que "vidente" é aquele que enxerga no visível sinais invisíveis aos nossos olhos profanos. Seus olhos foram apenas um dos seus instrumentos de visão, pois ele viu muito mais com seu corpo sensível/sensitivo no avesso da alegria, um traço, ainda que torto, ainda que gauche, de transmudada flor azul ou desbotada, quem sabe, como a que furou o asfalto e rompeu o nojo e o ódio. Ainda quando em "Consolo na Praia" o eu-lírico insiste em dizer:
Vamos não chores
A infância está perdida
A mocidade está perdida
Mas a vida não se perdeu.
O primeiro amor passou
O segundo amor passou
O terceiro amor passou
Mas o coração continua.
E, apesar dos reveses, ele pergunta e o humor? Ora é com seu ódio bom e santo que a esperança drummondiana se instaura, como nos versos:
Ninguém me fará calar, gritarei sempre
que se abafe um prazer, apontarei os desanimados.
(...) Com ele me salvo e dou a poucos uma
esperança mínima.
Ora com delicadeza como a da imagem da última estrofe de "Morte do Leiteiro" é que presenciamos manifesto o encontro, nascimento desencadeado pela garrafa estilhaçada.
"em que duas cores se procuram
suavemente se tocam
amorosamente se enlaçam
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora."
Nos subterrâneos da memória, mesmo que ela exale o mau cheiro da existência, mesmo quando periférica, afastada do centro de seu universo temático, a drummondiana esperança resiste ao viés da itabirana teimosia travestida aporisticamente:
Um inseto cava
cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.
(...)
Eis que o labirinto
(oh razão, mistério)
presto se desata:
em verde, sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-se.
E é utilizando palavras do próprio Drummond que encerro essas considerações sobre o olhar-áporo, um olhar que apesar de não se cansa de cavar até à luz:
É um anúncio, um chamado, uma esperança
embora frágil, pranto infantil no berço?
Mas há um ouvido mais fino que escuta, um
peito que incha.
E uma rosa se abre, um segredo comunica-se,
o poeta anunciou.
O poeta, nas trevas anunciou:
Tudo depende da hora
e de certa inclinação feérica,
viva em mim qual um inseto.
Imaculada C. Reis Vasconcelos é professora de literatura.
Extraído do jornal "Estado de Minas", de 02/11/02.