A história do indivíduo que, para livrar-se de uma perseguição, vai explodindo as pontes por que passa é conhecida. O desfecho também: depois do alívio por não ter sido alcançado , o fugitivo percebe que não pode mais voltar pelo mesmo caminho.
A situação de perplexidade que vive a classe média brasileira é muito semelhante a do personagem da historinha. Ao verificar a degradação nos últimos anos dos serviços de responsabilidade do Estado, ela passou a fugir deles de modo desesperado e, consciente ou não, o fez explodindo as pontes que ficavam para trás.
Mesmo atendo-se apenas aos principais papéis do Estado segundo o conceito do mais paralelepípedico neoliberal,quais sejam a Saúde, a Segurança e a Educação, esta reflexão resulta da percepção de que a classe média está constrangida a voltar e não tem para onde.
A saída encontrada por ela para a degradação do papel do Estado na últimas décadas foi (parafraseando Marisa Monte)...para a Saúde... Golden Cross; para a Segurança...Condomínio Fechado e Shopping Centers; para a Educação... Escola Particular. Talvez não tenha sido exatamente assim, mas deve estar bem próximo da verdade.
Ao abandonar a escola pública no final da década de setenta, início de oitenta, fugindo da penúria de recursos a que a ela eram destinados e das greves de professores e funcionários (movimentos, aliás, cujo mérito nunca contestava ou apoiava, resguardando-se a criticar seus efeitos nas férias de verão da família), a classe média brasileira permitiu o recrudescimento do processo de destruição da educação sustentada pelo Estado, explodindo, assim, a primeira ponte.
A segunda ponte destruída foi a da Segurança Pública. Imaginando que ao isolar-se das calçadas, das praças e do comércio de rua, estaria segura, ela contratou empresas de vigilância, instalou alarmes sofisticados e passou a fazer compras em centros comerciais. Esqueceu-se, que amargura...,de que se tornou dependente do automóvel e que pode ser roubada e seqüestrada dentro dele; não previu que os Shopping Centers cobrariam pelo estacionamento e que poderiam explodir, que tragédia..., por negligência ou má fé de construtores e proprietários, e nunca imaginou, supremo horror..., que os guarda-costas poderiam transformar-se em seus chantagistas “de confiança”.
Por último, mas tão importante quanto as outras pontes, foi-se pelos ares com a ajuda da classe média a estrutura da Saúde Pública: ao optar pelo pagamento de planos privados, omitiu-se da luta social pela saúde, condenando-a, perdoe-se o trocadilho silábico, ao último SUSpiro.
Entrada nestes tempos “reais”, a classe destruidora caiu de patamar na pirâmide econômica. A “redistribuição de renda”, se é que ela existe e não anda de namoro com algum unicórnio, fez-se as suas custas e suas porções inferiores estão deixando de merecer o aposto média. Por isso, ela está precisando voltar pelo caminho que destruiu, mas já não pode.
A classe média não consegue mais pagar a escola de seus filhos e o Estado não quer fazer nada além do que servir de “mediador” na discussão sobre mensalidades; os custos dos planos de saúde, perdoe-se um outro jogo de palavras irresistível, estão “pela hora da morte”, além de terem suas regras guardadas em caixas pretas no fundo dos cofres das empresas e, por fim, o espanto e a morbidez são seus sentimentos predominantes diante dos dramas diários da criminalidade. Segurança Pública para ela, é hoje, sinônimo de corporação em crise de hierarquia.
Embora não seja possível retornar pela senda que se desfez, é possível que se possa fazer um novo roteiro de volta. No entanto, a primeira condição é muito dolorosa e, quiçá, inadmissível para a classe média (verifique-se o seu endividamento por cheques “pré” e “especiais”): reconhecer que tornou-se pobre e que esta situação recebeu a nobre alcunha de “estabilidade econômica”.