No Fantástico desse último domingo foi exibida uma matéria sobre Max Oderich, um garoto aparentemente de classe média, que foi assassinado a uma semana da sua festa de formatura. A matéria é especialmente comovente por exibir vídeos caseiros da sua vida, desde o nascimento até o intercâmbio no exterior, com as imagens de seu primeiro passo, sua paixão pelo carro do pai, sua vida no Canadá, etc.
Fiquei imaginando como aqueles pais conseguiram ficar de pé quando, durante a cerimônia de formatura do filho morto, uma semana depois da tragédia, foram receber o diploma no lugar de Max. Acho que eu não suportaria o peso da tristeza, do absurdo, da revolta e das lágrimas.
Mas depois de passado o efeito das imagens, percebi, mais uma vez, algo que sempre me intrigou. E fiquei, como todas as vezes, me perguntando por que a sociedade fica tão mais chocada quando um universitário é assassinado, e por que essa mesma sociedade é tão fria quando o garoto assassinado não faz ou não tem um curso de terceiro grau. É bem provável que você, que lê agora o que eu digo, esteja indignado com meu questionamento, e já esteja decidindo parar de ler por aqui. Talvez pior do que isso: você deve estar questionando meu caráter e provavelmente me chamando de babaca, desses que aproveitam qualquer oportunidade pra ser “do contra” ou esculhambar a mídia, principalmente quando falamos da Globo.
Mas juro que não é isso. Se você está revoltado, eu também estou. Porque percebo, com tristeza, que até morrendo um universitário tem tratamento diferenciado. “Os outros” deixam tanta saudade quanto ele, mas suas mortes não são tão inesperadas, pelos mais diversos motivos. A morte de milhares de africanos é absurda, mas não choca mais ninguém. A morte de meio americano choca o mundo. Assim é na nossa sociedade. A morte do pangaré que nada vai ganhar na vida não choca como a morte de um puro-sangue que tem um futuro promissor pela frente. Estou mentindo? Será que você não se interessou por esse texto por causa do título? E se fosse “Favelado morto” ou “Desempregado morto”?
Por favor não misture as bolas, eu não estou falando dos pais do Max, nem dos amigos, da faculdade, dos que perderam uma pessoa querida. Conheço pais que perderam filhos de forma igualmente estúpida e nunca julgaria qualquer atitude vinda deles. Acredito, sim, que esse tipo de matéria tem suas virtudes, por comover o público, alertar para a violência, mostrar a guerra em que nos encontramos, como disse o pai do Max na matéria. Nisso eles só tem a ajudar, a somar para que o país comece a sentir necessidade de se mexer pra mudar as coisas.
Mas por que terminamos com a sensação de que só os “jovens promissores” deixam saudades? Por que só o assassinato de um garoto universitário choca tanto o país? Será que não estamos elegendo apenas os que “têm futuro” como indispensáveis ao nosso convívio? Lembro do pai do Max comentando que a formatura era o maior sonho do filho. Será que não é o sonho de todos, especialmente daqueles que não tiveram a sorte de ter pais como os do Max?
Eu gostaria de pensar diferente, e notar também que a ausência dos que foram assassinados sem ter diploma é sentida. E ela é, assim como a ausência do Max é. Quando um garoto morre na periferia, na favela, no sertão, nada se comenta. E quando nos damos ao trabalho de dedicar uma frase ao fato, dizemos algo como “na favela a morte não choca tanto porque as drogas, o tráfico e a vida bandida só podem levar a isso”. Mas você concorda com isso? E os garotos de favela que nunca se envolveram com drogas, com o tráfico e com a vida bandida, e mesmo assim foram assassinados? São diferentes do Max? Deixam menos saudades que o Max?
O Max deixou saudades, morreu dias antes de realizar um sonho, o sonho da formatura. Sua curta vida foi resumida no Fantástico. Comoveu certamente o país inteiro. Mas, mais infelizmente ainda, a matança vai continuar, a guerra vai continuar, e vamos continuar esperando que o próximo valioso universitário morra durante um assalto para que nos choquemos de novo. Até lá, podem morrer os outros, porque certamente serão, em sua maioria, pessoas que convivem num ambiente podre, sem escola, sem valores, sem intercâmbio no exterior, sem faculdade. Talvez seja essa a sociedade que sempre tivemos e teremos. Uma sociedade em que ser comum significa fracasso, derrota. E a morte daqueles que deixaram de ser “apenas mais um na multidão” choca, revolta, comove. Uma sociedade pobre, deseducada, com baixíssimo índice de universitários, quase tão raros no Brasil quanto os pandas da China. Enquanto forem os ursos comuns os trucidados, tudo bem, é a vida. Quando for outro panda, a equipe do Fantástico aparecerá. E mais uma vez vamos, comovidos, ver que a morte da maioria merece uma nota nas páginas policiais, e a de outros merece a primeira página. A diferença não é muito grande, não passa de três palavrinhas: grau de escolaridade.
Dessa história a maior das lições é o choque do pai de Max, ao constatar que estamos em guerra no Brasil. E o pior: estamos perdendo essa guerra. Infelizmente muita gente já sabia disso há muito tempo, bem antes do pai do Max. Infelizmente muita gente já morreu sem canudo, sem homenagens, sem arquivo em vídeo, sem pai, sem mãe, sem ter conhecido o Canadá. A hipocrisia maior desse país está aí. Ninguém parece se incomodar com a matança, até que um panda morra por acidente. Mas quando o ambiente é de matança, é natural que alguns pandas morram no percurso. Enquanto a matança continuar, muita gente ainda vai chorar. Alguns com vídeos editados pela equipe do Fantástico, com aquele piano melancólico ao fundo e óculos escuros. Outros com nada disso, apenas a saudade e a certeza de que, apesar de seus filhos mortos terem sido tratados como ursos comuns, eles eram pandas também.
Meus sentimentos aos pais do Max. Força pra vocês. Meus sentimentos a todos os outros pais que perderam seus igualmente valiosos filhos e filhas. Vocês não vão aparecer no Fantástico, mas sofrem a mesma dor, eu sei.