Algumas madrugadas, não todas, escondem musas que vagam em busca do tempo preciso em que os rios param. No silêncio de cães, gatos e grilos, sem a cantilena incômoda desses querelados, lampeja surpreendente ciranda de estrelas. O breu do quarto é quebrado por relâmpagos vindos de imagens longínquas de um filme clássico em preto e branco, entremeado de comerciais de uísque e cigarro. Lá está a mocinha a engrolar algo no ouvido de um homem mais velho. A legenda do filme vem em cirílico. Filme mudo talvez seja melhor do que filme sem imagem. Oh, dúvida! Gosto mais da música de fundo a distrair o enredo. Também confesso que não resisto à voz súplice do vendedor noctâmbulo a vender a felicidade num maço de cigarros. Gentil moço, como uma avó ao neto: "Não saia sem o guarda-chuva!". Acho lindo quando, no fim do comercial, avisa: "O cigarro produz câncer". Que responsabilidade a desse moço de, nesses tempos de gozo, avisar o perigo. Moço corajoso! Agora tenho certeza de que nenhuma bomba explodirá em edição extraordinária. Bomba que é bomba é a que anuncia o falecimento de alguma celebridade. Essas que explodem de verdade entristecem, mas não comovem. Ai, que o cobertor traz outra certeza: ficar em posição fetal ao luar de uma televisão ligada. Sou a cara da mulher que tem seus momentos de catar rachaduras em paredes. De madrugada, todos os olhos são lentes de microscópio, tudo dum tamanho! Quem mais gosta de viver em perigo são as baratas. Saem à noite, apostando nos desmaios dos insones. A barata corre parelhas com a televisão na arte de trazer a certeza ao mundo. Nada mais certo e concreto do que uma barata solerte escapando pelas frestas ou passeando faceira no meio da sala. Vida sem metáfora. Tortura é manter um relógio na sala indefesso em seu mister de contar o tempo que falta, grande pesadelo. Daqui a pouco, tocará a campainha e um florista entregará um buquê de flores do campo. A cara do florista é a mesma cara de quem recebe flores de madrugada. Pior flor é a que não tem perfume mas conserva sub-reptícios espinhos. Duram tanto essas flores! E não pedem mais do que um copo de água encardida e morna. No miolo, viceja o erro, o cérebro da flor. Os minutos desfilam na sala, pipocam pernilongos zumbizantes. Pontos e pontos. Não convém abrir álbuns de fotografias. Reverência aos mortos.