AINDA A REBELDIA
Muita gente acha, e diz, que a rebeldia é coisa de criança, ou seja, infantilidade no adulto. Não é bem a verdade. Na criança, a rebeldia é teimosia, birra, algo que deve ser compreendido mas também corrigido. No adulto, a rebeldia é – ou deve ser – resistência a algo com que ele e muitos não concordam, revolta com causa justa e de interesse sempre coletivo.
A rebeldia, no adulto consciente, está em oposição direta ao conformismo. Ao levantarmos um questionamento, ouvimos quase sempre o comentário conformista: é assim mesmo, não adianta brigar, é deixar como está. Entre essas desculpas, a mais comum e mais comprometedora é: quê fazer?; a vida é assim; o mundo sempre foi assim; eu não posso reformar o mundo. Grande estupidez, pois o mundo somos nós e temos o poder de transformá-lo. Ou, lamentavelmente, abrimos mãos desse poder por covardia, cansaço, omissão. Porque não temos coragem de ir à luta ou, tomados pelo desânimo, dela desistimos.
A rebeldia, ao contrário, sempre leva à busca de soluções, não permanece nas lamentações, por justas que sejam. A rebeldia quer mudanças e se entrega à luta. E o rebelde inteligente e ativo, quase sempre é chamado de louco. Daí uma afirmação sempre repetida: só os loucos transformam o mundo. O que não deixa de ser verdade. Hoje a história nos conta as realizações de tantos que, à sua época, foram chamados de loucos. Aqueles que despertaram a revolta em almas massacradas, revolta que as tirou da letargia, que as levou ao encontro de outras almas igualmente angustiadas e sequiosas, provocando a revolução necessária para a mudança.
A primeira condição para abraçar uma luta é o senso crítico, a capacidade de refletir sobre ditos e fatos à nossa volta e, claro, de tirar conclusões inteligentes. Se não tivemos uma formação que incentivasse o senso crítico e a reflexão, nunca é tarde para começar através da auto-educação. Para isso somos dotados de inteligência.
Vejamos um exemplo até corriqueiro. Todos falamos em democracia e reivindicamos seu cumprimento. Entretanto, muita gente acha que democracia é cada um fazer aquilo que quer. E não é, isso seria baderna. Democracia exige disciplina, é a disciplina que nos harmoniza na democracia verdadeira. Seu sentido profundo é muito pouco entendido. Assim como poucos alcançam o sentido profundo da liberdade, que, acima de tudo, implica respeito. Democracia e liberdade são sonhos coletivos.
Se temos senso crítico, isso será rapidamente assimilado. Basta formar nossas próprias opiniões e colocá-las a serviço da coletividade, não permitir que mentiras ou verdades disfarçadas desçam-nos goela abaixo sem um questionamento sério, que não saiamos por aí repetindo frases de efeito só porque são bonitas, transformando-as levianamente em verdades apenas porque a maioria as repete.
A rebeldia não é uma atitude estereotipada: não creio em nada; não aceito e pronto. A famosa afirmação “se há governo, sou contra”, leva a um radicalismo desmedido que não conduz a lugar nenhum e ainda reforça os “governos desgovernados”. A rebeldia é a luta amadurecida ao sabor de argumentos bem pensados, pesados e assimilados. O direito à liberdade exige independência moral e intelectual, sempre com isenção e imparcialidade.
E o escritor tem papel fundamental na formação de qualquer povo. Se convicto e equilibrado, muito contribuirá na formação de opiniões em seu meio, provocará as polêmicas necessárias e denunciará erros e injustiças. Portanto, será sempre o rebelde criativo a serviço de uma sociedade, aquele que põe a mão na massa e gera rebeldes igualmente convictos e verdadeiramente lutadores.
Minha pretensão, aqui, é levantar a questão em seu lado positivo. Adultos que somos, não paremos na rebeldia da infância, mais entendida por turronice... Menos ainda na adolescência, quando a rebeldia é um ingrediente quase obrigatório na formação dos sujeitos, mas uma rebeldia claudicante e tendendo sempre ao exagero. Acertemos o passo. Façamos um rigoroso exame de consciência a fim de percebermos em que patamar se encontra nossa rebeldia espontânea. Tentemos orientar essa rebeldia – que sempre existe em nós e nos fascina – para as causas justas de nossas vidas dentro de uma comunidade cujo anseio é acertar.
Estou pesquisando o escritor português Miguel Torga, poeta e prosador, nosso contemporâneo (1907-1995), famoso rebelde que atuou pessoalmente em sua pátria e deixou registro de suas idéias numa vasta obra. Idéias atualíssimas que encontram eco nas almas rebeldes. Estou encantada em conhecê-lo. E deixo para o leitor um poema seu dirigido aos poetas:
“VOZ ACTIVA
Canta, poeta, canta!
Violenta o silêncio conformado.
Cega com outra luz a luz do dia.
Desassossega o mundo sossegado.
Ensina a cada alma a sua rebeldia.”
Recomendo a leitura de Miguel Torga. Ele fala para nós, que entre nós esteve até 8 anos atrás. E que sua rebeldia nos contamine a todos...
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