Considerações sobre a obra ‘Perto do Coração Selvagem’,
de Clarice Lispector
O Desconexo Temporal e...
Uma das claves da leitura de Clarice Lispector é a intersecção do passado com o presente. Passado e presente caminham simultaneamente. O fluir do tempo cronológico é subjetivo. Ele é maleável e obedece aos sentimentos do personagem.
“Outra coisa: se tinha alguma dor e se enquanto doía ela olhava os ponteiros do relógio, via então que os minutos contados no relógio iam passando e a dor continuava doendo. Ou senão, mesmo quando não lhe doía nada, se ficava defronte do relógio espiando, o que ela não estava sentido também era maior que os minutos contados no relógio. Agora, quando acontecia uma alegria ou uma raiva, corria para o relógio e observava os segundos em vão.” (Perto do Coração Selvagem. Francisco Alves Editora, p. 22).
Passado remoto e passado próximo, passado e presente se misturam, nem sempre facilmente acessíveis a uma análise que busque nexos causais externos. A exemplo de Perto do Coração Selvagem, a primeira parte obedece a esse processo que começa por desnortear as expectativas do leitor.
... a Linguagem Metafórico-Metafísica.
Clarice Lispector preocupou-se com a camada sensível da linguagem, fato não conseguido pelos instropectivos da época. Sua linguagem supera o tempo cronológico e isso a faz desligar-se da fábula como mera narração seqüencial, ao mesmo instante que é remetida à trama como a disposição do material à vontade do escritor. Clarice, também, rebela-se contra a linearidade discursiva do texto.
Podemos centrar seu estilo no pólo metafórico-metafísico da linguagem. Metafórico, antes de tudo, porque utiliza um vasto recurso sinestésico, enriquecendo a noção da palavra, propiciando, assim, uma personificação e animação das coisas.
“O gosto é cinzento, um pouco avermelhado, nos pedaços vermelhos um pouco azulado, e move-se como gelatina, vagarosamente.“ (PCS, p. 29).
Os símiles ou comparações, presença marcante na obra da romancista, são perceptíveis na ocorrência constante dos termos “como” e “como se”, realçando uma atitude de estranhamento por parte do leitor.
“Dentro de si era como se houvesse a morte, como se o amor pudesse fundi-la, como se a eternidade fosse a renovação.” (PCS – p. 43).
“... e então nada impedirá meu caminho até a morte-sem-medo, de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo.“ (PCS – p. 224).
O estilo poético caracterizado pela adjetivação espirituosa e filosoficamente profunda marca seu caráter metafísico. A subjetividade se cria para conferir dramaticidade à narrativa. Infiltram-se em Joana – protagonista da obra – as indagações ontológicas da romancista. Tais indagações justificam a importância do monólogo interior e do discurso indireto livre na busca da gênese do pensamento e sentimentos dos personagens.
“Muito bem, agora pensar em céu azul, por exemplo. Mas sobretudo donde vem essa certeza de estar vivendo? não, não passo bem. Pois ninguém se faz essas perguntas e eu... Mas é que basta silenciar para só enxergar, abaixo de todas as realidades, a única irredutível, a da existência. E abaixo de todas as dúvidas – o estudo cromático – sei que tudo é perfeito, porque seguiu de escala a escala o caminho fatal em relação a si mesmo.” (PCS – p. 29).
“A água cega e surda mas alegremente não-muda...”
Aquilo que é pequeno, insignificante ou vil, aos olhos de uma existência universal, no mundo de Clarice Lispector, torna-se objeto de uma visão penetrante, que se estende além da aparência. As coisas possuem um caráter dual: o comum, exterior, produto do hábito; e o interno, profundo, do qual o primeiro se torna símbolo.
Temos aí uma exígua idéia do que seja o termo epifania que, em Clarice, é procedimento do seu romance metafísico. A epifania constitui uma realidade complexa, perceptível aos sentidos, sobretudo aos olhos (visões), ouvidos (vozes) e até ao tato.
É mister, ainda, aprofundá-la em James Joyce. O título de seu primeiro romance, Perto do Coração Selvagem, inspira-se na obra Retrato do Artista Quando Jovem, que diz textualmente:
“Ele estava só. Estava abandonado, feliz, perto do selvagem coração da vida.”
A exposição estética de Joyce está bem detalhada no esboço inicial dessa obra e o próprio jovem narrador formula uma definição de epifania:
“Por epifania, ele entendia uma súbita manifestação espiritual, que surgia tanto em meio às palavras ou gestos mais corriqueiros quanto na mais memorável das situações espirituais. Acreditava fosse tarefa do homem de letras registrar tais epifanias com cuidado, pois elas representam os mais delicados e fugidios momentos da vida.”
Para expor suas idéias estéticas, esse narrador perfaz os três requisitos propostos por São Tomás de Aquino: integritas, proportio e claritas, que se traduzem por integridade, harmonia e radiância.
Há que se definir, também, a técnica cinematográfica de Joyce. Essa técnica foi uma contribuição para uma série de mudanças que condensaram a narrativa do conto e substituíram o enredo pelo estilo, transformando o narrador num perito de câmera fotográfica.
Diferentemente de Clarice, em Joyce a epifania atinge o nível micro estético da criação das palavras paisagens, a ponto de conter todo um universo metafórico num só vocábulo:
“Silvamoonlake
(silva = silva (do latim, selva) e
silver = prata, moon = lua, lake = lago)”.
Devido à técnica epifânica ter se incorporado à linguagem de Joyce, o autor não precisou mais falar nela. Ele a assumiu tão intrisecamente que não precisou mais nomeá-la, nem defini-la.
Clarice jamais atingiu tal nível e sequer usou o termo epifania, embora seja o procedimento essencial na produção de suas obras. O episódio epifânico mais significativo de PCS é o capítulo “O Banho”, momento em que Joana descobre, deslumbrada, o despertar de sua puberdade.
O que seria um acontecimento trivial, reveste-se de uma atmosfera de glória e de uma visão transfigurada. O contato com a água, a descoberta do corpo, a sensação de frescura, e, posteriormente, o sentimento de incerteza e instabilidade da adolescência, adquirem um brilho especial e deslumbrante no jogo de palavras de Clarice.
Seus momentos epifânicos não são, necessariamente, transfigurações do banal em beleza. Existem também as epifanias críticas e corrosivas; epifania das percepções decepcionantes, seguidas de náusea ou tédio.
“Um dia, antes de casar, quando sua tia ainda vivia, vira um homem guloso comendo. Espiara seus olhos arregalados, brilhantes e estúpidos, tentando não perder o menor gosto do alimento. E as mãos, as mãos. Uma delas segurando o garfo espetado num pedaço de carne sangrenta – não morna e quieta, mas vivíssima, irônica, imoral -, a outra crispando-se na toalha, arranhando-a nervosa na ânsia de já comer novo bocado. As pernas sob a mesa marcavam compasso a uma música inaudível, a música do diabo, de pura e incontida violência. A ferocidade, a riqueza de sua cor... Avermelhada nos lábios e na base do nariz, pálida e azulada sob os olhos miúdos. Joana estremecera arrepiada diante de seu pobre café. Mas não saberia depois se fora por repugnância ou por fascínio e voluptuosidade. Por ambos certamente. Sabia que o homem era uma força.” (PCS – p. 26).
“O que vai ser de Joana?”
A exemplo de todas suas obras, PCS também possui uma narrativa gnoseológica, pois tem como objetivo a busca do sentido da vida, do ser, das coisas e do mundo, penetra no mistério que cerca o homem.
O romance compõe-se de duas partes. A primeira é narrada em forma de flashes associativos. Os capítulos da vida adulta de Joana se intercalam, um a um, entre os capítulos de sua infância; esta não é, no entanto, apenas uma lembrança, mas uma presença recuperada, ou melhor dizendo, a “presentificação” do passado.
A segunda parte não excede à primeira em ação romanesca: trivial triângulo amoroso que se estira em retângulo (Joana, Otávio, Lídia e, posteriormente, “o homem”), de plana dramaticidade, mas funda instrospecção. Contudo, pouco importa a estória, o nível da ação dramática. O núcleo da busca da protagonista é apontado pelos símiles – freqüentemente inalcançáveis aos recursos da lógica comum: “... serei leve e vaga como o que se sente e não se entende, me ultrapassarei em onda, ah, Deus”.
A estrutura metafórica de Clarice se plasma no jogo semântico das palavras, tão contínuo no decorrer da narrativa e que designa os quatro elementos: terra, ar, fogo e o mais fecundo deles, a água.
A terra é o habitat da vida e do mundo orgânico: plantas e os bichos. Também há o fogo, cuja área semântica recolhe o vermelho, o sangue, as lavas, a púrpura, a febre, o agreste, a estrela (A Hora de Estrela), o gosto do mal, mastigar vermelho, engolir fogo adocicado.
“Não sinto loucura no desejo de morder estrelas, mas ainda existe a terra. E porque a primeira verdade está na terra e no corpo. Se o brilho das estrelas dói em mim, se é possível essa comunicação distante, é que alguma coisa quase semelhante a uma estrela tremula dentro de mim.” (PCS – p. 79/80).
O ar: a liberdade fluida contra a terra, capacidade para o mal, além de associar-se às sensações boas.
“Mal posso acreditar que tenho limites, que sou recortada e definida. Sinto-me espalhada no ar, pensando dentro das criaturas, vivendo nas coisas além de mim mesma.” (PCS – p. 80).
Finalmente a água, como citada acima, o mais profundo dos elementos, encontrado não só em PCS, como também em toda sua obra. Joana, como Ulisses (Uma Aprendizagem ou Livro dos Prazeres), é um ser de água.
À área semântica da água, pertencem o banho, o mar, a sede e os verbos mergulhar, flutuar, sonhar. Pode significar refúgio, calmante, poder, prazer, paz, vida, morte.
“A água corria pelos seus pés agora descalços, rosnando entre seus dedos, escapulindo clara como um bicho transparente. Transparente e vivo... Tinha vontade de bebê-lo devagar.” (PCS – p. 48).
“A água cega e surda mas alegremente não-muda brilhando e borbulhando de encontro ao esmalte claro da banheira. O quarto abafado de vapores mornos, os espelhos embaçados, o reflexo do corpo já nu de uma jovem nos mosaicos úmidos das paredes.
A moça ri mansamente de alegria de corpo. Suas pernas delgadas, lisas, os seios pequenos brotaram da água. Ela mal se conhece, nem cresceu de todo, apenas emergiu da infância. (...)
O quarto de banho é indeciso, quase morto. As coisas e as paredes cederam, se adoçam e diluem em fumaças. A água esfria ligeiramente sobre sua pele e ela estremece de medo e desconforto.” (PCS – p. 76/77).
É necessário frisar também que a ação romanesca está centrada no conflito interior da protagonista, sendo as outras personagens instrumentos a serviço desse conflito. Em decorrência disso, a conversação será fugida e acidental; será um monólogo a dois e o monólogo é o diálogo da consciência consigo mesma.
“Talvez por que eu seja infeliz, medo de se aproximar. Talvez seja isso: medo de ter que sofrer também...
- É infeliz? Indagara a outra baixo (Lídia).
- Mas não se assuste, a infelicidade nada tem a ver com a maldade, rira Joana. – O que houve afinal? Não estou presente, não estou presente, o que houve, o cansaço, vontade de sair chorando. Eu sei, eu sei: gostaria de passar pelo menos um dia vendo Lídia andar da cozinha para a sala, depois almoçando ao seu lado numa sala quieta – algumas moscas, talheres tilintando -, onde não entrasse calor, vestida num largo e velho robe florido. Depois, de tarde, sentada e olhando-a coser, dando-lhe aqui e ali uma pequena ajuda, a tesoura, a linha, à espera da hora do banho e do lanche, seria bom, seria largo e fresco. Será um pouco disso o que sempre me faltou? Por que é que ela é tão poderosa? O fato de eu não ter tido tardes de costura não me põe abaixo dela, suponho. Ou põe? Põe, não põe, põe, não põe.” (PCS – p. 165).
O itinerário de Joana começa na infância, atravessa a difícil e gloriosa puberdade, liberta-se com o amante anônimo, para afinal desdobrar-se na viagem, pela “água”, itinerário aberto para a nova pesquisa que se anuncia. A morte, de algum modo enunciada no monólogo final, sugere que as duas pontas da vida de Joana, infância e morte, o grande sintagma daquela narrativa, estão unidas por estranha simbiose.
A Aspiração ao “Qualissigno”
Existe algo muito interessante no texto clariceano no seu contínuo deslocamento para recuperar o sensível do pólo da vida, o sensível do “qualissigno” ou do signo da qualidade.
Os signos que retratam, imitam seu objeto, mantendo com ele pelo menos um traço em comum, são os ícones. Os ícones da escritura clariceana são principalmente metáforas, trabalhadas e utilizadas, no tornar da nossa língua mais flexível, mais aberta e afinada ao questionamento metafísico em ficção.
Essa pode ser a maior contribuição de Clarice para nossa literatura. Porém, enriquecendo a camada sensível da língua, ela ainda possui uma larga lista de outras contribuições: a diluição dos gêneros, a estranheza das personagens, a dissolução do herói em palavra, a quebra do processo narrativo, a rarefação e a minimização do enredo, a ruptura do tempo linear e do espaço físico...
Bibliografia
LISPECTOR, Clarice. Perto do Coração Selvagem. Francisco Alves Editora.
_________ A Hora da Estrela. Francisco Alves Editora.
_________ Uma Aprendizagem ou Livro dos Prazeres. Francisco Alves Editora.
SÁ, Olga de. Escritura de Clarice Lispector. Vozes.