Quais são os limites do fanatismo? Talvez eles nem existam. Seja no Iraque, na faixa de Gaza ou nas arquibancadas de um estádio, levá-lo às últimas conseqüências costuma resultar em tragédias. Em “Corações Sujos”, o jornalista Fernando Morais conta um capítulo quase desconhecido da história do Brasil e mostra como o fanatismo, disfarçado de nacionalismo e devoção à pátria, pode ser apenas um dos pretextos para a violência.
O interessante é que aqui não se fala da violência contra o torcedor do clube rival, nem entre palestinos e israelenses, muito menos entre católicos e protestantes da Irlanda do Norte. A intolerância se passa em níveis de intimidade muito maiores, chegando a ser um conflito quase que particular.
O livro conta a história – real – da Shindo Renmei, organização secreta que surgiu alguns meses após a rendição do Japão e o conseqüente fim da Segunda Guerra Mundial. A “Liga do Caminho dos Súditos”, sua tradução para o português, era formada por imigrantes japoneses que moravam no estado de São Paulo e jamais acreditaram – ou quiseram acreditar – na rendição de sua pátria. Afinal de contas, em 2600 anos de guerras, o país do sol nascente nunca havia sido derrotado.
Seguidores cegos das tradições e costumes do “invencível” Japão e súditos leais do imperador Hiroíto, os integrantes da Shindo eram constantemente tachados de loucos e alvos da chacota de brasileiros. Tal como eremitas que voltaram à civilização, negavam-se a aceitar as notícias de rádios e jornais que divulgavam a derrota japonesa. Para eles, tudo era produto da propaganda americana, que teria como objetivo desmoralizar os japoneses de todo o mundo.
Se tivessem ficado somente no discurso “vitorista” – que propagava a vitória do Japão – não teria sido tão trágico. Mas a Shindo não era só discurso. A organização pretendia eliminar todos os “corações sujos” ou “derrotistas” – imigrantes japoneses “esclarecidos”, que tinham consciência da derrota de seu país e, quando perguntados, não hesitavam em confirmá-la. Para a Shindo, verdadeiros traidores da pátria, que deveriam pagar por esse crime. Com a vida.
Com poucas palavras, a sentença de morte era comunicada pessoalmente ao condenado, muitas vezes por um amigo de infância que, apesar da amizade, precisava honrar a pátria. “Lave sua garganta” era o aviso para a vítima estar pronta. Se não quisesse morrer pela mão de um dos matadores da Shindo, lhe era dada a oportunidade de “purificar sua alma” por conta própria, praticando o suicídio.
A série de atentados durou mais de um ano e teve um saldo de 23 imigrantes mortos e quase 150 feridos. Em pleno território brasileiro, uma guerra de japoneses contra japoneses, na qual 80% da colônia apoiava a Shindo e sua limpeza ideológica. Mesmo não fazendo parte da seita, muitos preferiam ser torturados pela polícia a confirmar a derrota do Japão. Tudo em nome de uma honra e de um orgulho questionáveis. Neste ponto, lembramos dos absurdos confrontos em campos de futebol ou entre seguidores de diferentes religiões.
“Corações Sujos”, Prêmio Jabuti 2001 da categoria “não-ficção”, é mais um ótimo livro-reportagem de Fernando Morais, um especialista neste tipo de literatura. Autor de “A ilha”, “Olga” e “Chatô, o Rei do Brasil”, mais uma vez ele soube transformar longas pesquisas e várias dezenas de entrevistas em uma obra que pode perfeitamente ser lida como um romance. Tanto pelo texto envolvente como pela ótima história que, de tão absurda, parece inventada. A vantagem é que, acreditando ou não, você não precisa se preocupar com as conseqüências. Pelo menos enquanto estiver longe de fanáticos...