Levei a mão ao bolso e, pelo tato, deparei-me com um pequeno pedaço de papel. Sabia que era de anotações, mas não recordava o que estava anotado. Por certo não era muito importante. Para as coisas mais importantes costumava, a fim de não esquecê-las, além de anotá-las, envolver uma fita durex no dedo indicador como se fosse um anel. Esse método de alerta é bastante antigo e funciona.
Fiquei por um certo tempo a remexer aquele papel. Como estava parado num trânsito interrompido por causa de benfeitorias viárias, resolvi tirá-lo do bolso. Com uma só mão fui desenrolando-o. Pelo primeiro item lembrei-me logo de que eram seis anotações.
A primeira, sem explicação, dizia de uma mulher que, no clube, com trajes apropriados de clube, carregava uma sacola nos ombros e na sacola uma raquete de tênis, enquanto a quadra de tênis ficava bem longe do salão e o estacionamento de carro bem mais próximo da quadra. Entre parênteses anotei. É chique jogar tênis. A segunda anotação fazia referência a um espalhafatoso senhor que dirigiu ao garçom o seguinte pedido:
“Traga-me um espetinho de cadáver bovino, preferencialmente um contra filé”. Anotei do lado da frase a palavra “dissimulador”. O terceiro item fazia menção a uma senhora já de idade que chupava uma bomba de chimarrão. Anotei entre aspas a palavra "destoante”. Sabia que aquele ato insistia em me dizer algo mais, como por exemplo, uma atitude separatista, mas naquele momento não tinha muita convicção.
A antipenúltima anotação referenciava a uma cadeira de rodas e seu usuário de perna quebrada. Maldosamente, do lado, escrevi “filhote de clube”; a penúltima dizia respeito a um oftalmologista conhecido que explicava a luminosidade da água da piscina face aos raios do sol e o reflexo do reflexo nos olhos e fazia de conta que não me via. Entre aspa, de maneira sentenciosa, apenas anotei a palavrinha “cego”; e, por último, uma só pergunta: “Por que ao pensar em Carlos, vi Carlos?”.
Não sabia como costurar aquelas anotações, quanto mais tecê-las. Ainda, com uma só mão, embolei aquele pequeno papel com o ímpeto de jogá-lo fora. Assim fiz, como faço com todos os papéis de propaganda que recebo nos sinaleiros de trânsito das esquinas. Embolei-o e o joguei temporariamente no assoalho do carro, como fiz, certa vez, com uma pena de pavão.
Embora fosse preciso trezentas e setenta e duas palavras com mil oitocentos e setenta caracteres, formando cinco parágrafos, ao todo, de vinte e oito linhas, tudo foi muito rápido. O sinal abriu, acelerei o carro, e parti rumo ao meu destino.
Lá vem você me dizer ou perguntar por que eu não li este bilhete só com os olhos e em seguida, embolei-o, poupando-o de extensa leitura? Explicável! Lembre-se de que estamos a tratar de um caso de consciência e fome. E quando a primeira remói, gastamos muito tempo com as justificativas pessoais, às vezes até imbecis e quando a segunda dói não há quem possa ser direto ou fazer rir.
Logo à frente, deparo-me com uma blitz dos guardas municipais. Novos e criteriosos, a fila se alonga, obrigando-me a parar o carro. Mais uma vez, inquieto, levo a mão ao bolso. Lembrado que já havia feito isto na parada anterior, mas que havia conferido o bolso direito, naturalmente com a mão direita, troquei de mão ao volante, e conferi o bolso esquerdo. Deparei-me com outro papel menor do que o primeiro. Retirei-o e ocupando apenas o polegar e o indicador, o abri e o li. Estava escrito “carteira profissional” e mais nada. Recordei-me imediatamente que precisava recorrer a ela para fornecer uns dados para completar outros dados que comporiam, para o sistema, o histórico de minha vida.
Ao chegar em casa, fui direto ao armário e retirei a carteira. Folhei-a. Parei na folha que continha a minha foto. Orgulhei-me da minha mocidade. Achei-me bonito, mas, mesmo estando a sós, para não parecer narcisista para mim mesmo, virei rápido a folha. Na folha seguinte vi que ela fora emitida em 23 de janeiro de 1974. (Só para situar o leitor, hoje somo pouco mais de quarenta anos.) Perfeitamente possível, fiz uma viagem de volta àquele dia. Lembrei-me de que estava feliz. Acabara de pegar a carteira no Inps. O emprego já estava garantido. No outro dia assumiria uma função no banco do Gastão Vidigal, um lorde paulista, por sinal, discreto; discretíssimo era o dono do Finasa. Dependia apenas daquele documento. Com ela em mãos, muito bem guardado em um envelope, fui lanchar na lanchonete do supermercado Alô Brasil. Em suma, havia pouco tempo que eu chegara aqui, dado-me bem e não podia reclamar. Entrei, lanchei e depois fui conferir, por curiosidade, as mercadorias nas prateleiras até chegar às portas de saída, as mesmas de entrada. Sai bem devagar pelo estacionamento de carros. Não tinha nada para fazer naquele dia, a não ser aguardar o dia seguinte que seria o dia do meu primeiro trabalho. Fui atraído por um barulho de latões. Notei que no fundo do estacionamento havia um depositário de lixo. Dirigi-me para lá. Fiquei atônito ao ver que homens, mulheres e crianças remexiam aquele lixo a procura de resto de comida para se alimentarem. Achei aquilo horrível. Queria ter, em mãos, uma máquina para fotografar aquela cena. Uma mulher descolava do pedaço de pão que catara no lixo, fiapos de papéis higiênicos usados e depois retirava de dentro dele o ketchup azedo quase azul misturado com borras de café, comia um pedaço do pão, como se fosse cúmplice, daquele que comeria o outro pedaço, o seu filho de braço, e depois bebia um gole d’água.
Vinha de uma cidade que quando a fome apertava, dava-se um jeito. Arrancava umas mandiocas no quintal do vizinho, ia até o córrego bem próximo, à luz da cidade, e pescava uma meia dúzia de bagres gordos. A minha mãe mesmo tinha o seu jeito, aliás, deu-se um jeito de driblar a fome quando ela bateu à porta. Por meses comeu-se refogado de mamões verdes com arroz. Fome lá era nestas circunstâncias para melhor. Quero dizer que eu não conhecia a fome. Aquela que degrada o homem, que faz dele uma ratazana de lixão.
Apagou-se logo da minha memória aquela triste cena. Não seria o salvador do mundo. Desde que o mundo é mundo existe a fome; pelo menos, soube disso, depois, que era assim desde que eu nasci e até o alcance da minha literatura. O francês Roger Bastide em “Os dois Brasis” escreveu, já em 1930, que dez por cento da população brasileira eram abastadas e noventa por cento viviam na miséria. Isso um ano depois que meu pai nasceu. Deveras, o problema da fome e aquele estado de coisas, as ratazanas no lixão, não eram problemas meus. Estava desempregado, e só no outro dia, poderia garantir também o meu pão. E depois que havia pago o meu sanduíche, notei que não sobrara muito para os dias que viriam até receber o meu primeiro salário. Por outras, não que eu quisesse ser moralista — me fizeram moralista, vivia um regímen e estava convicto, ainda que não soubesse bem a razão e tampouco explorasse a racionalidade, que a carteira profissional anotada era o salvo conduto contra a fome e eu tinha a minha, anotada.
Não quis mais prosseguir olhando as folhas. Cada folha daquela carteira já repleta de dados contaria toda a minha vida. É um dos méritos da carteira profissional, denunciar a sua vida; se você foi um pássaro de galho em galho, se foste acomodado; se cresceste ou se estagnaste; ou se você simplesmente a jogou num baú porque tornara-se um profissional liberal.
Estava certo de que a carteira era o espelho de minha vida. Como já dito, não quis prosseguir passando as suas folhas. Até que seria bom. Ali estavam registrado referências a mudanças de serviço, aumentos de salários, méritos, por conseguinte, cada folha seria uma história para contar. Mas junto com as folhas brancas preenchidas com a tinta da caneta, o tempo, peremptório, se encarregou de preencher com anos, a minha vida. Sabia, de antemão, que ao chegar ao final dela, como gostava de fazer com revistas e jornais, folheando do fim para o começo, quero dizer, ao chegar, de novo, à primeira folha, aquele retrato ali colado, não era mais o meu retrato, diferente, pois, na essência e na substancia. Por outro lado uma carteira nem sempre é um amontoado de anotações virtuais; virtuais no sentido das virtudes. Poderia representar e, até assumo que era o meu caso, ela também representava um poço de mesquinharia a traços de ações egoístas. Era preciso tripudiar, falar mal, criticar, subornar, de maneira diplomática, para que uma linha fosse preenchida com “mérito”. Poucos eram os promovidos por mérito e entre eles haviam os prepotentes calçados com luvas de veludo. Folheá-la dava alegria, mas também doía.
Doía mais saber que uma carteira vazia, muito embora a minha estivesse repleta, correspondia, para a maioria, uma panela vazia. Mas só sabia —não que soubesse por mim, me fizeram saber—, que quem a tinha vazia era porque não queria trabalhar. Era um vagabundo. Escondia-me da fome, tanto da que poderia sentir quanto da que via, atrás de minha carteira de trabalho. Quando o departamento de pessoal a pedia, se não fosse para anotar férias, era um desespero. Poderia ser a anotação de um mérito, uma promoção, mas também poderia ser uma demissão. Então aquele livrinho amarelado, mas bem conservado, estava bastante impregnado em minha mente. Sabia contar passo a passo, sem folheá-la, as anotações nela contida; nunca uma advertência, mas uma demissão, que acabou sendo para mim uma advertência. Decidi que por pouco tempo fariam anotações naquela carteira.
No dia em que fechei, definitivamente, a minha carteira profissional, estava perto de um hotel em Belo Horizonte, e vi que um homem bebia água de sarjeta toda emporcalhada, com fezes e urina e que mais um monte de gente comia restos de alimentos dos latões. Constatei que havia evoluído como gente e que aquele homem que bebia aquela água gosmenta havia evoluído como rato de esgoto. Constatei também, embora repugnasse, não pela pessoa dele, mas pelo o meu paladar em relação ao gosto daquele caldo escuro que corria pela sarjeta aberta, que não me desviei dele e que ele já fazia parte do cotidiano de nossas ruas, com a sua cor ocre e com o seu cheiro acre.
A fome já havia virado uma epidemia no Brasil. Portanto, não me remoia mais com ela. Dispensava, pois, eu ficar folheando aquela carteira com rastro de fome. E a minha situação agora permitia, sem retórica, da cadeira de meu clube, observar a falsa tenista, o geriatra que gostava de churrasquinho de gato, a esnobe gaúcha, o filhote de clube, o oftalmologista cego do coração e o inacessível uberlandense, o Carlos.
Será que Lula vai nos comover com o projeto “Fome zero”? A fome zero, pela minha experiência, passa pela panela cheia que, por conseguinte, deriva de uma carteira cheia de anotações trabalhistas.