Saiu na Folha Online, na quarta-feira à noite: “Imprensa terá regras na cobertura da guerra, diz Pentágono”. As tais regras foram anunciadas pelo chefe de Estado-maior dos EUA, Richard Myers.
"Os jornalistas norte-americanos e estrangeiros serão levados com algumas de nossas tropas e, com certeza, terão regras que os impedirão de revelar questões operacionais sensíveis", disse ele. Os repórteres que acompanharem as tropas não poderão fotografar prisioneiros e nem dar informações sobre as operações sem aviso prévio.
Não é necessário ler mais de uma vez a notícia, distribuída pela agência de notícias France Presse, para saber que essas “limitações ao trabalho da imprensa” podem ser simplesmente traduzidas por “censura prévia”. O que causa estranheza é que a France Presse, importante e renomado órgão de imprensa, não fez o menor questionamento em relação a essa censura mal-disfarçada que também irá sofrer. A Folha de S.Paulo, seguindo o exemplo, limitou-se a reproduzir o texto da agência.
O livro Deus é inocente: a imprensa, não, do jornalista Carlos Dorneles, contribui imensamente para que possamos entender que tal passividade não é exatamente fruto de uma repressão ao trabalho da mídia, e sim de uma impressionante boa vontade da imprensa em relação à habitual sede de guerra de republicanos como George W. Bush.
Lançada no final do ano passado, a obra faz uma completa e incisiva análise da cobertura que a imprensa norte-americana fez de todas as atitudes do governo de lá, desde os atentados de 11 de setembro de 2001 até um ano depois.
Com a queda das torres gêmeas, como se fosse necessário, os jornalistas daquele país tomaram a frente do próprio governo Bush. Em questão de dias, primeiro sugeriram, depois pediram e mais tarde exigiram uma guerra contra quem quer que fosse. Uma vingança à altura para quem ousou desafiar a nação mais poderosa do mundo.
Para isso, era preciso esquecer da suspeita vitória de Bush nas eleições presidenciais. Transformá-lo de “presidente trapalhão” a “brilhante estadista”. Culpar o Islã por todas as mazelas do mundo e convencer a todos de que o único país suficientemente abençoado por Deus para livrar a humanidade de tanto terror eram eles, os Estados Unidos. Era tudo o que o ex-empresário falido do petróleo precisava.
Com o pretexto de capturar Osama Bin Laden e acabar com o terrorismo no mundo, ele bombardeou o Afeganistão, um dos países mais pobres do planeta – mas também um local estratégico para a implantação de oleodutos de petróleo vitais para o abastecimento do Ocidente.
O resto ficou por conta de uma imprensa cúmplice de incontáveis crimes de guerra e armações desavergonhadas do exército norte-americano. Ela ajudou a esconder o número de civis mortos e a propagar a idéia de que havia sido a guerra mais limpa, precisa e vitoriosa da história. Tudo apoiado por matérias em que as poucas fontes denominadas pertenciam ao governo, à CIA ou eram “especialistas em terrorismo e Oriente Médio”.
Como o cerco contra a Al Qaeda “se apertava cada vez mais” e Bin Laden não era encontrado, a “caçada” sumiu dos jornais. Estrategicamente, deu lugar a um velho inimigo da família Bush que reaparecia com o status de integrante do temido "eixo do mal”: Saddam Hussein.
A mudança de alvo ocorreu no início de 2002, e desde então os EUA tentam começar outra guerra, desta vez para desarmar o todo-poderoso Iraque, que, por sinal, possui a segunda maior reserva de petróleo do mundo. Onde, aliás, foram encontradas incomensuráveis nove cápsulas nucleares – vazias. Onde, aliás, estão permitidas as inspeções da ONU, o que não altera em nada as pretensões de Bush, o filho. Se o pai não derrubou Saddam, o filho tenta a todo custo reparar tamanha injustiça histórica.
Mas Deus é inocente não se limita a narrar as ações políticas e militares dos EUA, devidamente defendidas pela imprensa de lá. Mostra também como a imprensa brasileira – e boa parte da ocidental – comportou-se em relação à cobertura parcial, conivente, preconceituosa e ultrajante da mídia norte-americana.
A conclusão a que se chega, já nos primeiros capítulos do livro, é que se comportou tão mal quanto. Ou até pior, já que não continha o ingrediente “amor incondicional à pátria” dos norte-americanos.
Como fez a Folha de S.Paulo na última quarta-feira, contentou-se em reproduzir, sem o menor senso crítico, as versões oficiais dos acontecimentos, divulgadas pelos jornais e agências de notícias estrangeiras. E a cada notícia desfavorável aos EUA, especialmente em relação a civis mortos no Afeganistão, fez questão de lembrar que eram “informações não confirmadas por fontes independentes”.
Toda a análise feita por Carlos Dorneles baseou-se na consulta a alguns dos jornais e revistas mais importantes e influentes do mundo, como os americanos The New York Times, Washintgon Post, Time Magazine e os ingleses The Guardian e The Independent.
No Brasil, os escolhidos foram a Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil, O Globo e as revistas Veja, Época e Istoé. Poucos escaparam das críticas do autor, até porque poucos não foram contaminados pela intoxicação ideológica desencadeada pelos EUA.
Por isso mesmo, Dorneles é vítima de um forte boicote promovido pela imprensa nacional. Irritada com tantas críticas, ela insiste em ignorar o primeiro livro deste que é um dos jornalistas de maior visibilidade no Brasil, repórter da Rede Globo há vinte anos.
Tal reação, obviamente, já era esperada. Uma imprensa que se comportou da maneira que relata Deus é inocente não faria divulgação gratuita de suas irresponsabilidades.
Dorneles diz que o livro não tem a pretensiosa intenção de mudar a mídia, e sim, de conscientizar a opinião pública. Talvez este seja o grande problema: a mídia não está nem um pouco interessada nessa conscientização. E, como o próprio Dorneles nos mostra, ela é capaz de tudo para conseguir o que quer – e evitar o que não quer.