À luz da Filosofia Jurídica, as penas existem para, no contexto humanista, ressocializar o agente infrator, permitindo-lhe reequilibrar-se e redimir-se. O conceito platônico enquadra-se nessa perspectiva, cujo primeiro objetivo se encontra na salvação do réu, ao submeter-se à cogência da norma reguladora da homeostase social. Em segundo plano, devem-se abordar o restabelecimento da ordem de justiça e a defesa dos cidadãos, podendo ser respectivamente obtidos por meio da sanção reparatória e do afastamento temporário do agente, enquanto não se lhe produzir a consciência plena da extensão da conduta geratriz da inarmonia social.
Não obstante ser a pena dirigida, em primeiro nível, à reintegração do réu à sociedade, tem-se porfiado em tese adversa, dando-se vazão ao retributivismo. Por mais se vislumbre o Direito Penal na monta de último recurso na reparação dos danos causados à sociedade, vem-se insistindo na tese da majoração das penas, como se à Penalogia impendesse a responsabilidade pela solução das questões sociais e econômicas, graças a cuja gravidade se vê o alastramento contínuo da criminalidade. O recurso à privação de liberdade somente deveria ocorrer quando, no ordenamento jurídico, nenhum outro mecanismo existisse de pôr termo ao conflito social, sem exigir do Estado mais do que a ilicitude do ato viesse exigir. Eis a pena como remédio in extremis, vinculada a uma necessidade sobrevinda ultima ratio.
Em contraposição a tudo quanto os eméritos penalistas e criminólogos sempre diagnosticaram, depara-se hodiernamente com uma nítida propensão social à tese da majoração das penas, em face da múltipla falência do Estado no uso das próprias atribuições constitucionais. Ao produzir, pela via legiferante, normas presumidamente mais rigorosas, visando não à profilaxia da conduta anti-social, mas à repressão ao crime pela via do enrijecimento das sanções criminais, o Estado demonstra, numa irretorquível nitidez, a sua incapacidade na educação do povo e na manutenção de condições mínimas de sobrevivência. Nenhuma dúvida se tem, portanto, de que a norma jurídica nasce sobretudo e muito principalmente do fato social, em cuja essência ela se estriba. Não sem motivo, a nomogênese espelha uma resposta aos desajustes da sociedade, malgrado ser, não raro, um fenômeno polarizado, em razão das ideologias políticas em que se assenta a própria gênese da norma.
O texto constitucional, embora merecedor do mais cristalino respeito, permite ao legislador infraconstitucional, de maneira expressa, criminalizar excessivamente condutas lesivas a determinados bens jurídicos, em virtude de possuir discricionariedade na valoração da importância do bem lesado e na valoração da necessidade de impor esta ou aquela pena. Alguns dispositivos de natureza penal, constantes da Lex Legum, afiguram-se inapropriados a um texto constitucional, de tal molde que, nos incisos XLI e XLIV do artigo 5º, o legislador faz remissões explícitas a preceitos criminais, como a atuação de grupos armados, a determinado grau de pena, a exemplo da reclusão, a causas de exclusão de punibilidade, como indulto, anistia e graça, e a restrições à liberdade de conotação processual-penal, como a fiança etc. Quando se desejou, na Assembléia Nacional Constituinte, punir qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais (inciso XLI), a prática de tortura e do terrorismo (inciso XLIII) e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o (sic) Estado Democrático (inciso XLIV), respondia-se ao autoritarismo do período militar por que passou o Brasil, não se abrindo nenhum espaço ao retorno do passado aterrador e ditatorial responsável pela exclusão, tortura e morte de dezenas de pessoas. O legislador também previu o combate ao racismo (inciso XLII), ao tráfico ilícito de entorpecentes e de drogas afins (inciso XLIII) e ao abuso, à violência e à exploração sexual da criança e do adolescente (§4º, artigo 227), a fim de pôr limites a comportamentos insuportáveis num país voltado à democracia e ao bem-estar social.
2. PRESSUPOSTOS CONSTITUCIONAIS DA CATEGORIZAÇÃO DO CRIME HEDIONDO
No texto constitucional, lê-se inciso do artigo 5º referente à restrição dos direitos e garantias fundamentais do cidadão em determinadas hipóteses normativas, in verbis:
“XLIII – a lei considerará inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática de tortura, o tráfico ilícito (sic) de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem.”
Por óbvio, os bens jurídicos tutelados pela norma supra-referida mereceram do legislador atenção redobrada, porque se prendem a direitos indispensáveis à saúde pública e à integridade física e moral do ser humano, estatuindo mecanismos repressivos a condutas pelas quais esses bens sejam postos em risco. Deu-se, portanto, no texto constitucional, maior relevância a esses temas, embora, no concernente ao tráfico de entorpecentes e de drogas afins, já vigesse a Lei 6.368/76, anterior, portanto, à Carta Política de 1988. Não há negar aqui a predominância de uma vertente político-criminal denominada Law and Order (Movimento da Lei e da Ordem). Vale assinalar que, em face do exposto no aludido inciso, de sofrer-lhe as restrições não se escusam nem os mandantes, nem os executores e nem mesmo os que presuntivamente se tenham omitido, gerando-se, nesta última hipótese, um espaço de subsunção muito abrangente.
Segundo CURY (apud FRANCO, 2000:76), o critério relativo à omissão não se basta a si mesmo, porquanto lhe desfalecem a motivação e intenção. Fosse apenas considerada a omissão em si mesma, o genitor de um traficante e um transeunte poderiam ser respectivamente incriminados pela conduta do filho delinqüente, em razão de insuficiente educação, e por desleixo ao não avisar a vítima de iminente atropelamento. Faz-se mister que existam a concreta obrigação de agir e a nítida possibilidade de obstar à manifestação da conduta delituosa. A hermenêutica, por conseguinte, deverá adequar-se, nessa hipótese, a mens legislatoris, desde que o legislador não conferiu especificidade técnica à norma em comento. Decorre dessa necessidade a razão pela qual o ato omissivo não deve ser considerado mera condura absenteísta e sim uma escusa de cumprimento de um dever juridicamente exigível.
O Movimento da Lei e da Ordem (Law and Order) teve por supedâneo fático vários acontecimentos sociais responsáveis por gerar clamor popular, como os seqüestros de pessoas de classes privilegiadas da sociedade, seja pelo critério político, seja pelo critério econômico-financeiro, o terrorismo e o extremismo políticos, o recrudescimento do tráfico de entorpecentes e de drogas afins, a contínua organização social e técnica dos criminosos, em face da impunidade e da corrupção estrutural, a violência cotidiana típica da urbanização, em face da fragilidade e inoperância da segurança pública, a percepção da violência na qualidade de fenômeno generalizado e onímodo, a própria identidade entre violência e criminalidade, numa delicada e quase inextrincável aproximação conceitual, e a manipulação da população vitimada e vitimária pela mídia.
O criminoso, diante desses fatores, passa a ser rotulado (labeling approach) e deve ser a qualquer custo mantido à distância da sociedade, visto ser portador de um distúrbio comportamental (sociopatia ou psicopatia). Sob tal óptica, os criminosos estão fadados a gerar desequilíbrio na sociedade, não podendo manter-se em meio de pessoas a quem se reconhece a higidez social. Aquele cuja conduta seja reprovável e, portanto, reprimível, não passa de um celerado estigmatizado, devendo a sociedade mobilizar-se para combatê-lo e para erradicar o gérmen criminoso. Essa teoria, no entanto, erigiu-se em terreno movediço, servindo-se de falsos pressupostos. Não se pode reputar o delinqüente como um indivíduo apartado da sociedade ou como um ente sobre o qual a própria sociedade não tem exercido nenhuma influência, ao passo que também não se podem desconsiderar os fatores sociais, econômicos e financeiros responsáveis, em razão da concentração de renda, pela extensão dos crimes urbanos e suburbanos. A miséria em que vivem muitas famílias e sob cuja influência nociva elas procuram sobreviver responde pela reação anti-social às instituições em nítido estado falimentar. O delinqüente forma-se na contingência das necessidades subjetivas e objetivas, de tal sorte que, não podendo realizá-las, reage à pressão criminalizadora sobre ele exercida pela sociedade consumerista. Assevera sagazmente FRANCO (86:2000):
“(...) o Movimento da Lei e da Ordem depositou seus ovos de serpente no texto constitucional e gestou a categoria do crime hediondo. Além de criá-la, o legislador constituinte equiparou-a a outras espécies criminosas (tortura, terrorismo e tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins), eliminou a garantia processual de alta valia (a fiança), vedou causas extintivas de punibilidade expressivas (anistia e graça) e, afinal, atribuiu ao legislador ordinário a incumbência de formular tipos e cominar penas, de caráter hediondo, numa luta contra o crime, sem descanso, mas fadada ao insucesso, por seu irracionalismo e por sua passionalidade e unilateralidade.”
3. FORMULAÇÃO DA LEI 8.072/90 E RESPECTIVO PROCESSO LEGISLATIVO
A Carta Magna cometeu ao legislador infraconstitucional a tarefa de produzir leis complementares aos dispositivos de eficácia contida, ainda que árdua a obrigação. No entanto, antes mesmo de passados os doze meses posteriores à promulgação da Lex Legum, o Ministro da Justiça encaminhava ao Presidente da República um projeto de lei elaborado pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, sob os auspícios do professor DAMÁSIO EVANGELISTA DE JESUS. Sobressaía a necessidade de serem postas em ação práticas eficazes de combate ao crime, à criminalidade e ao criminoso. Duas razões existiam para que se observasse a proliferação contaminante do crime: a morosidade do Poder Judiciário e a bonomia exagerada da legislação. Em decorrência, era emergente conferir um sentido à expressão constitucional crimes hediondos, adotando-se a enumeração criteriosa de condutas a que se poderia dar o rótulo de hediondas e a conceituação de que são hediondos os crimes cometidos mediante violência à pessoa, por métodos gravosos e através de repulsiva execução, a ponto de criar intenso e inafastável clamor popular. O reconhecimento dessa modalidade de crime depende de decisão motivada e fundamentada do juiz competente.
Vale assinalar que, aproveitando-se do abrangente conteúdo hermenêutico e da imprecisão técnica e semântica da aludida expressão, o legislador infraconstitucional nela embutiu uma quantidade razoável de tipos penais, passando a considerá-los hediondos. Dessa maneira, receberam a etiqueta constitucional algumas condutas já pertencentes ao Código Penal, de maneira tão abrangente que se tornou extremamente rígida e rigorosa a aplicação das penas quando simplesmente presentes os elementos subjetivo e objetivo. As teratologias da lei não se restringem à questão tipológica, mostrando-se absurdas quando se leva em conta a majoração do preceito sancionatório. Exceto o delito de genocídio, os demais, após serem envernizados pelo inquieto legislador, foram contemplados pelo sensível incremento quantitativo das penas. A majoração das sanções punitivas demonstrou ser extremamente ilógica a construção do conceito de hediondo, porque implicou uma grave desproporção entre a causa e a conseqüência da conduta delituosa, gerando para o juiz um grave dilema na individualização da pena e na adequação do quantum ao qualis do injusto. De mais a mais, o legislador infraconstitucional também vedou a concessão do indulto e, em decorrência, a comutação da pena, pretendendo-se intérprete autêntico do texto constitucional, fato representativo de uma anomalia jurídica, porquanto não lhe assiste, sob color de estar protegendo-a de interpretações equivocadas, delinear o conteúdo de norma constitucional. O legislador infraconstitucional não pode arvorar-se em intérprete originário da Carta Magna, só lhe competindo o controle preventivo e não o controle repressivo, no sentido de afastar interpretações adversas. Em última instância, assiste ao Supremo Tribunal Federal dizer sobre o pretenso verdadeiro sentido da norma constitucional.
Sem adequado supedâneo jurídico, também se impôs um mais rigoroso critério de livramento condicional, fazendo ressurgir dos alfarrábios do Direito Criminal o arqueológico conceito de reincidência específica, ao tempo que se produziram a hipótese da delação premiada e um mistifório conceitual de bando e quadrilha. Já no território da execução penal, em que deveriam sobressair os princípios supra-ordinários da legalidade, da humanidade e da individualização da pena, excluiu-se o regime de progressão do cumprimento das penas, devendo o agente cumprir a pena em regime integralmente fechado. O legislador também não se absteve de prever estabelecimentos federais de segurança máxima para condenados de alta periculosidade, cuja permanência em presídios estaduais trouxesse risco à incolumidade pública, não atentando ele, dessa maneira, a possíveis conflitos de competência.