A história recente de nosso país registrou atrocidades praticadas por ocasião da Ditadura Militar, quando a polícia política torturava indiscriminadamente, misturando criminosos com intelectuais, exilando e banindo de sua Pátria inúmeros brasileiros, tudo isto mercê da paranóia do risco do Comunismo.
Um grupo de pessoas, que ilegitimamente usurpou o Poder, passou a governar o país como se estivesse em sua própria casa, ditando as regras que lhe parecessem supostamente melhores para seu desenvolvimento.
Anos e anos fluíram. Essas pessoas enjoaram do Poder e do próprio país. Tanto que foram, pouco a pouco, deixando que voltasse a Democracia, o Governo legitimamente escolhido pelo povo (se escolhe mal ou não, é outro problema!).
Com o retorno ao Estado de Direito, fez-se necessária uma nova Constituição, o que foi feito em 1998, através de uma Carta eminentemente principiológica, reveladora da preocupação maior de jamais voltarmos aos tempos negros que todos desejavam, como desejam, apagar para sempre da memória.
Dez anos se passaram desde o início de vigência da atual Constituição. A Democracia “pegou”. O retorno àqueles tempos parece uma possibilidade bastante remota. O país amadureceu politicamente. O povo, de uma forma ou de outra, aprendeu a desenvolver um senso crítico.
Agora convivemos com um único problema: a outra face da moeda.
É que o excesso de garantias e de protecionismo da Constituição em vigor levou-nos a uma situação que decerto seus autores sequer imaginavam - a absoluta inversão de valores.
Pior do que o texto da lei é o intérprete dela. Aquele intérprete que, ou devaneia em sono profundo, ou dissimula suas intenções inconfessáveis.
A paranóia pro reu que contagia a doutrina brasileira chegou as raias do mais completo absurdo. Não bastasse o fato de a Constituição Federal empregar sete vezes a palavra “preso” e outras nove a palavra “prisão”, perfazendo quase dezesseis dispositivos dedicados ao criminoso - note-se que não há um único dispositivo constitucional dedicado às suas vítimas! -, nossos queridos juristas apresentam, diuturnamente, teses das mais inusitadas, sem disfarçar o imenso esforço, de uma ginástica sem igual, para encontrar, nas entrelinhas da lei, algo que a torne inaplicável - quando puder prejudicar o réu - ou algo que amplie seu conteúdo - quando for para beneficiá-lo.
Isto nos leva a pensar: quem é o réu. Será ele um santo? Um rei? Um pobre injustiçado, oprimido, nobre por fazer um grande favor para a Justiça que é ser processado pelos crimes que cometeu?
Só falta essas pessoas defenderem que o juiz deva, na parte dispositiva de sua sentença, antes do comando condenatório, encarecer mil desculpas ao desafortunado condenado pela pena que teve de pespegar-lhe, porque outro jeito não houve, porque, se houvesse, certamente seria ele absolvido. E olha que se fez o possível, hein...
Mas, nem tudo está perdido! Ainda dar-se-á um jeito de abrandar o regime de execução da pena...
As desculpas são sempre as mesmas: prisão não reeduca ninguém e o Sistema Penal está falido.
Disto já se sabe. Mas, pergunta-se: se a prisão do criminoso não resolve, então o que devemos fazer com ele? Será que deixá-lo solto resolve? Será que nós é que devemos ficar presos em nossas casas, caso nos sintamos incomodados com o criminoso nos “assaltando”, matando, estuprando?!
Por que não se procura recuperar o Sistema Penal, ao invés de advogar sua completa extinção?! A que interesses essa linha de argumentação pretende atender? Por que as pessoas não mostram as suas verdadeiras caras?
Existem, no Brasil e no mundo, várias Organizações Não Governamentais dedicadas à defesa dos Direitos Humanos. O curioso é que, para elas, só os criminosos possuem Direitos Humanos. Nenhuma delas se digna a visitar as vítimas ou as famílias das vítimas desses criminosos, que, na maioria das vezes, necessitam muito mais de ajuda.
De certa feita, um promotor conversava com um juiz, em uma determinada cidade do interior, durante o almoço. O juiz disse, com uma dose de alívio, que nunca tinha tido o desprazer de decretar a prisão de ninguém. Nunca tinha tido que mandar ninguém para um local horrível como é uma cadeia. Jamais condenara um ser humano. É que o juiz só havia, até então, atuado no cível. Fora juiz, algum tempo, em varas cíveis na capital do Estado. O promotor logo retrucou: “quantos despejos V. Exª já decretou, como juiz cível”? A resposta veio logo: “vários, já deu até para perder a conta”. E arrematou o promotor: “V. Exª jamais teve que passar pelo sofrimento de mandar uma pessoa, que cometera um crime, para uma cadeia, onde, pelo menos, teria abrigo das intempéries e será alimentada a contento. Em contrapartida, já deixou ao relento e ao desabrigo inúmeras famílias, que de errado apenas fizeram não conseguir honrar os compromissos assumidos com seus locatários, sem qualquer dor na consciência. Grandes valores esses, data maxima venia !!!” Os dois, depois, perderam contato, de sorte que o promotor não ficou sabendo se o juiz parou de decretar despejos ou passou a prender criminosos...
Já passou da hora de se repensar tudo isto. Já chega de tanta benevolência com o criminoso, esquecendo-se que, com isto, suas vítimas, além de toda a Sociedade, ficam órfãs. Viram frágeis presas, indefesas ante aqueles que, encorajados pela impunidade, as sentenciam sumariamente.
E eles, os criminosos, apostas e confiam na impunidade. Apostam e confiam em seus árduos defensores, na hipocrisia dos que os reverenciam. Tanto que, para chamarem a atenção, fazem de tudo: tomam penitenciárias e fazem servidores públicos de reféns; fazem greve de fome. Ora, a lei está do lado de quem quer manter a ordem - no primeiro caso, é mais do que justo que a penitenciária seja invadida pela Polícia e os reféns libertados. São os presos que têm o dever de se renderem e se entregarem à Polícia; não a Polícia que tem que ter a preocupação de não machucar esses “pobres coitados”, quando o confronto, que eles desafiaram, mostrar-se inevitável. No segundo caso, da greve de fome, nenhuma preocupação há de trazer para as autoridades carcerárias, que cumprem seu dever pelo simples fato de servir a refeição nos momentos determinados. Se o preso não quer se alimentar, problema dele. Quando morrer de inanição, a hipótese é, tranqüilamente, de suicídio, que é um direito de cada um, penalmente atípico.
A Sociedade cobra uma retomada de posição. E cobra com razão. Já não agüenta mais ter que conviver com seus algozes na mais absoluta impunidade.
Vamos, enfim, lutar para que algumas pessoas parem de reverenciar Sua Majestade, o réu!
Marcelo Lessa Bastos é Promotor de Justiça no Estado do Rio de Janeiro e Professor de Direito Penal Especial e de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito de Campos e da FEMPERJ.