[Outro artigo sobre O amor nos tempos do cólera, escrito pelo mesmo autor da novela, em ordem de responder às inúmeras dúvidas quanto ao personagem Jeremiah de Saint-Amour.]
Jeremiah de Saint-Amour não tinha porque existir em Amor nos tempos do cólera. Entretanto, cumpriu muito bem a tarefa que lhe foi encomendada, embasado no fato de que hoje, seria impossível conceber o mesmo livro sem ele. Vejamos bem: o principal problema de uma novela, é sua primeira frase, e que esta não atrapalhe o leitor, fazendo-o desistir da leitura. Eu particularmente, gosto muito das introduções de Kafka. Primeira: “Gregório Samsa despertou uma manhã, convertido num monstruoso inseto”. A outra: “Era um abutre que me beliscava os pés”. Existe uma terceira introdução, cujo autor não me recordo, e que digo de memória: “Tinha cara de chamar-se Roberto, mas chamava-se José”. A primeira frase de Amor nos tempos do cólera me custou suor e lágrimas, até que me ocorreu, ao ler casualmente um romance policial de Aghata Christie: “Era inevitável: o cheiro das amêndoas amargas, sempre lembravam-lhe o destino dos amores contrariados”.
A dificuldade seguinte era que a frase inicial estivesse em vivo na memória do leitor atrapalhado pela fascinação do relato. Nem todas novelas conseguem este feito. Os amores de Florentino Azira e Fermina Daza são um conto parcimonioso e sutil, e requereriam um antecedente inesquecível para emocionar o leitor. A solução foi o suicídio de Jeremiah de Saint-Amour, uma lembrança brutal de minha infância, e com força dramática suficiente para sustentar a tensão até que o relato dos amores contrariados fossem apresentado ao leitor. Assim foi: quando me ocorreu, o Doutor Juvenal Urbino já estava devidamente instalado na novela, com os pés firmes sobre a terra.
Na vida real, Jeremiah de Saint-Amour era um veterano da primeira guerra mundial, que havia perdido o uso de ambas as pernas em um campo minado da Normandia. Havia chegado a Aracataca juntamente com a torrente migratória da febre bananeira, com um par de muletas talhadas por ele, com desenhos de chifres. Chamava-se Don Emilio, e também era conhecido como o Belga, mas preferi para a novela, um homem mais lírico, entre profeta e teólogo francês. Não era fotografo de crianças, e sim professor de ouriversaria, como meu avô, e protegido seu. Nunca conheceu uma mulher, e a que aparece na novela era um segredo sagrado, que foi revelado por meu avô. Parece, que também odiava os cães, e o que coloquei nolivro, foi por uma debilidade de coração.
Sua amizade com meu avô, foi imediata, devido a paixão compartilhada pela ouriversaria. Meu avô ajudou-o a intalar-se no povoado, e ajudou-o a melhorar seu xadrez, iniciou-o no vício do cinematógrafo, e ensinou-lhe a fazer os célebres peixinhos de ouro. Para mim, foi um personagem abominável, por que nas noites em que meu avô levava-me a seu atelier, para jogarem xadrez, passava horas carcomido pelo horror de ver-los demorando-se a mover as peças, e que no final dava tudo no mesmo.
Não tinha mais de seis anos, mas lembro-me perfeitamente, como se fosse ontem, que ao receber a notícia de seu suicídio, num domingo de agosto, em plena missa das oito, meu avô, carregou-me consigo até a casa do Belga, onde éramos esperados pelo alcaide e dois agentes de polícia.
A primeira coisa que me assustou na desordem do dormitório, foi o forte odor de amêndoas amargas do cianureto que o Belga havia inalado até a morte. O cadáver coberto por uma manta, estava num catre da acampamento. A seu lado, sobre um banquinho de madeira, estava o frasco do veneno, e um papel com uma mensagem ortográficamente bem escrita e desenhada a pincel: “No culpen a ninguno, me mato por majadero”.
Nada perdura em minha memória com tanto afinco, do que a lembrança cadavérica do morto, quando meu avô descubriu-o de sua manta. Estava pelado, teso e torcido, com a pele sem cor e coberta por uma crosta amarela, e seus olhos de águas mansas me olhava como se ainda estivessem vivos. Minha avó Tranquilina Igüaran havia sentido o presságio de quando viu-o pela primeira vez: “Essa pobre criatura não voltará a dormir em paz pelo resto de sua vida”. Assim foi: aquele olhar do morto, perseguiu-me nos sonhos durante muitos anos.
A recordação daquele dia foi também o tema central de meu primeiro romance: A revoada (O enterro do diabo), escrita aos meus vinte anos. Mas ninguém parece ter percebido nada em comum entre os dois personagens. No ambos os casos, fica claro que o interessante do personagem não era sua vida, e sim sua morte. No amor nos tempos do cólera tive que escolher entre inventar-lo como um personagem importante sem mais nada que fazer, ou deixa-lo como foi para mim: abrupto e inesquecível. Não tive dúvidas. Um personagem que fica sem o que fazer numa novela, só pode ter dois destinos: ou destrói a novela, ou a novela o destrói. Jeremiah de Saint-Amour passou pela prova de fogo dos leitores, que continuam a perguntar sobre ele, apesar de sua pequena participação no romance.