No meu tempo, economia era sinônimo de Delfim Neto. E Delfim Neto falava economês, uma língua completamente ininteligível. Numa das cadeiras da Faculdade de Letras, aprendi que a língua é dinâmica, viva, e que palavras se criam e desaparecem, conforme a época em que se vive. Me lembro perfeitamente bem quando o professor pediu que buscássemos no dicionário a palavra "biônico", que no Brasil estava sendo aplicada a determinados políticos. A palavra originou-se de um seriado na TV, do "O homem biônico" e "A mulher biônica". Alheios a "engenharia genética" achávamos que seres humanos "melhorados" viriam mesmo da robótica: o homem de 6 milhões de dólares tinha pernas mecânicas que lhe conferiam pernadas fenomenais, ele acabava com tramas e tramóias num piscar de olhos. A mulher biônica tinha um super ouvido, era só puxar o cabelão para trás da orelha e a danada escutava todos os planos inimigos. Os dois curtiam um romance juntos em alguns seriados, a mulher emprestava o ouvido biônico prô gatão que enxergava longe, ele corria feito um louco prá salvar ela... O transgênico da Signew Weaver e o Alien veio bem depois, acho que fazem uns quatro anos...
No meu tempo a gente ouvia dizer que a revolução viria do campo. Fazia sentido: as necessidades básicas eram comer, beber e dormir, e isso quem poderia fazer com total independência era o agricultor, que plantava para sua subsistência. O agricultor poderia dar o "cheque mate" na cidade, porque a cidade dependia da agricultura para seguir existindo, já o agricultor... Quando que eu iria supor que as necessidades básicas humanas se transformariam em computador, televisão, celular e ofertas do MacDonalds? E quando que eu iria imaginar que o desenvolvimento do país seria medido em toneladas de soja, ao invés da produção de alimentos para alimentar a população do país? Não, se bem que o bordão "Exportar é o que importa" já tem lá seus 15 anos...
Eu me lembro bem quando apareceram as organizações não governamentais, ONGs, questionando as governamentais, como salvadoras de pátrias. Me lembro de dinheiro vindo a roldão para "salvar" o que quer que fosse: florestas, baleias, tartarugas marinhas, ararinhas azuis. Todos tão comovidos pela sobrevida do planeta. E cientistas invadiram as florestas tropicais, pesquisando e coletando. E veio o encontro da Rio 92. O exército estava nas ruas, porque afinal de contas ali estavam presentes chefes de governo, líderes políticos, autoridades científicas. Foi tão estranho caminhar num Rio de Janeiro resguardado da violência, mas também resguardado de sua vida noturna, de sua boemia, de seus cariocas charmosos. A ECO 92 foi um encontro de onde surgiu a palavra globalização, junto com o marketing do sonho de uma irmandade global que salvasse o que é comum a toda a raça humana: o meio ambiente planetário.
Na seqüência apareceram as palavras "biodiversidade" e logo depois a "biopirataria", junto com a "lei das patentes genéticas". É, a turma que ancorou por aqui não estava tão bem intencionada com relação ao planeta. Naquele abraço mundial nascia o mercado genético, completamente enraizado no velho conceito de pátria. Hoje o Japão é dono do Cupuaçu (planta da Amazônia). Mas ninguém sequer suspeitava disso, afinal, como diria o escritor Valfrido, psicanalista e pantaneiro, vivíamos o arquétipo do Tarzan, o rei das selvas. Era bem assim, um outro seriado televisivo do meu tempo: um ator loiro, tipicamente europeu, lindo, com uma sunguinha minúscula, aparecia dependurado num cipó, gritando, salvando tribos nativas de débeis mentais, que viviam no meio da floresta e invariavelmente não sabiam se defender sabe-se lá do que. Tarzan sabia. O enredo era sempre o mesmo: os nativos faziam mutreta, queriam cozinhar alguém, lá vinha o homem branco dependurado no cipó. Gritando. E chegava com o cabelo invariavelmente penteado, e se comunicava tri bem com a bicharada da floresta. Os elefantes podiam estar fazendo o que fosse, comendo, tomando um refrescante banho, transando com a elefanta, bastava o Tarzan gritar, a bicharada atendia solícita o comando, era um tal de orelha espichando, bicho correndo em direção do chamado do Rei. Claro que Tarzan tinha sua companhia predileta, que era a macaca Chita. Havia uma mulher das selvas, mas ela não contava, aparecia esporadicamente no seriado, quem era a companheira de Tarzan era mesmo a Chita. Feito Batman e Robin. Tarzan e Chita.
Naquele tempo também não se duvidava da ciência. Teve até um livro escrito "Seria a ciência uma religião?" Aparecia algum cientista a falar na TV, era ponto final: falou tá falado. A ciência estava acima do bem e do mal, era ética por si só. Talvez por isso os brasileiros não tiveram dúvidas ao abrir suas florestas aos estudos estrangeiros. Por isso parecia normal que a coleção botânica da flora amazônica brasileira mais completa e bem identificada estivesse no New York Botanical Garden (Nova Yoruqe - EUA). Nós tínhamos uma auto imagem de quem "não sabe cuidar do que é seu", o brasileiro bonzinho e burrinho, as brasileiras boas de cama, o Brasil era um país liberal e liberado, um oásis aos turistas reprimidos e infelizes do hemisfério norte. Naquele tempo não se ouvia a palavra "pedofilia", muito menos "prostituição infantil".
Pois é, hoje, o economês é a lingua mais falada no mundo (ainda que siga sendo a menos entendida), Tarzan provou ser um tremendo mal caráter, que entre um cipó e outro levava material genético que não lhe pertencia ao seu país de origem, e se bobear, duvidar-se-á até de suas boas intenções com a macaca Chita, a exemplo do pesquisador holandês Rosmalem que está sendo acusado de crimes ambientais sórdidos, na Amazônia Brasileira. O exército está nas ruas do Rio de Janeiro não para resguardar chefes de estado, mas sim... passistas de escola de samba. Os biônicos foram substituídos por clones, não melhorados, mas altamente rentáveis ao mercado da Biotecnologia. A ciência na atualidade é um balaio de gatos, e andam uns contestando os outros, a despeito de uma população mundial que segue consumindo remédios e alimentos que volta e meia oferecem riscos medonhos à saúde humana, sem a menor segurança. Nas leis do mercado paralelo, além das mulheres, historicamente exploradas para fins sexuais, entraram também os adolescentes e crianças, e a palavra pedofilia já é corriqueira nos noticiários globais. E eu, que tenho menos de 40 anos, tenho vontade de escrever um livro de memórias...
Sabrina Klein* é agrônoma, consultora de meio ambiente, trabalhou em diferentes ecossistemas (entre eles a Mata Atlântica, a Floresta Amazônica e o Oceano Atlântico) vinculada a OGs e ONGs nacionais e internacionais. E.mail: kleins@terra.com.br