[Tradução da resposta de Gabriel García Márquez, ao ser questionado por uma leitora sobre as repetidas aparições do Duque de Marlborough, e a declaração de que o escritor inglês Joseph Conrad viera à Santa Maria, vendendo armas ao governo, para uma guerra civil. O que é verdade, e o que é realismo fantástico?]
Talvez a primeira canção que aprendi na escola Montesoriana de Aracataca, aos quatro anos, foi a que todo mundo em Colômbia conhece: “Mambrú se fue a la guerra qué dolor qué dolor qué pena”. Quando perguntei a minha avó materna Tranquilina Igüarán quem era esse tal de Mambrú, ela saiu da cozinha, respondendo em grande estilo: “Era um militar muito valente que esteve com seu avô na guerra de Uribe Uribe”. Quer dizer: na guerra dos Mil Dias. Mais tarde, durante meu bacharelado, aprendi que Mambrú era a alcunha de John Churchill, um general inglês do século XVIII, Duque de Marlborough, e descendente direto de Winston Churchill, que foi comandante invicto das tropas britânicas e generalíssimo dos exércitos aliados da Europa, durante a guerra de sucessão espanhola. Entretanto, o que deixou marcado na história, não foram suas façanhas em guerra, e sim a canção burlesca de sua derrota final, composta pelos franceses – talvez soldados rasos – que seguiram repetindo a seus filhos, que repetiam a seus filhos, que repetiam a seus filhos, e seguiram repetindo em diversos idiomas.
Cresci com essa idéia, e em algum momento que agora não sei qual, resolvi dar como certa a versão de minha avó, e apropriei-me do personagem de Mambrú, ao colocar-lhe nos meus livros. Desde meu primeiro romance – A revoada (o enterro do diabo) – quando um oficial do Coronel Aureliano Buendía exclamou assustado ao reconhecer-lhe, entre o pesadelo e a realidade, sob a luz de uma tocha de campanha: “Mierda. Es el Duque de Marlborough!”. Em Cem anos de solidão, doze anos depois do primeiro romance, o próprio Coronel Aureliano Buendía, sentava-se ao seu lado, nas grandes ocasiões de seus tempos de glória. Sempre com uma jaqueta de pele de tigre, botas, e chapéu adornado com unhas e dentes de tigres. Hoje, olhando para trás, não tenho explicação para tal utilização.
Muito mais distinto foi o passo do escritor inglês Joseph Conrad, que no capítulo final de Amor nos tempos do cólera aparece na narrativa, já que este relato é verídico e com respaldo documental. O feito – como se conta no romance – é que um tal de Joseph K. Korzeniowski, de origem polaca, demorou-se vários meses no porto de Santa Maria, Colômbia, por volta de 1875, a bordo do navio mercante francês ‘Saint Antoine’. Seu propósito era de vender um carregamento de armas ao governo liberal de Don Aquileo Parra, na guerra com os conservadores indignados. Pois bem: o nome polaco era o verdadeiro nome do escritor inglês Joseph Conrad – um dos maiores escritores daquele século e de outros – que já era conhecido como contrabandista de armas pelo Mediterrâneo. Assim, que não foi surpreendente que tivesse contrabandeado também na Colômbia, para uma guerra que bem podia interessar-lhe, tanto por motivos comerciais quanto políticos.
Antes de saber destes fatos comprovados historicamente, havia lido o romance Nostromo, a grande obra-prima de Conrad, escrita uns vinte e cinco anos depois de sua visita à Colômbia, e me surpreendi com sua descrição do porto caribenho de Zulaco, onde ocorre a ação, pois, existia um porto em Santa Maria, quase que fotograficamente idêntico. Sobre tudo pela baía abrigada e mansa em frente à montanha de neves perpétuas em meio ao país tropical. Não precisava ser escritor para perceber a incrível semelhança entre os lugares, e chegar a conclusão de que Conrad havia entrado para a história da colombiana pela porta proibida de um carregamento de armas.
Estes jogos manuais não são estranhos entre os escritores, ainda que nem sempre são decifráveis. Quando li A morte de Artêmio Cruz, de Carlos Fuentes, me surpreendi com o personagem do Coronel Lorenzo Gavilán, um revolucionário mexicano que havia entrado no livro com uma força irresistível, mas desapareceu sem explicação, e para sempre jamais, ao sair de um bordel no México. Conversei várias vezes com Carlos Fuentes, e nos divertíamos buscando soluções truculentas para o personagem extraviado.
Tempos depois ao escrever Cem anos de solidão, me senti empantanado com um personagem sem desenlace digno, e me ocorreu que aquele podia ser o homem que fugiu do romance de Carlos Fuentes. Pareceu-me verossímil que ele tivesse escapado pela zona bananeira de Santa Maria, quando se perdeu no horizonte da revolução mexicana, e que reapareceria com seu próprio nome durante o protesto social que culminou na matança na estação de Macondo. O Coronel Gavilán foi o último a ser visto, como cadáver estribado impiedosamente, sob uma pilha de milhares de outros cadáveres estribados impiedosamente, dentro de enormes vagões de trem, com os quais o exército levava para serem lançados ao mar: “Eram mais de três mil _ foi tudo quanto disse José Arcádio Segundo. _ Agora estou certo de que ram todos os que estavam na estação”.
Existem mais: entre tantas citações, plágios, consultas e simples furtos a mão desarmada com que tenho-me aproveitado dos livros de Álvaro Mutis, e o que mais agradeço pela oportunidade e beleza, foi o trecho que transcrevi, sem crédito, mas com permissão, em O General em seu labirinto, quando senti falta de um militar europeu de alta patente, tivera feito uma visita a Simón Bolívar em sua estância crepuscular em Cartagena. Álvaro havia desistido de seguir escrevendo um livro sobre “El libertador”, para que eu pudesse continuar escrevendo o meu sem remorsos, e um personagem seu de O último rosto, me parecia perfeito para encarnar o que me fazia falta. Pelo temor de estar equivocado, pedi-lhe por telefone que me escrevesse os dados do personagem. Pois então, foi que no primeiro telefonema, Álvaro me ditou o parágrafo, palavra por palavra, tal como foi publicado em meu livro, sem mudar nem mesmo uma vírgula.
Por último, quando terminei de ler Rayuela de Julio Cortazar, chamou-me a atenção que ele descrevia em detalhes o hotel de Paris, aonde morreu o pequeno Rocamadour, um estranho personagem, mas não dizia o endereço do hotel. Eu conhecia o hotel, por ser o mesmo da rua Dauphine, onde vivera muitos anos o escritor colombiano Arturo Laguado, e eu mesmo não pude resistir a tentação de incluir em Cem anos de Solidão, uma frase nostálgica sobre o quarto da criança: “O quarto cheirando a couves-flores servidas, onde haveria de morrer Rocamadour”.
Em outro livro meu - o qual não me recordo – pode-se ver passar o navio fantasma de Victor Hugues, protagonista magistral de O signo das luzes de Alejo Carpentier. Em contrapartida, fiquei com o desejo de também deixar uma recordação ao meu admirado e querido Juan Rulfo, pelas várias ocasiões em que lhe consultei sobre as possibilidades de subescrevê-lo, e por sua maneira encantadora deixar-me confuso e pelos ares. Pois, já na véspera de sua morte e falando de outras coisas, disse-me meio de lado uma frase casual, que entendi como resposta a todas aquelas consultas: “Não tem lugar mais perigoso para seguir vivendo, que as páginas de um livro alheio”.