Boa parte dos conflitos chamados “religiosos” do mundo, sejam eles bélicos ou puramente ideológicos, poderiam ser evitados se as pessoas envolvidas estivessem preocupadas mais com as próprias crenças do que com as de seus adversários. Preocupadas com a própria espiritualidade e não com os defeitos da religião “inimiga”, com o presente e não com a vingança de confrontos ocorridos há séculos ou milênios. A famosa tolerância religiosa.
Problema maior ocorre quando se utiliza essa diferença entre crenças para justificar os ataques com motivações visivelmente políticas a quem não partilha da mesma religião.
Acontece desde que as religiões existem, seja em nome de Deus, de Jeová ou de Alá. Cruzadas católicas contra os muçulmanos, a indisposição existente até hoje entre o mundo árabe e o cristão, conflitos entre protestantes e católicos na Irlanda que atravessam séculos, relembrando o que ocorreu na Idade Média de Lutero e por aí vai.
O caso Israel-Palestina é apenas um dos inúmeros exemplos não citados anteriormente. Os palestinos culpam os “judeus”, os israelenses dizem que foram os “muçulmanos” que começaram.
Embora os “neutros” costumem dizer que os dois lados estão errados e que a paz nunca será possível enquanto persistir o desejo de vingança de ambos, podemos apontar algumas desigualdades. Que fazem toda a diferença.
Israel, seus aliados – leia-se “os Estados Unidos” – e especialmente boa parte da comunidade judaica mundial costumam atribuir a causa de tantas mortes na região da fronteira com os territórios palestinos aos fanáticos muçulmanos e suas organizações terroristas, que se utilizariam do falso argumento da busca pela independência somente para matarem judeus inocentes.
Assim, os ataques do Estado de Israel à Palestina são classificados como “retaliações a atentados praticados por terroristas palestinos”. Algo como legítima defesa.
Os israelenses fingem ignorar e tentam fazer o resto do mundo esquecer que tais organizações palestinas – a maior parte delas realmente utilizando ações terroristas – só surgiram após o início da ocupação de Israel em territórios palestinos, ocorrida há longos 35 anos.
Hoje, já existem 66 colônias judaicas na Palestina, que forçaram o êxodo de mais de 80 mil palestinos de terras que eram suas. Invadir a terra alheia é, para os israelenses, uma forma de proteger a sua religião da ira de muçulmanos loucos e atrasados que querem destruí-la.
Mas, no caso de considerarmos tal invasão uma ferramenta política para a expansão territorial, não seriam os atentados cometidos por palestinos uma espécie de legítima defesa? Uma retaliação contra tanto tempo de invasão? Uma reivindicação pelo que lhes foi tomado?
Uma reivindicação praticada, em sua maioria, por extremistas e que já matou dezenas de milhares de civis inocentes, que fique bem claro. Mas que foi respondida não por fundamentalistas, mas pela sofisticada tecnologia bélica do Estado de Israel, o que é muito pior. É o terrorismo de Estado, o terrorismo institucionalizado. Que, por sinal, é bem mais eficiente no quesito destruição.
Se levarmos em conta somente os 29 meses que já dura a Intifada – a guerra santa declarada pelos muçulmanos – veremos que, somando atentados terroristas cometidos por palestinos contra civis israelenses e ataques do exército de Israel muitas vezes contra áreas densamente povoadas por civis palestinos, já morreram ao menos 729 israelenses e 1902 palestinos. O conflito mata quase três vezes mais palestinos que israelenses.
Note-se que a Intifada, ao menos no nome, tem caráter religioso. O que foi citado no início do texto, assim como o uso da religião para a obtenção de ganhos políticos e territoriais. Portanto, os “muçulmanos” cometem o mesmo erro dos “judeus”.
O pingo de razão que têm os “muçulmanos” está, no entanto, na intenção de recuperar – e não ganhar – territórios e na luta pela criação de um Estado próprio, que já dura mais de três décadas. E que fica mais difícil à medida que seus territórios são destruídos e sua estrutura, enfraquecida.
Os judeus, que ajudaram a criar a superpotência norte-americana, quiseram o seu após as perseguições e o holocausto da Segunda Guerra. E ganharam. Os muçulmanos, que, por motivos óbvios, não são exatamente simpatizantes dos Estados Unidos, parecem não ter o mesmo direito.
Enquanto os israelenses, judeus, ou o que preferirem, insistirem em se classificar como eternas vítimas das perseguições de meio mundo para poderem atacar quem quiser sem sofrer retaliações, não haverá avanços na tal busca pela paz. E toda a história continuará a ser resumida como um conflito de religiões inimigas, o que torna cada vez mais questionável a utilidade da religião, e não da religiosidade, como maneira de estar em paz consigo mesmo e com os outros.